Passados anos de antecipação e dúvida, o novo Governo dos Estados Unidos atacou posições do regime sírio pela primeira vez desde que começou a brutal guerra civil que em seis anos matou mais de 400 mil pessoas e causou um êxodo de refugiados nunca antes visto depois da II Guerra Mundial. O mesmo Donald Trump que ao longo da campanha criticou as políticas intervencionistas norte-americanas e há três anos aconselhou o seu antecessor a não passar ao ataque no conflito sírio ordenou o lançamento de 59 mísseis desde embarcações no Mediterrâneo e contra a base aérea usada pelo Governo sírio para atacar esta semana uma cidade rebelde com armas químicas. Trump fê-lo para castigar Bashar al-Assad pelo uso de substâncias biológicas, mas também para sinalizar ao ditador sírio e a outros líderes rivais que chegou ao fim a política de prudência de Barack Obama no que dizia respeito ao uso do poder militar americano e que na Casa Branca está agora um Presidente disposto a agir com força.
O bombardeamento americano ocorreu na noite de quinta-feira contra a base aérea de al-Shayrat, a segunda maior do regime e de onde Washington diz que partiu o ataque químico na terça-feira contra uma cidade sob domínio rebelde no norte do país. Os mísseis Tomahawk não parecem ter causado grandes estragos na base de Shayrat. Damasco diz que perdeu seis caças MIG-23 – alguns relatos sugerem nove – e o comando americano afirma que também foram destruídos alguns edifícios de treino e apoio técnico, um armazém e uma estação de radar. A base tem várias pistas, mas, segundo as fotografias que circulavam esta sexta nas redes do regime e rebeldes, todas parecem funcionar. Só um hangar de betão ficou destruído, vários caças escaparam ilesos aos mísseis americanos e o regime promete que Shayrat estará novamente ativa daqui a uma semana. O Kremlin, por sua vez, que esta sexta prometia reconstruir as capacidade aéreas do Governo sírio, assegura que a eficácia dos disparos americanos foi “extremamente baixa” e que apenas 23 dos 59 mísseis lançados desde o Mediterrâneo atingiram o seu alvo. Morreram seis militares sírios e os órgãos de comunicação alinhados com Damasco diziam que também cinco adultos e nove crianças civis morreram em aldeias atingidas por erro.
Mensagem
O ataque norte-americano vale muito mais pela mensagem que envia do que pela destruição no exército sírio. Trump deu luz verde ao bombardeamento minutos antes de se sentar à mesa com o presidente chinês, Xi Jinping, que aterrou também na quinta-feira na Florida para passar dois dias no resort turístico do novo presidente americano. No topo da lista de temas que Trump e Xi têm para discutir está não só o futuro contencioso das relações económicas entre as duas maiores potências no mundo, mas também as tensões militares entre ambos no Mar da China Meridional e em relação aos programas nuclear e balístico da Coreia do Norte, que se parece revelar a crise de segurança mais urgente e complexa da nova Administração americana. E o disparo de mísseis contra um regime sustentado pelos governos russo e iraniano tem uma carga simbólica grande.
Assim mesmo sugeria esta sexta-feira o primeiro-ministro israelita, apenas um de entre os muitos aliados americanos no Médio Oriente exultantes com a disposição mais intervencionista da nova Administração em Washington. Benjamin Netanyahu disse aos jornalistas que o bombardeamento da noite de quinta-feira foi uma «decisão corajosa», e que em Telavive há a expectativa de que «ressoe não apenas em Damasco, mas em Teerão, Pyongyang e noutros lados». Os aliados europeus foram mais comedidos, mas defenderam o castigo americano ao regime pelo uso de armas químicas, dizendo que foi uma ação «proporcional» e «compreensível», embora Moscovo dissesse esta sexta que a manobra terá graves consequências para a já degradada relação entre Kremlin e Casa Branca, começando pelo fim do acordo de práticas seguras que garante que os aviões americanos e russos que operam no espaço aéreo sírio não chocam ou entram em confrontos. No essencial, diz o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Trump optou por uma operação com resquícios das políticas que levaram à invasão do Iraque. «Isto é reminiscente da situação de 2003», lança Sergei Lavrov, dizendo que, nessa altura, os americanos «ao menos tentaram apresentar algumas provas materiais».
Não sou Obama
Trump pode ter conseguido a maior vitória da sua jovem e tumultuosa presidência ao corrigir uma das mais duramente criticadas decisões de Obama. No momento do primeiro e mais grave ataque com armas químicas na Síria, lançado em 2013 pelo Governo contra os subúrbios da sua própria capital, matando mais de 1400 pessoas, Barack Obama disse que estava pronto para lançar um ataque semelhante ao que Trump ordenou na noite de quinta. O antigo líder dissera que o seu critério para intervir na guerra era precisamente o uso e movimentação de armas químicas. Mesmo assim, e com intermediação russa, Obama decidiu não atacar e em vez disso aceitar a saída do arsenal químico de Assad. Trump, tomando a decisão oposta e dando sinais de uma política diferente do que o esperado, recebia esta sexta raros elogios de meios habitualmente críticos. «[Assad] sugou a vida a homens, mulheres e crianças inocentes», disse Trump num discurso. «Foi uma morte brutal e lenta para demasiados. Até lindos bebés foram cruelmente assassinados neste ataque bárbaro. Nenhum filho de deus merece tal horror.»