AIgreja da Graça está a meia luz. É um dia da semana, um fim de tarde com muitos turistas a desfrutar do pôr do sol no miradouro. Dentro da igreja, reina o silêncio. Na ala direita, a imagem do Senhor dos Passos está de volta ao seu camarim. Há dias, percorreu as ruas da cidade, três quilómetros de uma tradição que há 430 anos se repete pela quaresma e tem vindo a ganhar nova vida. No domingo passado, Marcelo Rebelo de Sousa, Fernando Medina e Assunção Cristas participaram no cortejo, presidido por D. Manuel Clemente.
De novo no lugar, a imagem de Cristo enverga a túnica roxa que todos os anos é substituída por altura desta grande procissão por Lisboa, uma das mais antigas. A nova túnica ali permanecerá até ao próximo ano, quando se repetir o ritual. A aia do Senhor dos Passos, há gerações uma mulher da família Mascarenhas, despirá então a imagem e os irmãos dar-lhe-ão as novas vestes. No passado, o aio do senhor – por inerência o Cardeal Patriarca de Lisboa – deslocava-se à igreja para tratar destes últimos preparativos e limpar a imagem com um pincel especial e atoalhados de linho.
É feita destes pequenos gestos simbólicos a alma da Real Irmandade da Santa Cruz e Passos da Graça, a organização de leigos fundada em 1586 pelo pintor Luís Alvares de Andrade. É uma das irmandades mais antigas do país e foi a primeira dedicada ao Senhor dos Passos em Portugal, evocando assim as provações de Cristo antes da morte e ressurreição.
São eles que organizam a procissão e, logo no camarim onde está a imagem de Cristo, é possível avistar o emblema destes irmãos unidos pela evocação da penitência: uma cruz com o santo sudário, véu onde os cristãos acreditam que terá ficado gravado o rosto de Cristo quando Verónica, mulher que se cruzou com Jesus enquanto este carregava a cruz até ao calvário, o limpou com misericórdia. Na insígnia dos irmãos há ainda os chamados instrumentos da paixão, a lança com que Jesus foi trespassado e a esponja com vinagre com que lhe deram de beber.
Uma tradição familiar
«A cruz é onde o cristão se glorifica», diz Miguel Sampayo, um dos membros mais ativos e antigos. Tem 53 anos, é bancário e desde miúdo veste a camisola dos irmãos da Graça – ou melhor dizendo, a opa e a murça roxa que distinguem o uniforme da irmandade.
Miguel cita a Bíblia, e São Paulo em particular, para explicar o propósito da organização: como católicos, unem-se à entrega de Cristo pela remissão dos pecados do mundo. E renovam assim o sacrifício, levando essa luz pelas ruas da cidade. «Completo em minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo», cita Miguel Sampayo.
Com o seu filho adolescente, que este ano já ajudou a carregar uma das peças que integra a procissão, esta é a 12.ª geração da família Sampayo na irmandade.
Miguel, que conhece bem a genealogia familiar, conta que o descobriu quase por acaso, quando se dedicou a estudar os livros que contêm os registos de todos os irmãos ao longo de quatro séculos, uma das muitas preciosidades que se encontram nas salas da igreja da Graça que pertencem à irmandade. Ao recuar no tempo, deu com um ‘tetra tetra tetra’ avô, Francisco de Sampayo, investido como irmão em 1699.
A família de Miguel faz parte da história da instituição, mas há muito mais a contar. Francisco de Mendia, consultor de comunicação e há dois anos provedor da irmandade, mostra com orgulho os cantos à casa, com corredores e salas recentemente renovadas. Estão também a remodelar um claustro no Convento da Graça, onde a Ordem dos Agostinianos Eremitas os recebeu no século XVI quando o espaço na Igreja de São Roque – berço da irmandade surgiu – se revelou insuficiente.
No andar superior, na sala do despacho, painéis e azulejos evocam também os emblemas da paixão e alguns milagres de Jesus. É ali que se reúnem e tomam decisões. No andar inferior, um emaranhado de salas guarda uma coleção de ex-votos, ofertas que os fieis dão aos santos por milagres e intercessões. É a devoção expressa em quadros, instalações e peças que assinalam a importância que o Senhor dos Passos teve na vida de muitos e, ao mesmo tempo, uma viagem a um país longínquo.
Um quadro mostra um navio prestes a naufragar. Na legenda, cuidadosamente escrita à mão, lê-se o porquê do gesto. «De 22 a 25 de dezembro de 1868, na Biscaia, um vapor português quase naufragou depois de ser batido 15 horas por furiosa tempestade». Salvou-os N.S. dos Passos, a quem rezaram. Uma outra gravura mostra um prédio de Lisboa e lembra o milagre que fez o Senhor dos Passos por promessa de António Pedro Rocha, salvando da morte a sua irmã Luzia da Conceição, que se deitou de uma janela abaixo no dia 11 de julho do ano de 1871.
Há ainda, numa moldura, o diploma assinado por D. Manuel II que os declara, em 1908, Real Irmandade. E um aviso antigo pendurado num corredor: «Proíbe-se a irreverência de tocar nos vestidos da Santa Imagem do Senhor dos Passos».
As salas guardam as vestes dos irmãos, que usam ao pescoço uma insígnia com o emblema da irmandade que recebem no dia do compromisso. Mas também o páleo, as lanternas, os ciriais e todas as peças que carregam na procissão do Senhor dos Passos, mas também na Procissão do Enterro do Senhor, na Semana Santa, os pontos altos da vida da instituição.
Foi assim ao longo dos últimos 430 anos, mesmo quando as procissões foram proibidas na 1.ª República e restringiram o percurso à Graça.
Atualmente a irmandade tem 400 irmãos. Pagam uma quota anual de 10 euros, que ajuda aos trabalhos de restauro e à organização das procissões. Ao longo da história, chegaram a ser 4000. O livro dos nomes mais importantes que pertenceram à irmandade inclui as assinaturas de D. Miguel e D. Manuel II, provedores perpétuos, ou as rainhas Amélia e Leonor. Os nomes mais recentes são os dos filhos do duque de Bragança. Não que sejam um movimento monárquico, explicam, mas porque são famílias há muito tempo ligadas à instituição e a tradição vai passando de geração em geração. Orgulham-se de, ao longo da história e mesmo quando a cisão entre classes era maior, terem incluído pessoas de todos os estratos, condessas e marceneiros, apelidos históricos e outros anónimos. Os livros, onde as assinaturas surgem por data e não por estatuto, atestam isso mesmo.
O património e os tomos antigos sobreviveram ao terramoto de 1755, que destruiu a igreja. Marquês de Pombal, que liderou a reconstrução da cidade, pertenceu à irmandade. E D. José I deixou-lhes o maior ‘tesouro’, em agradecimento pela cura de uma das infantas. Foi o Rei que ofereceu aos irmãos o resplendor do Senhor dos Passos, a coroa que ainda hoje só sai à rua no dia da procissão. Durante as invasões francesas, no século XIX, a igreja foi saqueada. Levaram peças de prata, mas um irmão escondeu a tempo a peça de ouro maciço, que sobrevive assim na posse da irmandade e já esteve exposta no Museu Nacional de Arte Antiga.
Lisboa tolerante
E ainda faz sentido a solenidade com que saem à rua nesta Lisboa? «Faço-o pela salvação da minha alma, pela salvação das almas de todos por quem vou rezando e, ao levar Cristo pelas ruas da cidade, faço-o por saber que posso tocar o coração de alguém», resume Miguel Sampayo.
Na procissão do último domingo, conta Francisco de Mendia, comentou-se que Lisboa, numa Europa onde vão aumentando as pressões para maior laicismo, arrisca tornar-se caso raro. «Contaram-me que uns franceses que assistiram ficaram impressionados: em Paris seria difícil uma procissão desta dimensão e com a presença do Presidente da República», diz o provedor. Também em Espanha, onde se inspiraram as irmandades portuguesas, sopram ventos de mudança. Em Sevilha, a assembleia municipal rejeitou em fevereiro uma proposta de partidos de esquerda que pretendiam proibir a participação de autoridades públicas em atos católicos como as procissões da Semana Santa. E o Podemos já apresentou propostas para extinguir as capelanias militares e proibir a transmissão de missas na televisão pública espanhola.
Por cá, os olhares são mais de surpresa que de intolerância. Em 2013, por ocasião dos 425 anos da procissão, tornaram a fazer o percurso grande, da Igreja de São Roque, no Rossio, à Graça. Naquela que é a procissão do Senhor dos Passos mais antiga do país, são precisos dez homens para transportar o andor que carrega Cristo e a cruz. Param de 50 em 50 passos e os ombros ficam magoados.
Um mês antes, os postos de cada um no cortejo já estão definidos, para que nada falhe. Levar o andor do Senhor é um dos lugares mais cobiçados (e duros), mas a tarefa nunca calhou nem a Miguel nem a Francisco, com pena de ambos. Este ano decidiram inovar e aliviar um pouco a carga, confessam. Pensaram em substituir a cruz de madeira maciça por uma peça oca, ainda assim bem pesada. Na véspera, perceberam que o espigão onde a madeira encaixa na imagem de Cristo não estava bem feito e tiveram de usar a antiga. É como se diz, Deus escreve direito por linhas tortas. Resta acreditar que, quanto mais difícil o caminho, maior a recompensa.