Novembro de 1975 foi um mês quente na história da jovem democracia portuguesa. Pinheiro de Azevedo esteve no centro dos acontecimentos com frases inesquecíveis.
A Amérdica poderia muito bem ser um país como a América do tio de Alain Resnais, sem Gérard Depardieu, embora o bom Gérard até seja adepto de uma certa liberdade de discurso, ou melhor, de uma certa libertinagem de discurso. Um país no qual os pais passassem para os filhos e os tios para os sobrinhos essa suprema ambição de soltarem, de quando em vez, um bardamerda como se fosse um privilégio digno do maior orgulho familiar.
Claro que as tradições, mesmo tão arreigadas como esta, não nascem de geração espontânea. Têm raízes e vale a pena ir à procura delas. O “bardamerda” tonitruante de Alvalade, proferido numa noite de entusiasmo insano, nasceu em novembro de 1975, já lá vão mais de 40 anos. É um bardamerda histórico que nos faz mergulhar profundamente na busca das suas origens.
Em 1975, novembro, havia a greve. Envolvia cerca de um milhão de trabalhadores e surgia na sequência da rutura das tentativas de negociação que decorriam com as associações patronais, por intermédio do Ministério do_Trabalho. Fora decretada pelos sindicatos dos trabalhadores da construção civil. Seria como o Carnaval: para tudo se acabar na quarta-feira, com uma manifestação marcada para o Terreiro do Paço. Estávamos, então, a uma segunda-feira: dia 10.
Nesse dia já havia gente na Praça do Comércio. Muita gente! E uma confusão generalizada. Bombas de gás, tiros de pistola, intervenções intempestivas de particulares, provocações aos soldados da Polícia Militar que procuravam controlar a situação. O comício fora promovido pelo Partido Socialista, pelo Partido Social Democrata, pelo Partido Popular Monárquico e pelo Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista). Objetivo: demonstrar um apoio inequívoco ao vi Governo Provisório e ao primeiro-ministro, almirante Pinheiro de Azevedo. O tio. Ou melhor, o tio-avô de Bruno de Carvalho. Do qual parece ter herdado a tal linguagem desbragada.
Pinheiro de Azevedo transformou num púlpito as varandas do Ministério das Finanças. Cá em baixo, o povo soltava palavras de ordem: “Vasco só há um, o Lourenço e mais nenhum!”, em clara provocação a Vasco Gonçalves, que presidira aos ii, iii, iv e v governos provisórios, general ligado aos grupos militares próximos do Partido Comunista.
Vivia-se um país dividido.
A multidão não arredava pé. “Socialismo sim, ditadura não!” E “Pinheiro, em frente, aqui tens a tua gente!”.
Lá no alto, sobre a populaça, iam surgindo as figuras do regime:_Vasco Lourenço, Melo Antunes, Vítor Crespo, Jorge Campinos. Alguns levantavam o braço, de punho cerrado
Eram 17h25 quando Pinheiro de Azevedo assomou à varanda. Gritava-se a plenos pulmões:“Unidade! Unidade! Unidade!” À sua direita estava Mário Soares; à sua esquerda, Sá Carneiro. Nas janelas laterais, mais caras conhecidas: Salgado Zenha, Almeida Santos, Magalhães Mota, Medeiros Ferreira…
O primeiro-ministro iniciava o seu discurso: “É esta a resposta aos que combatem o vi governo ou que nele descreem. Raras vezes, na sua já longa história, esta praça terá sido cenário de tão maciça e homogénea manifestação de vontade. Interpreto-a no sentido de que o povo português quer o vi governo e quer que ele governe.”
Governaria por mais sete meses.
O ponto Quem viu pela televisão o discurso de Pinheiro de Azevedo, nessa tarde de novembro no Terreiro do Paço, não deixou escapar o pormenor: ligeiramente atrás dele, Mário Soares olhava para os papéis e ia repetindo, com um movimento silencioso de lábios, as palavras do primeiro-ministro.
“Não deve iludir-nos o sinal aparentemente revolucionário de algumas formas de luta que se nos têm deparado”, continuava o almirante. “A quem aproveitam a desordem e a confusão?_À revolução? Se, como penso, aproveitam à contrarrevolução, são objetivamente contrarrevolucionários os que promovem a indisciplina e dela se servem. (…) Tenhamos a coragem de reconhecer que os que estão cá dentro, e que são, decerto, o maior número, embora talvez não sejam os mais poderosos, estão sem dúvida vestidos de revolucionários e, para que deles se não suspeite, na pele dos que, aparentemente, mais o são. Estão entre os que assaltam as embaixadas e sedes de partidos, entre os que sequestram os membros do governo, entre os que paralisam o trabalho com reivindicações impossíveis, entre os que minam a disciplina militar, entre os que deformam a informação, entre os que perseguem cidadãos, entre os que assaltam casas dos antifascistas”.
Sá Carneiro sorria, beatífico.
Pinheiro de Azevedo já falava há meia hora. Uma bomba de gás lacrimogéneo rebentou junto ao Ministério da Justiça, na esquina da Rua do Ouro. A desinquietação tomou conta das pessoas. Houve quem abalasse em correria pela Rua do Arsenal. Um helicóptero rasou a praça e o seu ruído interrompeu o discurso. Os altifalantes pediam um médico para uma jovem desmaiada.
De súbito, uma coluna de militantes do Centro Democrático_Social quis juntar–se à manifestação de apoio ao governo. Instalou-se a confusão. Uma nova bomba explodiu. Pinheiro de Azevedo tapou a boca com um lenço. Houve uma tentativa de cantar o hino nacional. Baldada. Ouviram-se tiros de pistola. Os manifestantes viraram-se contra a Polícia Militar de forma agressiva. Os soldados dispararam para o ar. O ambiente era pesado.
Mário Soares dizia: “Foi uma granada lacrimogénea. É preciso dizer que não tem perigo.”
E o almirante, de imediato: “Não há perigo, o povo é sereno. É só fumaça! É só fumaça!”
Soares avisava: “Vem aí a PM…”
Azevedo respondia, perguntando: “Ainda não deram cabo desses gajos?”
E Soares: “Continue, senhor almirante…”
E o almirante:_“O povo é sereno. Não acabem. Só dois minutos para eu finalizar.”
De novo, Mário Soares:_“Acabar! Acabar!”
Pinheiro de Azevedo: “Eu quero ler o meu discurso todo! Ninguém arreda pé! Ninguém arreda pé!”
E Soares, apoiando: “Ninguém arreda! Agora vamos continuar. Termine! Termine! Agora vamos dizer VITÓRIA!”
Encerra o almirante: “VITÓRIA! VITÓRIA!”
Parecia o teatro: o protagonista precisando do ponto.
Três dias mais tarde, o major Cuco Rosa, da Polícia Militar, afirmava: “Tenho a situação na mão!” A situação era a saída de todos aqueles que tinham sido sequestrados pelo povoléu na Assembleia da República. Cá fora, a classe operária vigiava a libertação dos deputados. No centro dos acontecimentos, a discussão sobre o contrato coletivo vertical da construção civil, nomeadamente no que dizia respeito às tabelas salariais.
No dia 12 de novembro, quarta-feira, os operários desfilavam alegremente pelas ruas de Lisboa. Estavam em greve há dois dias. Ouviam aplausos ao longo do percurso. Dirigiram-se a São Bento gritando palavras de ordem: “Venceremos! Venceremos! Quatro mil e quinhentos – salário de fome!” Rua Augusta, Rossio, Restauradores, Avenida da Liberdade, Alexandre Herculano.
Lá dentro, no edifício da Assembleia, houve a insónia. Os trabalhadores, que rodearam a residência do_primeiro-ministro, encerraram igualmente o palácio, amarrando as portas com arames. Fecharam o governo dentro de si próprio. Exigiam ser recebidos, discutir as suas reivindicações. Ninguém dormiu. A manifestação prolongou-se por horas e horas, sem admitir brechas, nem cedências, nem manobras antirrevolucionárias.
Foi pelas cinco e meia da manhã que se escutaram os primeiros desabafos que se estenderam aos milhares e milhares de trabalhadores reunidos no Largo de São Bento. Tinham sido cem mil. A maioria deles já não dormia há mais de 40 horas. Vendo bem, a sua luta prolongara-se durante meses a fio. Pinheiro de Azevedo recebera os líderes da manifestação e ficara a par das suas exigências: construção do socialismo, defesa do trabalho, moralização do setor pondo-o ao serviço do povo, controlo operário sobre a produção e sobre a política de emprego.
Os jornais da época registaram que a reunião durou 180 minutos. Vá lá saber–se do rigor histórico. O primeiro-ministro tentou a todo o custo segurar as pontas do debate. Pediu aos representantes dos trabalhadores e aos elementos que faziam parte da comissão técnica do_Ministério do_Trabalho para evitarem qualquer afirmação menos propositada. Foi-lhe transmitido que, embora tivesse de se manter em contacto permanente com o Presidente da República e com o Conselho da Revolução, não estava autorizado a sair das instalações. Era o sequestro.
O debate foi aceso, apesar de tudo.
A tabela salarial proposta foi aceite pelo_governo, bem como as medidas de revigoramento do setor. É aí que, de repente, Pinheiro de Azevedo comete a gafe que marcou a sua vida. A frase assassina é: “O governo acedeu que até dia 27 será apresentada uma portaria para regularizar o acordo de trabalho porque não é possível chegar-se a um entendimento neste momento.” Foi o descalabro! Tentaria emendar o erro de imediato, dizendo: “O entendimento de que falo não é entre os trabalhadores e o governo, é entre os trabalhadores e empresários…” Tarde demais. Assobios, pateadas. Uns gritam: “Fascista! Fascista! Fascista!” E ele, irritado: “Bardamerda mais o fascista!”
Quarenta e dois anos mais tarde, um sobrinho citou-o. A despropósito.
O fim Na manhã do dia 13, as tropas do Copcon – Comando Operacional do_Continente, uma polícia política da extrema-esquerda, foram libertando os deputados. O maior movimento operário jamais visto em Lisboa mantivera-os fechados durante toda a noite. Os trabalhadores tinham redigido um comunicado que Pinheiro de Azevedo assinara sem objeções. Nele se referia que a comissão negociadora se tinha reunido com o primeiro-ministro e que este assegurara aos trabalhadores que a tabela salarial proposta pelos sindicatos estaria em vigor até ao dia 27 de novembro, conjuntamente com a aprovação pelo governo de projetos tendentes à revitalização do setor.
Vítor Crespo, ministro da Cooperação, fizera um pedido expresso aos manifestantes para não destruírem o património da Assembleia. Os acontecimentos caminhavam para o seu epílogo. Oitenta fuzileiros, sob as ordens do major Campos Andrade, são destacados para reforçarem o destacamento da Guarda Republicana que se encontrava em São Bento. Ainda há palavras de ordem à solta, de boca em boca: “Daqui ninguém arreda pé! Unidos venceremos!”
Uma última ordem vinda do sindicato: “Mantenham-se atentos! Até o contrato ser assinado, mantenham-se atentos!” Os deputados iam saindo a pouco e pouco do seu cativeiro. Pinheiro de Azevedo queixava-se: “Não gosto de ser sequestrado. É uma coisa que me chateia. E agora vou almoçar, pá!”