Cláudia Jardim a queixar-se do texto homofóbico que não consegue dizer como há de perguntar se já pode baixar os braços. Imitar um imperador romano na arena que foi a origem do circo numa mistura de referências onde ainda há lugar para Marina Abramovic e o espetáculo em que a atriz e os autores disto se conheceram lá atrás, na década de 90, nos Armazéns do Ferro, é coisa que cansa. Mas cansa mesmo, como Cláudia Jardim está certa sobre ser homofóbico o texto, e sempre a dúvida sobre se isto é Cláudia Jardim atriz ou Cláudia Raquel personagem em “Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre”, um circo que é mesmo um circo, acredite quem quiser, resposta de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira ao convite de John Romão para que encenassem um espetáculo de teatro, o seu primeiro, para a edição inaugural da BoCA – Bienal de Artes Contemporâneas, a decorrer até ao final de abril entre Lisboa e o Porto.
Pois para o Norte há ainda de ir este espetáculo-obra-total, tenda como instalação com gente e esculturas e performances dentro. Afinal, isto é mesmo uma peça de teatro, mas quem a assina é uma dupla de artistas plásticos. Construir um espetáculo como se constrói uma exposição, as cenas como obras alinhadas numa lógica de visita à galeria. Mas estamos em Lisboa ainda, que nem aqui isto começou. Jardim do Palácio Pimenta, ao Campo Grande, que foi onde foram montar a tenda alugada ao Circo Cláudio, circo de animais e de tudo o que há num circo, no que sobrou dele. O circo como “último reduto da freakness”, o que sobrou de tudo o que havia nas margens já engolidas pelo sistema, as margens que o sistema não para de engolir.
Jardim do palácio, onde estávamos. Pavões, atores a dizerem texto de um lado, autores do espetáculo a acabarem de montar estruturas do outro, com amigos e com Jiboia, o autor da banda sonora, mais técnicos a darem conta do material de luzes que continua a chegar para depois ainda se ir a um ensaio.
Faltam só três dias para a estreia e o caminho foi longo. Pode dizer-se que começou em Nova Iorque esta ideia dos palhaços, no tempo em que os artistas viveram nos Estados Unidos e em que preparavam “Hero, Captain and Stranger”, projeto que acabaram por converter num filme que vieram exibir a Lisboa em 2009 ao Cinema Paraíso (atual Cinema Ideal na sua vida passada da pornografia), filme que terá ficado conhecido pela descrição “versão porno do Moby Dick” (de Melville) sobre o que acontece quando um conjunto de homens tem de passar uma data de tempo num baleeiro, em alto-mar. Veio do que andaram a ler nesse tempo a ideia de uma espécie de parte dois para um filme porno com palhaços, “Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre”, num sentido muito literal do imaginário mais imediato sobre o universo dos palhaços, ideia que largaram e que voltou como resposta imediata ao desafio de John Romão. “Encenar uma peça? Queremos é fazer um circo e vai chamar-se ‘Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre’. Foi automático”, recorda Nuno Alexandre Ferreira dessa primeira conversa, em 2015.
Palhaço rico a foder palhaço pobre e a dúvida sobre se isso será literal ou metáfora é legítima para quem conhece o trabalho da dupla de artistas de Lisboa. “No início, a ideia era só uma coisa deste nosso imaginário do circo, o rico e o pobre não tinham uma conotação tão económica como agora têm”, recorda João Pedro Vale. “Na realidade, quando pensámos nisso pela primeira vez [em 2009], era uma coisa literal.” E a verdade é que nada garante que não será, “Palhaço Rico Fode Palhaço Pobre” não é sequer espetáculo para matiné, nem ao domingo, decidiu o São Luiz, coprodutor da peça em conjunto com o Rivoli, do Porto, e a bienal BoCA. De uma forma ou de outra este é um tempo propício a essas metáforas e, máscaras de fetiches à parte, interessava-lhes sobretudo explorar “o sentido do lixar”.
Interessava-lhes isso e fugir do óbvio, da sala de teatro e do palco, levar o espetáculo a um lugar novo para o público. “O início da dramaturgia foi mesmo isso”, recorda Nuno Alexandre Ferreira, “ser numa tenda a que as pessoas tivessem de se deslocar, não no teatro, o que também tem a ver com o que fizemos no ‘Hero, Captain and Stranger’, em que parte da experiência de ver o filme era as pessoas terem de ir a um cinema pornográfico. Percebi ontem, quando comecei a partilhar fotografias da montagem da tenda, que as pessoas não tinham percebido que ia haver mesmo uma tenda. Por mais que digas que isto é um circo, que é mesmo uma tenda, as pessoas não acreditam.”
Tenda de bancadas à antiga e de pipocas e algodão-doce à porta, circo mesmo mas onde será preciso andar à procura do palhaço rico e do pobre, quem será quem nesta inversão de papéis constante e do texto dentro do texto, atores baralhados com personagens e com animais e hierarquias invertidas. Criadores como arrumadores de pista vestidos de toureiros (ou palhaços?), de novo a pergunta sobre onde está o rico e o pobre, a realidade e a ficção, e os animais, que também terá animais este circo em que ninguém é e todos são palhaços ricos e pobres. Os palhaços que talvez sejam só metáfora e que hão de sobreviver ao próprio circo. Aqui não há de ser enterrado nenhum palhaço, como fez Fellini no seu falso documentário em busca dos últimos palhaços da Europa, “Os Palhaços”, de 1970, primeira referência para esta criação juntamente com “Freaks” (1932), de Tod Browning, num processo que começou há dois anos e foi continuando. No verão passado, a visita aos circos pelo Norte, onde os circos continuam a existir no tempo quente, depois disso, o texto, escrito, lido e reescrito com o apoio de Diogo Bento, que havemos de ver em leather-cowboy como apresentador do circo a leiloar “Estruturas Capitalistas”, obra de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, ou um go-go boy por um euro. Trabalho que antes de chegar a esta tenda passou por casa e pelo ateliê dos artistas, em Xabregas, onde nos últimos dois meses se fizeram os ensaios e costuraram figurinos, num espetáculo que, dizem, se foi construindo como se constrói uma exposição, a pensar no percurso que o público há de fazer.
“De repente, percebemos que em caso de dúvidas resolvíamos de uma forma relacionada connosco, mais autobiográfica, que não tem necessariamente a ver com a nossa vida”, diz João Pedro Vale, para depois falar sobre a cena mais parecida com a festa que era a marcha da chegada de um circo à cidade. “À medida que fomos descobrindo coisas do circo fomos preparando o espetáculo com as referências que tínhamos.” E são mais do que aquelas que conseguiremos contar neste espetáculo, de “O Triunfo dos Porcos”, não por Orwell mas por Paul Preciado, à reality TV e aos concursos de talentos (de onde, na verdade, saiu Daniel Seabra, segundo classificado no “Got Talent”, que havemos de encontrar em vários dos números de circo integrados no espetáculo). Ou até um campo de concentração para pessoas normais numa suposição do que seria um mundo em que ser normal seria ser-se palhaço, reflexão sobre “como basta de repente mudar o contexto político para alguém que é normal passe a ser freak”, supõe Nuno Alexandre Ferreira. “Se o mundo fosse de palhaços, os freaks seriam as pessoas normais, seriam essas a ser postas em instituições [e confinadas].”
“Nos nossos trabalhos interessa-nos sempre falar de determinada coisa e, neste caso, era essa ideia da diferença, da assimilação e da normalização”, explica João Pedro Vale. “Fala-se nos direitos, nas conquistas das mulheres, dos homossexuais, dos negros…. e na realidade não é uma conquista, é só uma abertura para permitir o alargamento dos mercados.” Numa lógica ultracapitalista, acrescenta Nuno Alexandre Ferreira, “a norma é sempre o mercado: quanto mais pessoas estiverem inseridas na norma, maior o número de clientes disponíveis para aquilo que se quiser. E, de repente, tudo é normalizado, o sistema assimila tudo numa lógica de poder controlar, e o controlo é assumido pelo poder económico.” E daí vem o circo, “último reduto da freakness”, uma “resistência a esta lógica normalizadora”.