Depois de dois anos e dois meses de investigação, a Procuradoria Geral Distrital de Lisboa revelou ontem, numa nota online, que já foi proferida uma acusação no inquérito ao surto de legionela que assolou o concelho de Vila Franca de Xira em 2014. Sete pessoas e duas empresas (a Adubos de Portugal e uma firma responsável pelo tratamento de água) foram indiciadas pelos crimes de infração de regras de conservação e ofensas à integridade física. Mas o Ministério Público só conseguiu apurar nexo de causalidade entre as torres de arrefecimento contaminadas e 73 vítimas, entre as quais oito pessoas que morreram. Isto quando o balanço oficial do surto por parte das autoridades de saúde apontou para 403 pessoas afetadas e 14 mortes, um dos maiores surtos de sempre a nível mundial.
Ouvidos ontem pelo i, os autarcas Santa Iria/Forte da Casa e Vialonga disseram esperar que, agora, a justiça avance. A nota da PGDL informa que o MP requereu o julgamento dos arguidos, mas foi determinado o arquivamento parcial do inquérito, nomeadamente quando à verificação de um crime de poluição ambiental, hipótese que chegou a ser avançada em pleno surto pelo então ministro do Ambiente Jorge Moreira da Silva. “A culpa não pode morrer solteira”, disse ao i Jorge Ribeiro, presidente da junta de freguesia da Póvoa de Santa Iria/Forte da Casa, que registou o maior número de vítimas. “O que se passou foi muito grave e o que dissemos sempre foi que os responsáveis tinham de ser apurados e as vítimas ressarcidas na medida do possível”, diz Jorge Ribeiro, que apela ainda que na sequência do andamento do caso na justiça o governo aperte também as medidas de fiscalização das unidades fabris. “Tivemos nos últimos dias conhecimento de mais um surto de legionela na Maia, o que mostra que isto pode acontecer em qualquer lado”, sublinha Jorge Ribeiro, que defende que o governo deve aproveitar este caso para repor as inspeções obrigatórias. Recorde-se que em 2013, a legislação sobre a qualidade do ar interior tinha sido alterada. Jorge Ribeiro sublinha o envolvimento das freguesias, câmara de Vila Franca e do hospital em todo o processo mas questiona se não seria expectável maior proximidade do governo central nos últimos dois anos em que a investigação se arrastou. “Além das pessoas que morreram, muitas deixaram de trabalhar e outras ficaram com sequelas para o resto da vida”. Também José Gomes, presidente da junta de freguesia de Vialonga, espera que agora se faça justiça. “Até que enfim apareceu um culpado. Espero que traga maior atenção para o processo”, disse ao i o autarca.
Confrontados com o facto do MP só ter conseguido estabelecer ligação a 73 vítimas e oito mortes, os autarcas dizem que caberá agora aos serviços jurídicos fazerem o acompanhamento das vítimas no contencioso.
Associação indignada Em janeiro, algumas vítimas do surto criaram uma associação para apoiar as famílias neste processo. Ontem, Joaquim Ramos, presidente da AAVL – Associação de apoio às vítimas do surto de legionela de Vila Franca de Xira -, mostrou surpresa pelo facto de os lesados só terem tido conhecimento da acusação pela imprensa. “A nossa advogada não foi notificada e não conseguiu ter acesso ao processo”, disse ao i, falando de um clima de indignação. A associação representa atualmente 30 vítimas e pretende saber o que acontecerá às pessoas para as quais o MP não encontrou nexo de causalidade. “Quando criámos a associação, pensámos que a justiça estava a demorar mas que iria ser uma investigação bem feita. Agora parece que alguns vão ter de fazer investigação à sua conta”, diz Joaquim Ramos, remetendo mais informação para quando tiverem acesso ao processo.
Na nota da PGDL, é referido que a investigação se revestiu de “excecional complexidade técnica e científica”. O desenvolvimento e propagação da bactéria em causa, pela forma descrita, ocorreu devido às omissões conjugadas dos diversos arguidos constituídos, no cumprimento, que se lhes impunha, das regras técnicas e melhores técnicas disponíveis, divulgadas e comummente aceites pelas comunidades científica e empresarial, constantes, entre outras, no documento “Prevenção e Controlo de legionela nos Sistemas de Água – CS/04”, elaborado pelo Instituto Português de Qualidade do Ministério da Economia. Entre as omissões, destacam-se falhas na limpeza física e desinfeção das estruturas/componentes dos circuitos de arrefecimento, incluindo a utilização de produtos biodispersantes, controlo microbiológico eficiente, mediante a realização de análises periódicas, incluindo à bactéria legionela, e tratamento da água daqueles circuitos.
Ontem houve também mais novidades sobre o surto de legionela numa fábrica de componentes automóveis da Maia, por agora de dimensões bem menores. Até ao momento foram confirmados três casos da chamada doença dos legionários, complicações respiratórias causadas pela bactéria legionela.
Desde a instrução do inquérito tinham sido anexadas ao processo mais de 200 participações individuais de vítimas, que esperam vir a ser indemnizadas. As vítimas cujo nexo de causalidade tiver sido provado, podem agora constituir-se como assistentes.