João Cláudio, 21 anos, dirigiu desde a adolescência o coro da paróquia de Castanheira de Pera. No início do ano foi afastado pelo padre e pelo conselho económico da igreja, que acusa de discriminação por ter publicado na internet fotografias com o namorado, que também pertence ao coro. Em entrevista ao i promete continuar a denunciar o caso.
Começou a aperceber-se da sua homossexualidade quando estava no 9º ano. Como lidou com isso?
Há uma contrariedade inicial. Tanto houve que até tive uma namorada. Nunca consegui assumir enquanto estive em Castanheira. Quando fui para a faculdade é que me apercebi que havia um mundo diferente. Falei com psicólogos e com pessoas que achei que podiam ajudar-me a “perder” essa orientação [sexual]. Sentia-me incompleto e acabei por cair numa depressão. Até podia tentar dizer “sou bissexual”. Não sou. Sou mesmo homossexual e era importante assumir isso. Ir para a faculdade e conhecer outros mundos ajudou-me nesse processo.
Até chegou a enviar mensagens a padres brasileiros a pedir ajuda.
Sim, prometem a cura para este “mal” (risos).
Como era a relação com a sua família?
A minha mãe diz que estranhou mais quando eu lhe disse que tinha uma namorada do que agora, quando lhe disse que tinha um namorado. Aceitou bem, o meu pai demorou um mês a consentir.
E como conheceu o seu namorado?
É meu amigo de infância. Quando fui para a faculdade, ele continuou na Castanheira e perdemos a ligação, mas a dada altura retomámo-la. Eu tenho muitos jeitinhos, sou muito agitado, e ele também tinha. Percebi que era gay, mas não me passou pela cabeça ter nada com ele na altura, éramos os melhores amigos. Somos namorados há dois anos.
Foi vítima de atos homofóbicos?
Na escola. De resto, a única vez que senti isso foi em Paris: uns homens passaram por nós e gritaram qualquer coisa que não percebi. Mas, no mesmo dia, passaram por nós pessoas que nos abraçaram. Tivemos as duas experiências.
Foi com a viagem a Paris, em janeiro de 2016, que começam os problemas. Publicou fotografias em que surgia com o seu namorado e as pessoas da freguesia começaram a comentar. Qual foi o primeiro impacto quando regressou a Portugal?
Comecei por ficar chateado com várias pessoas, diziam coisas horríveis. À minha frente nunca me disseram nada, mas nos cafés eu era o assunto principal. Passado um tempo, à medida que as coisas iam piorando na igreja, as pessoas foram começando a aceitar. Na generalidade, a coisa acabou por passar.
Diz que o padre José, que até aqui estava à frente da paróquia, falou consigo e contou-lhe que conhecia pessoas que tinham essa “doença”. Como reagiu?
Achei despropositado. Ele não é obrigado por ninguém a dizer aquilo, o padre tem de assumir a responsabilidade daquilo que diz, mas acho que foi influenciado. Disse-me que tinha um amigo que era homossexual e que conseguiu tratar-se através da organização do Caminho Neocatecumenal. É um movimento da Igreja, com uma fé mais profunda e características diferentes. Eu participei no Caminho mas, quando comecei a sentir-me mal naquele ambiente, afastei-me.
É um grupo mais radical?
O Caminho Neocatecumenal está ligado aos catecúmenos. O povo cristão, quando iniciou o seu processo de evangelização, foi oprimido e escondia-se nas catacumbas, nos esgotos das cidades, e era lá que realizavam as missas, os batizados, etc. Sim, é um pouco mais radical – defendem que há um homem velho antes do caminho e um novo depois de este ser percorrido. Eu fiquei mesmo um homem novo, mas acho que não foi por causa da lavagem que eles me queriam dar (risos).
Mas há lavagens cerebrais neste grupo?
Em Castanheira, isso não acontece, acho que nunca houve esse intuito.
E durante as missas chegou a perceber se havia mensagens dirigidas a si?
Sim, houve uma em que eu até saí. As coisas já estavam muito sérias e o padre começa a fazer uma homilia sobre o homem e a mulher. Se a Igreja for literal na interpretação da palavra de Deus, tornamo-nos o novo Estado Islâmico, matamos toda a gente. O Estado Islâmico atua segundo o Levítico, o Deuteronómio e o Génesis deles, da Torá, da lei. Há um salmo que diz “Deus ampara os órfãos e as viúvas” – quem eram eles naqueles tempos? Eram as minorias. Se fosse escrito hoje, dir-se-ia que Deus ampara os homossexuais, as minorias étnicas, etc. Mas se querem ser literais com as pessoas, também têm de ser lá dentro.
Chegou a dizer-se que bateu no padre José.
Nunca bati em ninguém, quanto mais no padre. Apenas uma pessoa, aquela que achamos que está por detrás desta história toda, assistiu a isto. Naquele dia, o padre já estava irritado com alguma coisa, nunca o tinha visto assim. Não deixava cantar o salmo, não sei porquê. O que aconteceu é que eu estava com o missal na mão, estava a dizer-lhe que não podia excluir o salmo, e ele agarra–me durante a discussão. Para o afastar, bati com o missal em cima do armário. Não tenho dúvida nenhuma de que foi o tesoureiro, a tal pessoa que estava presente, que criou este boato. Ele ia para os cafés fazer comentários sobre mim.
Esta pessoa continua na igreja?
Sim. No dia da primeira manifestação, uma senhora, muito exaltada, entrou na sacristia a gritar com todos e ele apertou-lhe o pescoço para a calar. E o vigário estava presente e disse que não viu nada. E diz que não pode atuar porque não houve uma queixa feita pelo padre.
Acha que há uma proteção entre todos dentro da igreja?
Claro. O tesoureiro funciona como intermediário da câmara, da junta de freguesia, e aquilo é um meio pequeno, a igreja depende muito das outras instituições. Em relação ao trabalho dele como intermediário, não tenho nada a apontar: a igreja está tratada, está pintada, tudo impecável. Mas ele é tesoureiro, não é administrador.
Acha que poderão tentar afastá-lo de forma definitiva usando diretamente a questão da homossexualidade?
Acho que não. Eu já disse que vou apresentar uma queixa no Ministério Público por causa da acusação de roubo e desobediência, que foi o que alegaram. Se falassem numa questão de sexualidade, obviamente que também apresentaria queixa. Era mais uma guerra.
Acha que a diocese vai ceder e acabar por dar um parecer que lhe é favorável?
Aos poucos e poucos, já se notam algumas mudanças. O vigário disse que queria falar com a Piedade [membro do coro que tem estado presente em todas as reuniões em que este assunto é discutido] para terminar uma conversa que tinha ficado a meio. Vamos ver qual será o resultado, mas acho difícil que cedam por completo. Por agora, vamos continuar a ir à missa vestidos de preto.
Se o aceitassem de volta como maestro do coro, voltava?
Pelas pessoas, sim; por eles, não voltaria nunca.
O seu namorado continua no coro.
Sim, e nunca foi alvo de repressão. Eles [o conselho económico] sabem perfeitamente que, se eu sair, saímos todos. Costumo dizer que são todos meus discípulos, vieram todos depois de mim. É o coro das divorciadas, das maltratadas, etc. A primeira vez que pus uma senhora divorciada a cantar o salmo houve muita gente que ficou chocada. Mas que Igreja é esta? Não estamos no século xvi.
Mas acha que tem existido uma evolução na Igreja?
A Igreja não mudou nada. Continuamos com os mesmos problemas, as mesmas crises. Vem aí o Papa Francisco, numa grande cerimónia, e que mudanças vamos mostrar? Nenhumas.
Acha que há alguma hipocrisia?
Completamente. Sabemos que é uma festa fantástica, que vai ser ótimo monetariamente, mas o que é que mudámos? Que mensagem é que vamos transmitir ao Papa? Que de há 100 anos para cá mudámos as missas para português? Nos últimos 10, 20, 30 anos não houve qualquer evolução.
Sabe se existem muitos homossexuais na Igreja?
Sim, mas não estou a referir-me especificamente a padres. Fundei um grupo de música litúrgica no Facebook e conheço dezenas de gays ligados à Igreja. A igreja depende de homossexuais, porque há muitos que desempenham funções [de relevo]. Tanto que agora dizem que ser homossexual não é punível, ter uma relação homossexual é que é.
Tem conhecimento da existência de grupos de católicos homossexuais?
Não conhecia, mas agora tenho sido convidado para participar em alguns. Tenho recebido muitas mensagens de apoio. Para já, não tenciono participar em nenhum, depois logo se vê.
Vai cortar relações com a Igreja?
Eu tenho fé, acredito que há algo de bom que nos liga uns aos outros. Mas em relação à instituição, aquilo que fizeram comigo não é justo e ficarei sempre com essa mágoa. Se sair definitivamente, continuarei um homem de fé, mas nunca mais porei um pé numa igreja.