Cas Mudde. “Trump, Le Pen e Wilders são mais autoritários e nativistas que populistas”

Politólogo diz que o ressurgimento da extrema-direita na Europa e nos EUA distorce a definição de populismo

A viver nos Estados Unidos desde 2008, onde integra o Departamento de Estudos Internacionais da Universidade da Geórgia, na cidade de Athens, o professor Cas Mudde – um politólogo natural da Holanda – não escondeu o entusiasmo por voltar a pisar solo europeu e a primeira coisa que fez, mal aterrou em Lisboa, confessou, foi comprar bilhetes para poder assistir, no mesmo dia, a dois jogos de futebol, um “luxo” que diz não encontrar do outro lado do Atlântico. Em conversa com o i falou sobre o seu mais recente livro, escrito a meias com o professor Cristóbal Rovira Kaltwasser, intitulado “Populismo: Uma Brevíssima Introdução”, traduzido e editado pela Gradiva, e discorreu sobre a teoria e a aplicação prática de um termo que diz estar “na moda” pelos motivos errados. Pelo meio falou de Donald Trump, da União Europeia e do que pode aí vir com as eleições holandesas, marcadas para esta quarta-feira.

No livro defende que o “populismo é a má consciência da democracia liberal”. Explique-nos melhor.

Na maioria das vezes, o populismo responde a boas questões, mas fornece más respostas. Enquanto que o fascismo, por exemplo, é antidemocrático, o populismo é uma espécie de extremismo autoritário da maioria. Muitas das suas questões são colocadas sob o argumento de que quem governa o faz contrariamente ao que a maioria da população pensa. “Se a maioria governa realmente, porque havemos de fazer isto ou aquilo?”, “porque não estamos à altura de resolver os nossos problemas?”, questionam os populistas. É daí que vem a consciência democrática.

Também diz que o populismo pode ser amigo ou inimigo da democracia. Mas somos tentados a vê-lo como uma ideologia que tem um impacto exclusivamente negativo na democracia. Como se explica isso? 

Uma vez no poder, o populismo tem tendência para se tornar quase sempre problemático para a democracia liberal. Vimos isso com Hugo Chávez, na Venezuela, com Viktor Orbán, na Hungria, ou com Silvio Berlusconi, em Itália. De uma forma geral, o foco do populismo, num contexto de democracia liberal, é mais positivo numa posição de oposição e de desafio porque costuma reivindicar mais abertura, como a inclusão de vozes marginalizadas ou a realização de atos plebiscitários. Mas, uma vez no poder, polariza-se de forma rigorosa e rápida, marginalizando e deslegitimando tanto a oposição, como os media e os tribunais.

Falou nos media. Porque considera que a visão do populismo como uma conduta política amadora e pouco profissional surge principalmente na comunicação social?

Honestamente, não sei explicar. É um estereótipo que costuma ser enfatizado [nos media] provavelmente porque o populismo costuma implodir uma vez no poder, como o caso de Pim Fortuyn, na Holanda, ou do FPÖ [Partido da Liberdade] na Áustria. É verdade que há exemplos de movimentos populistas que tiveram sucesso, como o Partido Popular Dinamarquês, ou a Liga Norte, em Itália, e, claro, o caso de Orbán, que tem sido incrivelmente bem-sucedido na Hungria. Mas esses exemplos não costumam ser descritos como exemplos populistas nos media porque são exceções.

Como descreveria uma abordagem populista bem-sucedida? Aquela que traz determinadas questões para o debate público?

Claro, esse é o principal indicador de sucesso. Quer através da discussão de questões que os outros partidos não discutem – mas que a população considera serem importantes -, quer através do ressurgimento de temas antigos que os partidos do establishment pensam já ter resolvido ou retiraram do debate público, nomeadamente aqueles que transferiram para a esfera europeia e para os tribunais. E é por isso que têm sucesso. A contestação à austeridade, à integração europeia, à ausência de fronteiras ou ao Banco Central Europeu é afastada pela grande maioria dos partidos do establishment sob o pretexto de só existir uma abordagem possível, algo que é rejeitado pelos populistas: “Se a maioria da população quiser, poderá fazê-lo. É a democracia…”

…assente na volonté générale [vontade geral] da população, segundo a orientação do filósofo político Rousseau, que o professor descreve no livro. Como a sua aferição é feita através de uma determinada visão da realidade, esta pode ficar sujeita a interpretações discutíveis…

A criação ou a imaginação de uma determinada ideia coletiva – como a noção de nação ou de classes sociais – não é exclusiva do populismo. Mas, claro, no seu contexto, a ideia da “população” também é uma criação ou um estereótipo. É óbvio que se pode ser bem-sucedido caracterizando a população numa visão que não é partilhada pela maioria. Mas se eu disser, por exemplo, que todos os portugueses são preguiçosos, estúpidos ou muçulmanos, ninguém vai votar em mim porque isso não corresponde à realidade. Até porque as antigas distinções – como a de classes -, que dantes eram essenciais para descrever alguém no seio de uma sociedade, deixaram de ser relevantes. Hoje em dia, há muito pouca gente que se consegue descrever como pertencente a uma única ou determinada classe. E isso facilita a ação dos populistas, uma vez que as noções de “população” e de “nação” são hoje muito próximas. Numa sociedade de classes é muito mais difícil ser populista.

O termo “populismo” é uma das palavras da moda dos últimos tempos, utilizada quer pela comunicação social, quer pela classe política, e até pelo cidadão comum. Como avalia o impacto da vitória eleitoral de Donald Trump, nos Estados Unidos, nesta realidade?

Agravou ainda mais essa moda! A vitória de Trump – bem como o Brexit – fez de “populismo” a palavra mais referida na comunicação social anglo-saxónica, por exemplo, e o problema é que, nos dias que correm, parece que falamos exclusivamente sobre isso, como se não existisse mais nada. O populismo, enquanto tal, é “popular”. Mas a grande maioria dos “populistas populares” pertencem à direita radical…

Especialmente aqui na Europa…

Aqui, claro, mas Trump também faz parte dessa direita radical. Aquilo que os move a todos é o nativismo e as políticas propostas são mais nativistas que populistas. O populismo tem um papel importante nestes movimentos, é certo, mas é apenas uma pequena parte dentro da grande mensagem apregoada pelos atores populistas mais bem-sucedidos da atualidade. Reduzi-la ao simples populismo é desapropriado. E pode resultar numa caracterização do eleitorado, por ele seduzido, como alguém que só está indignado com a elite e não como alguém que está indignado com o facto de a elite, por exemplo, preferir ouvir os imigrantes em vez dele. Esta última caracterização envolve nativismo e autoritarismo, dois elementos que, na minha opinião, são mais relevantes que o populismo. Os casos do Syriza e do Podemos foram exceções, aí foi o elemento populista o mais relevante. Mas é interessante: estudo estes fenómenos há 25 anos e nas últimas duas décadas do século xx falávamos de direita radical, não de populismo. Hoje passa-se o contrário. 

Falou no Syriza grego, de Alexis Tsipras, e no Podemos espanhol, de Pablo Iglesias. À semelhança destes – e motivados pela vitória eleitoral de Trump -, também os franceses François Fillon, Marine Le Pen ou Emmanuel Macron se assumem como representantes do antissistema, uma posição central da abordagem populista. Terão encontrado no populismo uma nova forma de fazer campanha política e alcançar o sucesso?

Todos os populistas são antissistema, mas nem todos os que se definem como antissistema são populistas. Tsipras e Trump tiveram sucesso porque ser anti-establishment era popular, é verdade, e, nesse sentido, foram impulsionadores. As suas vitórias eleitorais foram justificadas pelo facto de também as pessoas se sentirem dessa forma. Mas a maioria do discurso antissistema é oriundo do próprio establishment, incluindo o establishment cultural – os media – ou o político. Na Holanda temos um partido chamado D66, fundado em 1966, um clássico partido antissistema que falou pela primeira vez na existência de um fosso entre a elite e a população. Não eram populistas, uma vez que não entendiam a população como uma entidade homogénea, mas trouxeram esta discussão do establishment e anti-establishment para o debate público, há mais de 50 anos, que agora está a ser recuperada. 

A consolidação de um movimento antissistema não acaba por integrá-lo, inevitavelmente, dentro do próprio sistema?

O populismo constrói ideias de elite e da população tais que não é importante se está no poder ou não. O que importa é o posicionamento moral. Um populista bem-sucedido até pode ser eleito e, ainda assim, conseguir criar a ilusão de que existe uma elite obscura que está a contrariar a volonté générale. Hugo Chávez fê-lo com grande sucesso, contra o poder económico do sul da Venezuela. Ser bem–sucedido não implica, necessariamente, a perda de uma posição antissistema. Mas para que isso possa acontecer, o que é preciso é que o líder tenha uma capacidade oratória extraordinária e que aquilo que apregoa tenha um elo de ligação mínimo. As teorias da conspiração só têm sucesso se existir um núcleo e um mínimo de verdade que possa ser interpretada de uma determinada forma. Se não existissem judeus com poder, o antissemitismo não existiria, é óbvio. Com a criação da posição antielite e antissistema passa-se exatamente o mesmo. 

Escreveu que não existe um protótipo de populista. Mas ser uma figura carismática não costuma ser regra entre os líderes populistas?

Alguns dos atuais líderes populistas bem–sucedidos não são particularmente carismáticos. A maioria dos gregos dirá que Tsipras não era um tipo carismático antes de ser eleito. Pia Kjærsgaard, por exemplo, liderou o Partido Popular Dinamarquês durante muito tempo e é uma das mais bem-sucedidas líderes da extrema–direita europeia, mas não é nada carismática nem na forma nem no conteúdo. Todos os partidos populistas que tiveram sucesso têm, isso sim, líderes fortes e atrativos. A cada vez maior relevância do carisma tem que ver com a necessidade dos partidos de terem de vender os seus candidatos através dos media, algo que é muito comum na política moderna. 

O sociólogo Max Weber disse que as lideranças carismáticas costumam surgir em períodos de crise. Serão esses períodos os palcos ideais para o aparecimento de movimentos populistas? 

Sim, é verdade, mas o termo “crise” é problemático e subjetivo. Uma crise é, na realidade, a sua perceção. Trump, por exemplo, prometeu tirar os Estados Unidos da crise e, quando lhe pediam mais explicações sobre a mesma, ele não as oferecia e não se importava com isso. As pessoas acreditaram no “The Donald” e acreditaram que o país estava em crise quando, na realidade, não está de maneira nenhuma. Nem sequer está em crise económica. Mas Trump levou o eleitorado a acreditar que esta era a última eleição das vidas deles e que, caso fosse derrotado, Hillary Clinton iria abolir as eleições para sempre. A sua perceção está ligada a outras atitudes e posicionamentos que são mais relevantes que a própria crise. Não deixa de ser extraordinário ver que em todas as décadas acontece sempre uma qualquer crise. Na Europa, a mais recente construção tem origem na islamofobia. Se acreditarmos mesmo nos que dizem que 25% da população europeia é composta por extremistas islâmicos, então encontramo-nos, de facto, em crise. O argumento de Weber tem, por isso, de ser bem contextualizado.

Num artigo de opinião que escreveu para o “The Guardian” disse que as eleições holandesas passaram das “mais aborrecidas da Europa ocidental” para as que agora “vão montar o palco” para as eleições francesas e alemãs. De que forma o resultado do próximo dia 15 de março poderá influenciar a França e a Alemanha?

Em primeiro lugar, vão influenciar as eleições francesas e, se a França se alinhar com o que se passar na Holanda, o efeito poderá derrapar para a Alemanha. Mas quando falo na eventual influência do resultado das eleições holandesas faço-o do ponto de vista do debate que marcará as semanas que antecederão a eleição presidencial em França. Se Geert Wilders [candidato do xenófobo e eurocético Partido da Liberdade (PVV)] vencer, toda a atenção da comunicação social francesa e internacional assentará na seguinte questão: “Conseguirá o statu quo sobreviver ao desafio imposto pelo populismo de extrema-direita?” Mas se Wilders perder, as perguntas serão outras: “Será que o radicalismo populista de direita foi derrotado? Terá sido 2016 o ano da extrema-direita?” Nesse sentido, as eleições na Holanda vão definir a agenda e “montar o palco”. De qualquer forma, caso Le Pen não consiga chegar à segunda volta das presidenciais, essa será a narrativa de 2017.

Falando agora no âmbito da política interna, como vê a possibilidade de a Holanda poder vir a ter um parlamento onde o PVV de Wilders é o maior partido, em confronto com um governo composto por quatro ou cinco partidos?

A política holandesa sempre foi muito fragmentada, independentemente de uma eventual vitória de Wilders. O principal problema é que, de acordo com as sondagens, não devemos conseguir ter um único partido com mais de 20% dos votos.

Concorrem 28 partidos à Câmara dos Representantes…

Sim, e provavelmente 14 deles vão conseguir entrar no parlamento. Sempre tivemos muitos partidos com representação parlamentar, mas normalmente temos dois grandes, alguns médios e vários pequenos. Desta vez parece que vamos ter dois partidos médios, um par de partidos pequenos e inúmeros partidos de expressão muito reduzida. Isto significa que o governo deverá ter cinco ou seis partidos – que englobarão representantes de todo o espetro político, desde conservadores aos libertários e até aos verdes – sem que haja um que consiga ser evidentemente dominante. Dificilmente se conseguirá aprovar grande coisa e isso não ajuda ninguém. É natural que as pessoas estejam confusas na Holanda. Um dos números mais espantosos destas eleições é o que aponta para que 50% das pessoas não sabia em quem votar a dez dias da realização das mesmas. É inacreditável, nunca aconteceu!

Imagino que os que se sentem mais próximos das propostas de Wilders já deverão ter decidido. A dúvida poderá estar nos restantes eleitores. 

Provavelmente, sim. Os segundos não se sentem particularmente inspirados por qualquer partido, é um facto. Mas a própria queda de Wilders nas sondagens, nos últimos dias, também pode levar os seus prováveis eleitores a duvidar. Nesse sentido, até podemos testemunhar uma votação em que Wilders tanto pode ficar em primeiro como em quinto.

Quer dar-nos o seu palpite?

Penso que Wilders não vai ganhar. Mas também não estou muito interessado no resultado.

Porquê?

Na Holanda, não importa muito se o PVV for o mais votado.

Já que isso não implica uma entrada no governo e os principais partidos já descartaram convidar Wilders…

Claro, e isso é perfeitamente democrático. Na Holanda não elegemos o primeiro-ministro, mas sim o parlamento, e, por isso mesmo, terá de ser o parlamento a encontrar uma maioria. É óbvio que uma vitória de Wilders lhe dará alguma vantagem, por ser o maior partido. Mas com os 17% dos votos que se preveem será difícil impor essa condição, uma vez que o segundo partido mais votado deverá ter 16%. Isso só seria um problema se a nossa eleição fosse uma corrida para primeiro-ministro. Mas não é esse o nosso sistema nem acho que deva ser.