António Gentil Martins. “Gosto de pensar que fiz o que devia ter feito e que posso dormir descansado”

Cirurgião que ficou conhecido pela separação de siameses foi distinguido pela DGS. Diz que os prémios não são o mais importante, mas sabe bem estar cá para os receber

Na terça-feira recebeu o prémio Sobrinho Simões da Liga Portuguesa Contra o Cancro, hoje é distinguido com o Prémio Nacional de Saúde, a entrega de um Grande Colar coordenada pela Direção-Geral da Saúde. Foi uma semana cheia mas, aos 86 anos, não é nada a que António Gentil Martins não esteja habituado. Entre as diferentes associações e fóruns em que participa, encontramos um final de tarde para conversar. Na cerimónia da Liga, lembrou como nos primeiros dois anos trabalhou sem receber no Instituto de Oncologia, até provar ao avô, fundador do IPO de Lisboa, que merecia o lugar de médico assistente. Aqui, recorda a descoberta da vocação ou as vezes em que recusou seguir as orientações internacionais para fazer o que defendia ser melhor para os doentes. Se tivesse outra vida, não tem dúvidas: tornava a ser cirurgião e a dedicar-se às crianças, donas dos melhores abraços. Só fazia uma coisa diferente: sacrificava menos a família. 

Passam quatro anos desde que nos encontrávamos mais vezes para trabalhar no seu livro de memórias. Tem mudado muita coisa na sua vida agora, a caminho dos 87 anos de idade?

Acho que não mudou nada, para ser franco. Fui reeleito presidente da Associação dos Atletas Olímpicos, é a novidade.

Não costuma ser lembrado por esses seus feitos desportivos. Tem pena?

Fui campeão de Portugal em carabina livre a 50 metros e de espingarda de guerra, e participei nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, com pistola de velocidade. Fui campeão nacional de voleibol da 1.a Divisão pela equipa do CIF e de pares homens, em ténis. Numas coisas ou noutras, não sinto nada essa coisa de dever ter uma grande distinção. Sinto-me uma pessoa como outra qualquer. A única coisa de que gosto é pensar que fiz o que devia ter feito e que posso dormir descansado.

Qual é o significado deste prémio que vai receber?

Nunca tinha ouvido falar no colar! Não quero desapontar as pessoas que votaram em mim, mas acho mesmo que não são estes prémios o mais importante.

Mas noutro dia dizia-me que ainda bem que se lembram destas distinções consigo vivo.

Isso sim, depois de morto não me daria gozo nenhum. Recebo também por estes dias o prémio Sobrinho Simões da Liga Portuguesa Contra o Cancro e claro que gosto de receber um prémio de carreira em oncologia. Desde que me formei, em 1953, que trabalhei na área do cancro, à procura de melhores resultados. Há uma frase que adoro que é aquela ideia, em inglês, de que as “guidelines are not God’s lines”. As orientações clínicas são ótimas, sobretudo numa fase inicial da carreira, mas depois temos sempre a obrigação de pensar, enquanto médicos, se aquilo que estamos a fazer é o melhor para os doentes e se não haverá alternativas melhores ainda. 

Acha que, se fosse hoje, teria a mesma liberdade para desenvolver novas técnicas e para reorganizar a resposta num hospital como fez no IPO de Lisboa, separando as consultas das crianças das dos adultos?

Acho que sim, não vejo outra forma de estar na medicina.

Os médicos continuam a ter capacidade para contestar o que está estabelecido?

Não podem perder essa capacidade. Era regra da escola francesa fazer radioterapia às crianças, mas quando houve o primeiro congresso mundial em Madrid, em 1969, propus que em vez de fazer radioterapia se fizesse quimioterapia, pois tinha menos efeitos secundários. Durante cinco anos violei o protocolo internacional que dizia que se devia fazer raios-X, até me darem razão.

E se estivesse errado?

Se me provassem que eu estava errado, parava. Como nunca mo provaram e os resultados eram bons, continuei. A principal obrigação de um médico é fazer o que for melhor para o doente. Claro que não é fazer por fazer ou ser um mero inventor: temos de fundamentar, explicar o que estamos a fazer e o porquê.

E depois? 

Passados cinco anos lá passou a ser regra fazer quimioterapia, mas tirava-se o rim todo à criança. Também não me conformei. Se o tumor não atinge o rim todo, porque é que havia de tirar tudo? Na maior parte dos casos, o rim estava de tal modo comprometido que não havia hipótese, mas fazendo a quimioterapia antes da operação era possível, em alguns casos, esperar que o tumor diminuísse e cortar apenas uma parte. Cinco por cento dos tumores do rim nas crianças aparecem dos dois lados: se conseguíssemos salvar de um lado, mesmo que depois aparecesse do outro e fosse preciso remover o rim, evitava-se que aquela criança, mais tarde, precisasse de um transplante.

Também conseguiu mudar essa regra?

Logo, não. Durante 25 anos violei, mais uma vez, o protocolo internacional. 

E nunca correu mal com nenhum doente? Não teve processos?

Não. Nestes casos dos rins tenho 32 doentes tratados, é a maior estatística a nível mundial. Houve quatro doentes em que o rim deixou de funcionar, a operação foi ineficaz, mas não houve nenhum em que o tumor regressasse. E houve três doentes que morreram com metástases pulmonares, algo que não podemos controlar.

Não foi chamado à atenção pelos seus superiores?

Eu é que era o superior, era diretor do serviço de Pediatria do IPO e confiavam no meu sentido de responsabilidade. 

E o conselho de administração?

Nem se metiam nisso. Claro que, hoje, isto é mais difícil porque se arriscam a sanções disciplinares, há um controlo maior. Mas continuo a achar que, se temos uma ideia diferente, devemos fundamentá-la e, naturalmente, explicar às famílias. Isso também mudou muito. Quando comecei, falava-se com os pais, mas não havia a formalidade do consentimento informado. Hoje, quem falhe nisso ou quem não siga as orientações clínicas sem o fundamentar corre o risco de ser acusado de irresponsabilidade. Mas, se tivermos argumentos válidos, não devemos deixar de fazer as coisas por medo. É a regra básica da medicina: cada doente é um doente e não podemos nunca perder o espírito crítico. 

De onde lhe vem essa obstinação? 

Sempre fui um bocadinho assim, mas não me lembro de como era em miúdo. Adorava a minha mãe, que ficou viúva quando eu tinha três meses e ficou sozinha connosco. A morte do meu pai foi inesperada, num acidente na carreira de tiro, ele que também era cirurgião e atleta. Só me lembro de crescer com admiração e respeito pela minha mãe. Seguindo as pisadas do meu pai, fazia muito desporto, tinha uma alimentação regrada, não fumava, não bebia, deitava-me cedo.

Não tinha namoradas?

Tive as paixonetas habituais da adolescência, mais simbólicas que outra coisa. Para poder escolher bem, acabei por só casar com 33 anos, com a tia de um doente que operara. 

Mas lembra-se do momento em que quis ser médico.

Estava indeciso entre ser médico ou engenheiro e, uma vez, ia a caminho do Liceu Pedro Nunes quando, ao passar ali pelo Largo do Rato, vi um homem que tinha sido atropelado a deitar muito sangue. Tinha 12 ou 13 anos e comecei a pensar naquilo, “e se o homem morre e eu não fiz nada”. Meti na cabeça que, quando voltasse a estar numa situação daquelas, tinha de saber o que fazer.

Não era por falta de vocação da família.

Sim, além do meu pai, António Silva Martins, tinha o meu avô Francisco Gentil, fundador do IPO de Lisboa e que foi sempre uma figura próxima. E, muitos anos antes disso, o meu pentavô, que fundou a Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa. Era um tipo engraçado: fez um livro de filosofia, um livro de poesia, um tratado de agricultura e um livro de anatomia.

Também escreveu poesia?

Não. Quando era miúdo fiz uns versos, mas não tinha jeito. Toquei violino aí até aos 17 anos. Lá em casa, a minha mãe e a minha irmã tocavam piano, eu tocava violino e o meu irmão violoncelo. E ainda ajudei a fundar a Juventude Musical Portuguesa. Mas depois fui para a faculdade e deixei-me daquilo, não gostava de me ouvir desafinar.

Continua a praticar tiro?

Todos os anos tenho de fazer uma prova para não perder a licença de porte de arma. Dantes, ser olímpico, campeão de Portugal ou mestre atirador dava direito à licença para a vida toda. Agora, se não fizermos uma prova oficial anual, temos de ir fazer um curso na polícia. É ridículo, porque os resultados não contam, o que conta é pagar os 40 euros. 

E os resultados muito maus?

São fraquinhos, muito fraquinhos. Acertar no alvo, acerto, já não acerto é tanto no dez.

Custa-lhe sentir-se a perder faculdades?

Não estou nada preocupado com isso. Até já nem tenho pistola minha. Como fui precursor do badmínton, quando fez 50 anos também fui fazer uma partida. Foi uma desgraça, mas gostei.

É mais difícil deixar a sala de operações? 

Cá fora, continuo a operar. No Estado não, por duas razões. Na Estefânia saí aos 70 anos, quando tive de me reformar [é a idade-limite de trabalho na função pública]. No Instituto do Cancro (IPO de Lisboa) continuo, mas como consultor, e não querem que opere porque a direção tem medo que, se acontecer alguma coisa, foi porque me deixaram operar com esta idade. Não é que haja uma proibição, mas pedem-me para não operar.

Deixa-o triste?

Tenho pena, ainda estou convencido de que era capaz de fazer alguma coisa jeitosa.

No privado continua a fazer tudo?

Continuo a operar normalmente, mas há coisas que deixei de fazer porque já não faço há muito tempo e sinto que já não tenho a mesma sensibilidade. Operava aqueles casos de nariz em cavalete e já não faço, não tenho a certeza que vá ficar bonito. Mas o peito opero normalmente, acho que fica bem. O que acho que consigo fazer, faço; o que tenho dúvidas, não faço. Há outro problema: como só opero pelo privado e isso sai caro, cada vez tenho menos operações. Procuram–me mais a pedir segundas opiniões, para depois irem ao sítio onde estavam a ser seguidos – ou no Estado ou com seguro ou ADSE. Eu faria o mesmo. 

Mas tem um limite definido para parar?

Será quando a pessoa que me ajuda disser que aquilo não está a correr bem. Tenho sempre um cirurgião que me ajuda e a instrumentista costuma ser a minha filha. Quando eles me alertarem, eu paro. 

Tem medo que esse dia chegue?

Não tenho. Sei que com a idade que tenho já não terei muito mais tempo. Ninguém fica cá, isso de certeza absoluta. Mas enquanto cá estiver vou continuar a fazer aquilo que acho que faço bem. Enquanto durar, dura. Deixou de durar, paciência. E há sempre coisas que podemos fazer. Colaboro com diferentes associações, como a PASC – Casa da Cidadania, o CIDSENIOR, a Liga dos Amigos do Hospital de D. Estefânia, o Centro de Apoio a Vítimas de Tortura e, agora, a Associação dos Atletas Olímpicos.

Tem pensado mais na morte?

Não. A única coisa que me preocupa é o que faço aos papéis que tenho lá em casa.

Vive literalmente mergulhado em papéis, caixas e caixotes.

É verdade e tenho a perfeita noção de que os meus filhos não fazem ideia do que lá está. São muitos milhares de folhas A4, publicações, trabalhos, documentos.

Porque não consegue libertar-se?

Porque sempre que deito fora alguma coisa, depois preciso dela. 

É um acumulador. 

[risos] Completamente. É como os selos: já não sou colecionador de selos, sou acumulador de selos. Tenho muitos milhares. Tenho imensos livros franceses do tempo da minha mãe, aqueles livros que as senhoras, há cem anos, liam. Já ninguém lê francês, mas o faço eu àquilo? Deito fora? Não sou capaz. É complicado. Já pensei em oferecer a um lar, pode ser que alguém goste.

O que guarda com maior carinho?

As cartas que troquei com a minha mulher, as fotografias dela e dos meus filhos e netos, os trabalhos, valorizados pelos lindos esquemas em que os meus gatafunhos eram transformados pela arte da minha mulher, as fotografias de operações, os velhos slides, as cassetes VHS.

Teve oito filhos e tem 25 netos. A medicina pode, ainda assim, contribuir para alguma solidão?

Não sei. Quando uma pessoa gosta muito daquilo que faz, é absorvente. Temos de tentar estabelecer um equilíbrio, muito difícil, entre a vida pessoal e a medicina. A dedicação ao doente e a disponibilidade têm de ser verdadeiras mas, ao mesmo tempo, não podemos sacrificar a família. Eu, sobretudo no tempo em que acumulei a clínica com a presidência da Ordem dos Médicos, deixei-me absorver demasiado. Queria mudar o sistema de saúde.

Defendeu um modelo diferente de SNS.

Com total liberdade de escolha, em que os doentes pudessem escolher o médico onde iam, fosse no público ou privado. Bati-me tanto por isso e pelas questões da Ordem que, a certa altura, não consegui conciliar tudo. Tenho feito sempre essa recomendação aos meus amigos quando se tornam bastonários. Preservem a família, o bem mais precioso que têm.

Diz-lhes para não se esquecerem das mulheres e das crianças em casa?

Pois. Não temos o direito de sacrificar as mulheres, seja em que profissão for, mas a medicina é difícil porque cria obrigações. Distingo entre os médicos e os licenciados em Medicina. Os médicos dedicam-se aos doentes, estão sempre disponíveis. Os licenciados em Medicina cumprem aquelas horinhas e depois acabou, são funcionários públicos.

Chegava a ir com a roupa por cima do pijama à Estefânia, de noite, outras vezes tomava o pequeno-almoço a guiar. Tem memória desses dias?

Aconteceu muitas vezes e, como vivia perto, chegava lá por vezes até primeiro do que o médico que estava de urgência. É evidente que este tipo de dedicação está um bocadinho ultrapassada. Há uns que, felizmente, continuam a ser médicos, mas há outros que olham muito para o relógio. Cheguei a ter pegas com alguns colegas porque eu queria continuar a operar, mas eles diziam que já era muito tarde, que estava a passar da hora. E depois? No outro dia, que trabalhassem menos. O doente é que não podia ser prejudicado.

Qual é hoje a maior ameaça à medicina?

Uma é a informatização, que é excelente quando funciona e trágica quando não funciona. Hoje em dia, os médicos perdem imenso tempo com o computador. Os sistemas têm de ser rápidos e universais, mas continuamos a ter uma série de programas que é preciso abrir e que, às vezes, nem são compatíveis ou estão bloqueados. Se um médico passar a consulta a olhar mais para o computador do que para o doente, não funciona. Outra coisa que tem vindo a piorar é isto de observar e ouvir pouco o doente e pedir logo uma série de exames, o que sai caríssimo ao SNS e é muitas vezes inútil. Há outra ameaça: antigamente, os hospitais eram geridos por médicos e hoje são geridos por administradores. Se são sempre essenciais, isto parece-me negativo. 

Noutro dia, um estudo alertava que os portugueses sobrevalorizam os exames.

Sim, mas também têm um bocado a mania de que o médico tem de acertar sempre, o que coloca uma pressão nos médicos que, na defensiva, acabam por pedir mais exames e análises do que talvez fossem necessários. O médico faz o possível por acertar sempre, mas não é infalível, nunca foi. E própria doença não é sempre igual.

De onde vem essa expectativa? 

Normalmente, uma pessoa não tem alternativa nenhuma senão confiar no médico. Antigamente havia doentes que diziam “o doutor resolva”, nem queriam saber. Tinham uma confiança ilimitada em que o médico sabe de tudo, o que é um exagero. Agora estão mais informados, mas têm de confiar nos médicos. E só se os médicos falarem, explicarem o que estão a dizer e responderem às perguntas é que ganham a confiança dos doentes. O problema é que temos uma certa ”funcionarização” dos médicos, que estão como que obrigados a fazer consultas em poucos minutos, não se conseguindo estabelecer essa relação essencial para uma boa e humanizada medicina. Há doentes a quem chegam cinco minutos, outros que precisam de uma hora.

A Ordem quer estabelecer tempos mínimos para as consultas.

Concordo. Chegou-se a um ponto em que se queria consultas de 15 em 15 minutos e a ter de escrever uma série de coisas nos computadores. Nada contra. Dantes era tudo escrito com aquela letra de médico e hoje há muito mais rigor. Mas se demorávamos pouco tempo a passar receitas, hoje, o tempo que se gasta é maior e é preciso ter isso em conta.

Continua a sentir os avanços da medicina ou já o sentiu mais?

Quando comecei a trabalhar com as crianças com cancro, morriam 80% dos doentes; hoje morrem menos de 20%. Foi uma evolução gradual, mas nunca parou de melhorar. Dantes usava-se muito a radioterapia, depois a quimioterapia. Hoje começam-se a usar os novos medicamentos imunomoduladores, subs-tâncias que ajudam o próprio organismo a controlar a doença. Tinha esperança de que as coisas melhorassem e melhoraram, o que nos obriga a estar permanentemente atualizados.

Não se cria ao mesmo tempo uma expectativa que torna mais difícil aceitar quando não há solução?

Não creio. É sempre angustiante uma criança morrer, seja qual for a probabilidade. Mas acho que é muito mais animador para um pai, numa situação destas, saber que a probabilidade de a criança sobreviver é grande e, sobretudo, maior do que aquilo que tínhamos quando comecei, em que uma doença destas era sentida como uma sentença de morte. Dantes, a palavra cancro era isso: tem cancro, está arrumado.

Lembra essas conversas com os pais?

Era tentar atenuar o mais possível a dor e deixar sempre alguma réstia de esperança. Mesmo hoje em dia, apesar de os resultados serem melhores, nunca podemos garantir que os doentes se curam. E a esperança vale muito. Segui uma vez um rapaz que tinha um tumor numa perna. Depois de múltiplos tratamentos chegamos à conclusão de que não havia nada a fazer: o tumor tinha-se espalhado. O menino era da Madeira e dissemos à mãe que a situação era complicada, que era melhor ele parar uns tempos, irem para casa. Os tratamentos tinham sido duros e ele precisava de descansar e voltar depois mais tarde. Não lhe disse: “O seu filho não tem solução.” A criança disse que queria ir a Fátima e foi. Passado um mês, recebo um jornal da Madeira que dizia “Milagre de Fátima”: o Joãozinho já come, já brinca. Passado outro mês, soube que tinha morrido. É evidente que não se esperava que fosse diferente, mas o facto de ele ter acreditado fez com que tivesse passado um fim de vida muito melhor. Beneficiou de ter ido a Fátima, não por milagre, mas porque ficou melhor e com mais esperança.

É católico mas não acredita em milagres?

Sou católico e não nego que possam acontecer, mas acho extremamente complicado conseguir afirmar que existe uma cura milagrosa.

Nunca encontrou um caso desses?

Não, nunca tive um doente que pudesse dizer que tivesse tido uma cura milagrosa.

Inesperada.

Não pode ser só isso, porque há muitas curas inesperadas. Às vezes pensamos que as coisas vão correr muito bem e correm mal e outras vezes parece que vai correr muito mal e corre bem. Há tantos fatores que interferem, da história familiar à poluição, que é muito difícil dizer que é um milagre. Teriam de me explicar muito bem como é que se prova que não foi simplesmente uma coincidência. Até porque há coisas subtis na medicina, como o efeito placebo. Estão documentados vários casos em que, comparando doentes em tratamento com doentes que não fazem nada, os que não fazem nada às vezes também melhoram. O próprio estado de alma da pessoa, sentir-se mais tranquila ou bem- -disposta, pode influenciar. E, seja como for, mesmo se as coisas correrem mal, ter um fim de vida com qualidade também é importante.

É algo que o preocupe?

Das coisas que menos gostava era ter de sofrer muito, sou um bocado cobardolas. Mas também sou totalmente contra a eutanásia e o suicídio assistido.

Alguma vez alguém lhe pediu ajuda para morrer?

Nunca. Tive problemas com testemunhas de Jeová por causa das transfusões de sangue das crianças, mas resolvi-os muito simplesmente. Dizia àqueles pais que compreendia muito bem que eles, por motivos religiosos, não quisessem transfusões para os filhos, mas eu, enquanto médico, tinha como obrigação fazer tudo para salvar a vida das crianças. Chegávamos a um acordo: eu faria tudo o que fosse possível para não fazer a transfusão, procurando respeitar a religião deles, mas se houvesse risco de vida, no limite, fá-lo-ia, pois eles também teriam de respeitar a minha. Os médicos nessas situações podem sempre recorrer à justiça e os pais perdem o poder parental até ao fim dos tratamentos. Felizmente, nunca foi necessário. Um adulto consciente que o decida tem capacidade para isso, embora eu não concorde.

Então porque não aceita que possam querer a eutanásia?

Eu admito que possam querer pôr termo à sua vida, mas nunca que possa ser um médico a fazê-lo. Aliás, é a Constituição que diz que o direito à vida é inalienável. Espero que a eutanásia não seja aprovada mas, seja como for, nunca praticada pelos médicos. Ainda agora, os seis bastonários vivos fizeram essa tomada de posição a explicar o que é a eutanásia, a distanásia e o suicídio assistido, defendendo que eutanásia e suicídio assistido são crime e contra a ética médica. Se a sociedade os quiser legalizar, os médicos poderão ser objetores de consciência, seguindo a sua ética. Se a pessoa quiser tirar a vida a si própria numa situação dessas, consideramos que é um erro, mas pode certamente fazê-lo. Para mim, as coisas são claras: realmente, com a eutanásia acaba-se com o sofrimento, mas também se acaba com a pessoa. As pessoas têm é de ser ajudadas a não sofrer.

Se pudesse viajar no tempo, ia para o passado ou para o futuro?

Talvez fosse para o futuro, só por curiosidade. O que é que será? Mas o que penso é que é preciso a gente estar bem quando está e onde está. Se a pessoa estiver bem quando e onde está, não interessa nem o passado nem o futuro. Eu estou cá a fazer o quê com 86 anos? Ficar só a olhar para a televisão e ver jogos de futebol? Não era para mim.

Não liga a televisão?

Às vezes ligo, mas por pouco tempo. Vejo a abertura do telejornal a ver se há alguma coisa importante mas, normalmente, aquilo não tem interesse nenhum. Às vezes lá vejo um filme ou um programa mais interessante.

Acha que a televisão contribui para uma certa “estupidificação” dos mais velhos?

Acho que o que contribui para um certo desaproveitamento é a reforma não ser flexível. Se uma pessoa gosta do que faz e se é útil, porque há de ter de sair aos 70 anos? Deixem-na estar mais tempo. Se a pessoa não está bem para trabalhar, que saia mais cedo. Vou dizer uma coisa que, se calhar, ninguém concorda comigo, mas não percebo esta coisa de os médicos deixarem de fazer urgências aos 55 anos.

Fez urgências até que idade?

Até aos 70 anos. Enquanto estive no quadro, fiz urgências. Porque não havia de fazer?

Mas fazia os bancos de 24 horas que têm sido contestados pela Ordem?

Durante algum tempo fiz, mas é evidente que uma pessoa não estava 24 horas a trabalhar. Revezávamo-nos e também dormíamos. Acho bem que se controle isso. Uma pessoa não deve estar a trabalhar 24 horas porque fica cansada e não faz as coisas da mesma maneira. Mas o limite das pessoas é muito variável. Há uns que aguentam mais e outros menos. 

No caso das reformas, um argumento é que as pessoas saem para dar lugar aos mais novos.

O verdadeiro problema, no caso dos médicos, é que não se faz planeamento a médio e longo prazo. Temos um excesso de médicos que só vai piorar. Hoje temos médicos que chegam e sobejam, mas estão é mal distribuídos. Daqui a uns anos vai ser uma tragédia, porque estamos a formar médicos a mais. As pessoas estão só a ver o agora em vez de pensar no que se vai passar daqui a dez a 12 anos, quando estes jovens acabarem a formação.

Fala-se muitas vezes nesta questão dos numerus clausus como argumento corporativista dos médicos para limitar a concorrência.

Há quem diga isso, sim, mas para mim é só irresponsabilidade. Só posso compreender isso por desconhecimento da realidade. Formar médicos de que o país não precisa sai caro e não adianta a ninguém. Temos é de ter médicos de qualidade e que trabalhem bastante. E que tenham condições para trabalhar de forma que os doentes se sintam bem. Um médico que o doente não escolheu, que tem o tempo contado e que mal olha para ele, que não lhe pede exames nem receita nada, claro que o doente desconfia. Agora, se for um médico de quem a pessoa goste, que conheça bem, tem uma reação diferente. Um médico de família deve ser o médico que a família escolhe, não é ter de ficar à espera de vaga e ser observado pelo médico que calha.

O que gostava de ter tempo de ver?

Gostava que tratássemos melhor, que percebêssemos melhor porque é que as coisas acontecem, que houvesse mais igualdade. Hoje fala-se muito da medicina personalizada. É muito bonito, mas onde é que acontece? Talvez na Europa e nos EUA, e não é em todo o lado. Se for para a África ou para a Índia, muitas pessoas morrem sem tratamento. 

Acredita que se vai descobrir uma cura para o cancro?

Acho que não se vai descobrir uma cura para o cancro nunca. Claro que gostaria muito, mas há muitos tumores diferentes, é uma doença complexa. Acredito que vamos ter melhores resultados, mas voltamos ao mesmo: serão melhorias caras e que não vão chegar ao mesmo tempo a todos os países. E depois há outras coisas que a mim me levantam dúvidas: vemos uma grande diminuição da mortalidade infantil nos países de-senvolvidos, mas hoje por qualquer coisa se faz um aborto. Se se abortam crianças que morriam nos primeiros anos de vida, é lógico que melhore a mortalidade neonatal. Estou contra o aborto, defendo o direito à vida e a verdade é que para muitos casos podemos encontrar soluções com qualidade de vida. 

Contestou a forma como o SNS foi organizado. Está mais otimista?

Continuo a achar que o SNS, desta forma, está condenado. É notório que é preciso aumentar as verbas para a saúde em Portugal. Defendia um modelo diferente, com as pessoas a contribuir em função dos seus rendimentos para um seguro universal e a poderem circular entre público e privado. No SNS atual, penso que é preciso assegurar condições para que os profissionais de saúde trabalhem em boas condições e justamente remunerados, deixando de ser tentados a sair para o estrangeiro. Hoje em dia, os jovens médicos ganham mil e tal euros como base, os enfermeiros ganham limpos uns 900 euros: é pouco estimulante para as pessoas se dedicarem de corpo e alma às coisas.

Das conversas que vai tendo, como está o estado de espírito em relação a este governo?

As pessoas, de um modo geral, estão um bocado tristes porque pensava-se que ia mudar muita coisa e, até agora, não mudou. Deram um bocadinho de liberdade de escolha, mas é condicionada, só nas consultas e dentro do SNS.

Ficou conhecido como o médico dos siameses. Gosta desse título?

Acho divertido porque marca uma coisa que tive e hoje já não é regra, que é sermos médicos com uma preparação polivalente. Já é raro uma pessoa saber mexer nos ossos, no fígado, nos rins, no tórax, corrigir malformações múltiplas. Nos últimos gémeos que operei, de Moçambique, demorei 14 horas. Tinha previsto 13,5 horas e foi mais um bocadinho. Mas nos EUA fizeram uma operação idêntica e levaram 24 horas, porque eram 24 médicos, todos setorizados.

Foram os momentos de maior adrenalina?

Os siameses foram talvez o maior desafio que tive, a par de uma operação em que tirei a cara toda a um doente que tinha vários tumores na face, algo que nunca tinha sido feito. Era uma doença genética e acabou por viver mais 30 anos.

Dormiu na véspera dessa operação?

Dormi mal. É sempre um estado de ansiedade grande, mas depois temos um plano e é segui-lo. É isso é que é estimulante, ter um doente à frente, seja qual for o problema, e imaginar uma solução, mesmo quando ela não está escrita em lado nenhum. 

Aconteceu-lhe muitas vezes?

Muitas. Já falei naquela técnica do rim. Outra técnica que desenvolvi era para resolver uma malformação em que a criança não tinha uma parte do esófago e aquilo era resolvido com um excerto de uma parte do cólon. Desenvolvi uma maneira de só transportar para o tórax a parte de que precisava, sem ter de comprometer o intestino.

Onde ia à procura de ideias?

Punha-me a pensar. “Porque é que isto fica torto? Como é que meto direito?” Pensava sozinho ou fazíamos discussões de grupo. Às vezes, os desafios apareciam e tínhamos de os resolver no momento. 

E o que sentia ao aperceber-se desse tipo de contratempos?

A natureza pode fazer um monte de disparates que depois temos de tentar corrigir. Sempre gostei de ter desafios, de não ter uma rotina. Quando regressei de Inglaterra, onde estagiei, Machado Macedo sugeriu-me eu ficar com ele na cirurgia torácica dos hospitais civis, só a operar crianças, e ele ficaria com os adultos. Não quis, iria ficar um pouco a fazer sempre a mesma coisa.

Nesse seu regresso a Portugal no início dos anos 60, que imagem guarda dos hospitais? 

Muito mudou, muito embora deva dizer que o Instituto de Oncologia foi sempre um hospital diferente e melhor. Em Inglaterra habituei-me a uma disciplina que não existia na maioria dos nossos hospitais. Mas a verdade é que lá, se algo saía fora do normal, não existia a capacidade de improvisação que sempre houve em Portugal.

Operou quantos doentes?

A certa altura deixei de contar. Ainda guardei fichas dos doentes, mas era mais uma coisa que iria acumular.

E da primeira operação que fez, lembra-se?

Foi no banco do Hospital de São José, uma apendicite aguda numa adolescente. 

O que lhe deu a medicina?

A sensação de ter feito alguma coisa útil, em vez de ter sido um tipo que não serviu para nada. Sinto que fui útil.

Há quatro anos, a mão não lhe tremia. 

Agora também não. Fui operado às cataratas com 80 anos e fiquei a ver bem. O colega até me perguntou se eu queria continuar a operar: eu disse que sim e ele pôs-me umas lentes em que vejo bem à distância ideal da cirurgia.

Mas sente-se velho?

Nada, mas às vezes já me canso se tenho de correr para apanhar um autocarro. 

Quando lembra a sua infância na Av. António Augusto de Aguiar, tem saudades da Lisboa de outros tempos?

A cidade evoluiu muito, ainda me lembro de rebanhos e pastores no Parque Eduardo vii. Está mais bonita, mas com um trânsito caótico, embora tenha um razoável metropolitano. Os turistas são um bem para a economia, mas não penso que a população local tenha beneficiado, bem pelo contrário.

Com a idade, tem pensado mais nos que já partiram?

Não penso muito nisso. A minha maior mágoa é, de facto, a família, sacrifiquei–a bastante, e a minha mulher teve de aturar-me muito tempo. É a mágoa maior que tenho, o não ter conseguido equilibrar as coisas. Considero a família sagrada e essencial a uma vida plena e feliz.

Noutra vida seria médico outra vez?

Isso de certeza, médico e cirurgião de crianças. 

Não é mais doloroso ver o sofrimento dos mais pequenos?

Pode ser, mas tem outras coisas boas. Se eu vejo um miúdo bem-disposto sei logo que ele não tem nada grave. Se vejo um miúdo triste, sei logo que tem um problema, que há qualquer coisa que não está bem. E já reparou no que é um abraço de uma criança? Não digo que um abraço de um adulto não seja reconfortante, mas aqueles abraçozinhos das crianças são especiais.

Lembra algum em especial?

A memória mais especial que tenho é de uma menina que segui no Instituto do Cancro e que acabou por morrer. Um dia, o pai foi lá levar-nos uma carta e disse-nos que tinha sido a filha a pedir-lhe para ir entregá-la aos médicos e aos enfermeiros, a agradecer o que tinham feito por ela. Achei aquilo espantoso. Como é que uma miúda de oito ou nove anos tinha tido aquele gesto? Vieram-me as lágrimas aos olhos. 

Queria ter salvado mais vidas?

Gostava de salvar todas, mas sei bem que não é possível lá chegar. Limitamo-nos a dar o nosso melhor.