“É impossível pensar no filme sem a Sônia.” Sônia Braga não sai da cabeça de Kleber Mendonça Filho nem da nossa. Da de ninguém que veja “Aquarius”, segunda longa-metragem do realizador do aclamado “O Som ao Redor” que se estreou em Cannes e chega hoje às salas portuguesas com, provavelmente, o melhor papel em que já vimos Sônia Braga, que é Clara, uma viúva de 65 anos, crítica de música reformada, última moradora do Aquarius, edifício da década de 1940 em frente ao mar, na Avenida da Boa Viagem, no Recife, que uma construtora quer transformar num novo empreendimento. Mas Clara resolve dizer não, Clara resiste como resistiu a um cancro. “E, nesse clima, dizer não vira um ato político”, como virou este filme.
Como acontecia já em “O Som ao Redor”, também em “Aquarius” nos deparamos com um confronto entre duas ideias de Brasil. De onde veio a vontade de fazer este filme?
Penso muito na maneira como o mercado tenta moldar a nossa vida. Vivemos numa sociedade moderna e fazemos parte do mercado enquanto consumidores mas, quando o mercado opera numa escala mais larga que envolve, por exemplo, o desenho da cidade e o estilo de vida das pessoas, começa a pré-desenhar para o lucro, a fazer coisas que servem apenas para que as metas comerciais sejam alcançadas. E aí o mercado passa a criar uma série de narrativas que acabam moldando a vida das pessoas. É uma coisa que já abordei no “Recife Frio”, uma curta que eu fiz sobre a coisa do shopping center, um espaço privado que é cada vez maior – e é muito interessante ver como, para promover o shopping center, são divulgadas muitas notícias de insegurança nas ruas e de crime. O Recife, que é uma cidade tropical, está de tal modo dominado por shoppings que quando você vê uma dessas placas de trânsito tem, por exemplo, Olinda, uma cidade próxima do Recife, Graças, que é um bairro, e tem “Shopping RioMar”. É muito impressionante como essas narrativas estimuladas pelo mercado vão alimentando a vida das pessoas. Passear no shopping já virou uma coisa absolutamente normal, não mais na rua ou no parque. A história do “Aquarius” é sobre alguém que diz não quando se tem a certeza absoluta que a pessoa diria sim, porque todo o mundo já está preparado para receber as propostas de uma construtora que bate à porta e diz “a gente tem uma oferta que você não vai recusar, esse prédio está velho e a senhora vai amar saber que o novo prédio que a gente vai construir aqui vai se chamar Aquarius também”, para preservar a memória do lugar. O problema começa quando ela diz não, ela não está interessada. E, nesse clima de mercado forte, dizer não vira um ato político. Não devia ser um ato político, mas termina sendo. Essa é a grande questão.
O edifício que escolheu para rodar o filme, o último deste género que sobra em toda a marginal do Recife, chama-se Oceania. O nome que lhe deu, Aquarius, remete também de alguma forma para essa ideia de espaço fechado?
O título respeita uma tradição litorânea dos anos 1930, 40, 50, 60, dar aos prédios nomes associados ao mar e à cultura praieira. Tem edifício Jangada, por exemplo, dos Navegantes, Atlântico… Aquarius era um desses edifícios, não existe mais. Em outros lugares do Recife tem outros edifícios Aquarius, as pessoas até mandam fotos pelo Facebook.
Depois de estrear o filme foram já publicadas várias reportagens sobre o “verdadeiro Aquarius”, que ao longo dos anos tem sido alvo de grandes pressões imobiliárias, da mesma maneira que a personagem de Clara tem um pouco da história de Aronita Rosenblatter, uma mulher da mesma idade que vive no Oceania há 42 anos e que teve de lutar por isso. Como é que chegou a ela e ao Oceania?
Aquela área é tão densamente habitada que até eu já recebi cartas de escritórios de advocacia, dizendo que representavam grupos de construtoras, perguntando se não teria interesse em negociar o meu apartamento. [O filme era para ser rodado num] outro edifício, o Caiçara, que foi demolido quando eu estava escrevendo o roteiro, em 2013. Fiquei sem prédio para fazer o filme e o único que sobrou de nove quilómetros de praia com um desenho antigo e que fotografaria correto para o filme como prédio histórico foi o Oceania, onde durante os anos 90 vários moradores foram procurados por uma construtora que conseguiu comprar vários apartamentos. Uma dessas pessoas era a Aronita, que encheu o saco deles e não saiu até hoje. Tem seis famílias morando no prédio, mas são 14 apartamentos. O que aconteceu agora foi que o filme tomou o prédio, muita gente tira foto na frente do prédio por causa do filme. É uma coisa boa.
Como o não de Clara, também este filme é um ato de resistência, uma chamada de atenção para a importância de preservar a história que também contam os edifícios?
É um comentário sobre o mercado. Eu tenho ficado em muitos hotéis agora e tem uma nova tendência que acho estranhíssima – aconteceu nos últimos três hotéis onde fiquei -, que é enchê-los de objetos vintage. Você tropeça, que é isso? “Projetor de 16 mm”, aí, lá na frente, uma máquina de dactilografia. Tudo assim muito estranho, uma paixão pelo vintage analógico. E Clara fala isso, “quando você gosta, é vintage; quando você não gosta, é velho”.
Isso traz-me à memória o momento em que ela vê o título da entrevista que deu a um jornal em que mostra toda a sua coleção de discos, que depois é sobre MP3.
“Eu adoro MP3” [risos]. Às vezes, você explica algo com tanto cuidado e depois vê que a pessoa didn’t care e escreve qualquer coisa. Nessa personagem, que na verdade é sobrinha do amigo dela, pensei nessa coisa do jornalista que já sai com a matéria pronta. Acho quase triste que Clara conte toda uma história e, quando conta para a jornalista, ela não está sintonizada nessa história.
Mas essa é toda a história da resistência de Clara no “Aquarius”.
Quando a filha dela vai deixar o neto e diz “mas você pintou a fachada do edifício?” [e Clara responde, pausadamente] “ela não percebeu que eu pintei a fachada do edifício”. I don’t care, não me interessa, infelizmente é assim.
E no meio disto Clara é quase apresentada como louca.
Tristemente através dos filhos, como se fosse a doida do Aquarius. Seria como alguém alguém chegar aqui e dizer, “Cláudia, eu quero sentar nessa cadeira, te dou dez euros”, “mas eu não estou interessada em sair, estou sentada a fazer uma entrevista”, e aí você é a chata. A questão de Clara é que ela tem um poder de classe, financeiro até, para poder dizer não, mesmo entendendo que a comunidade na qual ela viveu sempre foi asfixiada. Muita gente de direita critica a Clara, chamando-a de egoísta, porque Clara está atrapalhando [a construção de] um novo prédio que pode dar lugar a muitas famílias. O que eles não lembram é que o Aquarius foi assassinado pela construtora num processo criado em laboratório: lentamente esvaziado através de um processo de ofertas de mercado que as pessoas aceitaram, mas que faz parte de um plano. O Aquarius não morreu de causas naturais, foi asfixiado, como uma planta em que você deixa de colocar água e vai morrendo.
Clara parece em tudo uma personagem construída à medida de Sônia Braga. O argumento foi influenciado pela escolha da atriz?
Ela foi muito boa para o filme e o filme foi muito bom para ela. A Sônia é incrível como pessoa, como mulher, como gente, como estrela, como atriz. E estranhamente, no início, eu pensava numa Clara que não fosse uma atriz profissional, mas logo vi que não era uma boa ideia.
Porquê?
Gosto muito da ideia de descobrir alguém incrível que ninguém conhece no cinema porque isso gera quase a sensação de fazer uma amizade, mas isso tudo é teoria. Acho que nesse caso era uma má ideia porque o personagem escrito no roteiro exigia uma atriz profissional muito “foda-se”, muito forte. E quando entendi isso, sim, a Sônia foi a número um da lista. O que ajudou muito foi a reação dela ao roteiro, maravilhosa. Sabe quando alguém lê um roteiro e entende tudo? Isso é muito bom e muito raro.
Esse encontro está muito presente no filme.
Hoje é impossível pensar no filme sem a Sônia. Houve uma combinação fantástica de várias coisas. Ela entendeu emocionalmente o roteiro, pessoalmente, politicamente, sexualmente, ela queria fazer o filme, essa é a grande questão. Quando conversámos, eu senti muita segurança nela, ela sentiu muita segurança em mim e partimos para o filme, que foi uma experiência muito forte. A maior coisa que posso te falar é que somos amigos hoje e eu não conhecia a Sônia. Conhecia como conheço, sei lá, Al Pacino. A responsabilidade foi bem grande e o maior receio foi antes de mandar o roteiro para ela. Se tivesse recebido um não ficaria muito triste porque já tinha o filme todo na cabeça.
Entre o resto do elenco encontramos atores com quem já tinha trabalhado antes, a Maeve Jinkings, por exemplo. Interessa-lhe ir construindo essas relações de filme para filme?
Tanto “O Som ao Redor” como este foram experiências tão felizes de juntar pessoas boas que a vontade que eu tinha era de começar um outro filme para continuar com as mesmas pessoas. Isso não é possível porque cada filme é um filme, cada papel é um papel e cada ator é um ator, mas para mim é muito natural chamar atores para voltar a trabalhar com eles. Por exemplo, para um ator como o Irandhir [Santos, que em “Aquarius” é Roberval], que no Brasil tem um estatuto já muito alto, é muito requisitado, tive um pouco de receio de achar que o papel não era tão grande, mas ele deu uma gargalhada e disse: “Deixa de frescura, vamos fazer esse filme.” Acho que o papel dele acaba sendo não maior do que eu pensava, mas gosto daquele personagem. O salva-vidas que era amigo de Clara, sempre na praia, meio confidente.
O momento em que estreia “Aquarius” dá ao filme um caráter mais político ainda do que aquele que tinha à partida. Houve o protesto em Cannes e a polémica da não indicação deste filme como candidato brasileiro ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, o que foi interpretado como uma retaliação. Sente que foi mesmo?
Foi incrível o que aconteceu, uma grande combinação de factos. Essa retaliação, hoje, é interpretada como uma sabotagem do próprio cinema brasileiro porque o “Aquarius” é o filme de maior prestígio brasileiro em muitos, muitos anos, e seria naturalmente o filme para representar o Brasil nos Óscares. Quando a Anna Muylaert retirou o filme dela, “Mãe Só Há Uma”, e o Gabriel Mascaro retirou o “Boi Neon”, foi um ato político que eles fizeram dizendo “o filme é esse”. A comissão pegou um outro filme que não teve e não tem até hoje nem terá nenhum prestígio internacional. No sábado, eu estava em Londres, hoje estou aqui, estava na França há um mês… o filme está comercialmente em 67 países. Estreou-se na Espanha na semana passada, esta semana estreia-se em Portugal, na próxima na Inglaterra. Se o Brasil preferiu não ser representado por ele nos Óscares, é uma escolha deste governo.
Ainda agora, em Berlim, os realizadores brasileiros fizeram um protesto contra este governo. Em que medida acha que a presidência de Michel Temer pode afetar o cinema brasileiro?
Essa é a grande discussão da comunidade do cinema brasileiro. Não há indícios para crer que alguma coisa mudará, até porque os frutos do investimento inteligente dos últimos 10, 15 anos estão sendo colhidos agora: Berlim teve 12 filmes brasileiros em todas as secções, Roterdão tinha sete filmes, o “Aquarius” e o “Boi Neon” [estão a ter sucesso] internacionalmente, ainda “Que Horas Ela Volta?” [2015, Anna Muylaert], seria muito estranho fazerem alterações em algo que está funcionando. O cinema brasileiro voltou a ter uma visibilidade nos últimos anos que estava ausente. Há dez anos era normal não ter um filme em Berlim.
Mas sente agora um dever acrescido de fazer um cinema mais interventivo, mais político?
Já fiz vários tipos de filme, mas acho que faz parte, que é um traço pessoal meu abordar temas que fazem parte da realidade das pessoas e, ao fazer isso, você termina fazendo um filme político. Não acho que o “Aquarius” fosse um filme tão político desde o início, acho que se tornou pelas circunstâncias.
De qualquer forma, a par da questão do urbanismo, do que é velho e vintage, como diz Clara, a questão das desigualdades está muito presente. Quando Diego [Humberto Carrão] diz a Clara que, olhando para ela, dá para perceber pela sua “pele mais morena” que a sua família teve que lutar muito para chegar onde chegou, ou a questão da corrupção. Ao dizer que não era um filme muito político, quer dizer que estas referências são apenas um espelho da sociedade brasileira, mais do que uma crítica?
Acho que é mais um espelho do que é o Brasil. A corrupção é endémica no Brasil, está em pequenas coisas do dia-a-dia. Você estaciona o carro e, quando volta, tem um rapaz esperando que você dê dinheiro para ele, faz parte. Aí você coloca isso num filme e já virou questão política, mas na verdade é só o cara indo pegar seu carro que dá um euro e sai. É normal, faz parte.