Feito pelo filho para a televisão britânica, “Paula Rego: Histórias & Segredos” extravasa e supera largamente aquilo a que nos habituaram os filmes encomendados como peças didáticas e simultaneamente laudatórias de artistas, e que geralmente apontam uma luz dulcificadora sobre o protagonista, servindo o duplo propósito de montar uma narrativa que encaixe as peças da sua vida em torno da arte que fez e homenageá-lo. Não foi isso o que fez Nick Willing. A admiração pela obra da mãe torna-se, de certo modo, incidental à medida que assistimos a este documentário de 90 minutos. Ele é, primeiro que tudo, um muito revelador filme biográfico, em que as personagens que nos apresenta adquirem aquela complexidade que repele qualquer juízo imediatista.
O poder desta narrativa constrói-se desse nervo exposto entre as histórias contadas e o véu retirado sobre antigos segredos, zonas sensíveis, e de algum modo somos compelidos a encarar o que vamos descobrindo pela perspectiva do filho mais novo de Paula Rego, o que nos faz vencer o embaraço e alcançar aquela compaixão que em vez de nos deixar na posição de juízes frios, causa identificação, e se torna libertadora. Como testemunho, se este filme é esclarecedor do percurso da artista, mais do que isso, é ainda parceiro desta. Há momentos duríssimos, e uma honestidade raramente praticada entre nós e que fere a pequena moral que ainda domina o meio cultural e artístico português.
Produzido pela BBC, o filme é uma descoberta e uma viagem, não apenas ao passado mas a um tempo íntimo que não se organiza segundo cronologias. Mais do que o retrato de Paula Rego, que hoje tem 82 anos e tinha 80 quando começou a recontar ao filho a sua vida, indo mais longe do que fora antes, daqui saem vivas muitas outras figuras. Desde logo o pai da pintora, que foi o seu grande cúmplice, muito mais do que a mãe, e depois o marido, o pintor Victor Willing (1928-1988), com quem viveu uma história de amor onde coube tudo, a começar pela paixão e admiração mútuas, mas que teve infidelidades, traições de parte a parte, um prenúncio conturbado e que não augurava nada de bom; mais velho sete anos, ele era casado, já era pai, exercia sobre Paula o fascínio de um pintor que começara a impor-se na cena artística londrina e contava, entre as suas relações, com a amizade de figuras como Francis Bacon. Até às conversas que deram origem ao documentário, o filho só tinha ouvido a descrição romântica do momento em que os dois se apaixonaram, numa festa. Afinal, o episódio revisto de forma crua deixa no ar algo mais sórdido, roçando a violação. Mas envolveram-se tantas outras vezes. Ela, então sempre submissa, viu-se forçada a abortar múltiplas vezes antes de se decidir, por fim, a ter a primeira filha do casal, Caroline, o que a obrigou a deixar Londres e a Slade School of Fine Art, onde, tinha dado já provas do seu talento.
Os segredos e a intimidade desta família não se oferecem, contudo, a um efeito de devassa. Tornam-se valiosos como chaves para abrir portas e penetrar mais fundo no universo arrebatador de uma pintora em que o encanto existe a par da perversidade. Encarado interiormente, logo se percebe o modo como esta arte vai além de uma reconfiguração fabulosa do mundo, mas esconjura demónios, é a língua desenvolvida por uma mulher que passou boa parte da sua vida numa espécie de mutismo, incapaz de expressar-se por palavras, enfrentar as ordens, tantas vezes injustas, odiosas, que foi ensinada a acatar. O Portugal salazarista que, contra aquilo que se julgou, está longe de ter morrido, é uma das vítimas da sua vingança. E há uma veemente denúncia da condição das mulheres na sociedade portuguesa, a forma como foram tratadas como seres de segunda, e o são ainda. O feminino surge tantas vezes numa violenta metamorfose, a das existências pisadas que subitamente alcançam aquele ponto em que se viram ao poder, mostram um rosto desafiante, atroz, ameaçador. Indo além do escárnio, confrontando a beleza com o grotesco. Nas suas pinturas existe uma transfixação da realidade, uma arte que a certa altura nos deixa a suspeita de ter atravessado para o território da magia, desafiando o nosso bom senso em relação à capacidade de uma pintura para corrigir a história, mexer no passado, exorcizar, manipular…
O documentário não é, assim, um acontecimento exterior à obra da artista. Cuidadoso nos nexos que fixa entre a matéria biográfica e a artística, a sua perspectiva abre novas possibilidades e ângulos sobre a obra de Paula Rego. É ao mesmo tempo comovedora e instrutiva, a relação de extrema lealdade entre ela e o marido, que é o seu primeiro grande intérprete, alguém que compreendeu o alcance e a particularidade do seu génio. Alguém que a viu afirmar-se, ajudou a isso, enquanto ele mesmo definhava, tendo a voz, capaz de teorizar de forma espantosa, mas enfrentando um bloqueio terrível que duraria quase até ao fim, quando a esclerose múltipla ameaçava fazer dele um boneco. Há um poema de Victor que Paula lê, um poema escrito sobre as suas pinturas. Além do seu poder expressivo, este evidencia como a ligação entre os dois ia além do que é terreno. Ela sabe que ele percebeu tudo. Que ninguém irá tão longe.
“Ninguém percebe melhor o que eu faço do que o meu marido. O Vic era tão brilhante que eu tinha medo de falar ao pé dele. As saudades que eu sinto são muitas, muitas, nunca acabam”, diz ela. A tragédia da doença inspirou alguns dos quadros mais notáveis de Paula Rego. Candidamente registada no filme, a despedida entre os dois é tão forte e bela que, mais do que provocar lágrimas, as seca. A carta que ele lhe deixou ao morrer e que ela guarda desde então, é lida na íntegra no filme: “A maior parte de mim já se foi embora”, escreve, “confia em ti mesma, (…) sei que vais pintar ainda melhor”.
A propósito de uma obra que tantas vezes bebeu na literatura, desde aquela que fixa a tradição oral, aos romances que foram expandindo o imaginário popular, entre o tumulto íntimo e a riqueza do folclore, somos levados a falar de uma vivência marcada pela “casualidade metafórica” das imagens. Estas parecem sempre cruzar o plano imediato do mundo, das recordações exactas e das experiências comuns, para esse ambiente “onde se situam as eras imaginárias”. Socorremo-nos de palavras do poeta e ensaísta cubano José Lezama Lima que, sem ter-se cruzado com o universo da pintora portuguesa, é eventualmente um companheiro entre a intuição e a busca na ligação entre estes dois universos expressivos tão simultâneos.
O vigor dos contornos de Paula Rego, aquele traço que parece brotar da fronteira sempre incerta, sempre acesa entre a infância e os mitos, é característico da tendência da criança para digerir o mundo entre sensações de espanto, assombro, terror… O olhar é capturado pelo choque entre algo que nos parece familiar, que emerge como uma lembrança remota, e algo de doloroso ou retorcido, com a imagem a libertar-se da condição idílica dos contos de fada à medida que absorve a realidade. Há algo de excruciante nestas pinturas, há algo desse “duplo erro, sedento” de que fala Lezama Lima num poema onde “se alojaram os mistérios”: “o parafuso que rompe o mar em dois: os poderosos deuses abolidos/ e o presságio que toca e persegue”. Só mais uns versos para ilustrar esta irmandade de afinados instintos exploradores: “Ali nas flautas a maldição nascente/ e a nova cidade do corpo em fúria,/ as pontes sombrias onde animais de canela/ destroem na noite as colecções de porcelana./ Aberta ali, no instante em que a flor/ assimila e se une ao insecto,/ grandes pirâmides de orvalho/ o golpe que engendra o cravo.” (A tradução é de Jorge Henrique Bastos.)