Já passou um ano desde que Assunção Cristas se tornou presidente do CDS-PP, passando também um ano desde que Paulo Portas abandonou a arena política nacional.
A pergunta: qual dos dois factos tem hoje mais relevância?
A resposta não é fácil.
No seu último discurso como líder, destacou-se uma referência: Angola. Portas salientou a importância de defender os interesses portugueses na ex-colónia e a advertência contrastou com a restante temática de gratidão, mais nostálgica.
A sua retirada da política foi acompanhada por muita especulação; falou-se em «fazer empresas», «guiões de cinema» e «escrita de memórias». Viu-se um cargo pro-bono na Câmara de Comércio e um programa, de regularidade pouca, sobre política internacional na TVI.
Seis dias depois da sua reforma parlamentar foi, com nova dose de especulação, para consultor da Mota Engil, uma empresa de construção civil, e é como consultor que tem preenchido o seu tempo profissional, nomeadamente na América Latina.
As suas intervenções públicas têm, nesse sentido, sido mantidas nos assuntos diplomáticos e de política externa. É assim em eventos do partido, essencialmente da Juventude Popular, a que vai com gosto, tal como em palestras no meio académico. Ainda o mês passado a sua sucessora assistiu a uma delas, no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica de Lisboa.
Nuno Melo, eurodeputado do CDS e vice-presidente do partido, afirmou ao SOL: «Paulo Portas é um património de história de sucessos. É um património com a particularidade de, enquanto líder, ter saído ficando. Como ele, talvez só o Professor Adriano Moreira».
E depois do adeus?
Em menos de uma década, Assunção Cristas foi militante, deputada, ministra e líder de partido sem qualquer tipo de oposição. A geração intermédia, entre a de Cristas, mais jovem, e a que tomou o CDS com Portas, ficou outra; a de Hélder Amaral, Nuno Magalhães e Raúl Almeida, por exemplo.
Cristas segurou os ‘portistas’; preservou protagonistas como João Almeida e o próprio Magalhães como líder do grupo parlamentar, mas deu uma vice-presidência a Adolfo Mesquita Nunes, geracionalmente mais próximo de si, e recrutou quadros novos, incluindo independentes.
Nuno Melo, também vice-presidente, está feliz como eurodeputado em Bruxelas e as críticas à atual liderança ficam para Filipe Lobo d’Ávila, o deputado que apresentou uma lista alternativa para o conselho nacional, e também para o já mencionado Raúl Almeida. Juntos, reúnem regularmente um grupo que serve de ‘governo-sombra’ à solução executiva de António Costa, debatendo ideias, apresentando propostas. A semana passada reuniram mais de 180 pessoas num evento.
Um ano depois da saída de Portas, Lobo d’Ávila diz ao SOL que este ano «comprova que o CDS nunca foi um partido de um homem só, continuando a ser um partido com futuro, valores, excelentes quadros e diversidade interna».
João Gonçalves Pereira, presidente do CDS/Lisboa e porta-voz de Assunção Cristas, salienta que, no partido, não vê críticas à liderança «que não sejam construtivas». Sobre mudanças no último ano, o dirigente clarifica que «muito daquilo que o partido é hoje é um legado de Paulo Portas, que não se afastou e permanece sempre um ativo do CDS, sendo um legado que tem sido construtivamente reinventado de forma positiva pela direção de Assunção Cristas».
A verdade é que há muito de Portas – embora um Portas menos recente – no início de Assunção Cristas à frente do CDS-PP. Tal como ele, Assunção apresenta um modo criativo de fazer oposição a um governo socialista, ganhando destaque. Portas chegou ao Parlamento com um tom aguerrido e irónico, fazendo frente a Guterres. Assunção trouxe a mesma ironia e também inovou: a entrega de prendas enlaçadas e metafóricas ao primeiro-ministro, António Costa, é disso prova.
Mas há mais ‘portismo’ em Cristas. A relação com o PSD é abordada com institucionalismo mas alguma frieza. Não se dizem adversários mas assumem que «cada um tem o seu caminho». O olhar para as relações internacionais também é similar: Portas tem defendido o Reino Unido pós-Brexit como algo não catastrófico (para o Reino Unido) e Cristas veio dizer recentemente que espera que a União Europeia não castigue os britânicos por escolherem sair. A anglofilia foi, portanto, conservada.
Mas há heranças também no que concerne à estratégia política. Como Portas em 2001, Cristas lançou-se à Câmara Municipal de Lisboa como líder de partido. Na altura, Paulo Portas teve que enfrentar João Soares em funções e Pedro Santana Lopes como candidato do PSD, tendo um resultado sofrível que o obrigou a ponderar demitir-se.
Cristas seguiu o princípio e, até agora, teve frutos distintos. O PSD ponderou apoiá-la, viu o CDS condicionar e antecipar o processo e a sua adversária será Teresa Leal Coelho – uma social-democrata sem a visibilidade de Santana.
Em casa?
E a nível interno? Cristas consegue ter duas vice-presidências ideologicamente distantes, como as de Nuno Melo e Adolfo Mesquita Nunes, o que fortalece a sua direção em diversidade e unidade. Cecília Meireles completa o trio de vices, que também confere um percurso pelas bases que Cristas não tem.
Essa ausência de trajeto interno não é novidade nem tida como segredo. «Ainda lhe falta qualquer coisa com as bases, na gestão das dinâmicas das concelhias e das distritais. Precisa de usar mais o telefone», aponta um barão local. «Não se pode dizer que ela seja líder ‘por causa’ do Paulo [Portas]. Ele recrutou-a e aprovou-a para o lugar, mas a disponibilidade dela era mais que pública. Nunca o escondeu», termina o mesmo, ao SOL.
Outra fonte centrista, reservada ao anonimato, adianta ainda: «Não é bem verdade que ela não tenha apoio do ‘aparelho’, o que não quer dizer que o compreenda. No congresso, e até antes, houve muita gente a apoiá-la por várias razões: o potencial eleitoral, a popularidade nacional, a ambição pessoal e, claro, a benção de Portas».
Michael Seufert, ex-deputado e líder da Juventude Popular, conviveu bem de perto com ambos, e diz ao SOL: «Nota-se que ao fim de tanto tempo com um líder tão forte e tão carismático as coisas ainda se estão a habituar a um ciclo que há-de ser novo. Eu creio que o CDS mantém uma postura de fazer política de forma séria e que diga alguma coisa aos problemas das pessoas».
Qual deles?
A questão central não é se Paulo Portas ainda está presente; 16 anos de liderança não se apagam em 12 meses. Claro que Portas está presente. A questão é qual dos Paulo Portas está, de facto.
O Portas conservador, mais próximo de Nuno Melo?, o Portas liberal, que descobriu Mesquita Nunes?, o Portas pragmático, que entregou o partido a uma mulher jovem?, o Portas realista, que não quer idealismos para cima de Luanda?, o Portas empresário, consultor de empresas distante de Lisboa?, o Portas intelectual, que tem saudades de escrever?, ou o Portas político, que quererá um dia Belém?
Ninguém sabe; todos se perguntam. Talvez o antigo jornalista tenha sido sempre um pouco de cada um. Talvez só assim se conseguisse transformar um partido pequeno de oposição num pequeno partido de poder.
Com o eleitorado, a polivalência também era evidente: dos veteranos para os taxistas, das católicas para os polícias, das feiras para os pensionistas; pé ante pé até ao seu maior resultado no CDS, nas legislativas de 2011: 11,74%. Hoje, quando se questiona qual o eleitorado do CDS, a resposta é mais difícil de concretizar.
Se a aventura autárquica de Assunção correr mal em Lisboa, é improvável que António Costa se demita como Guterres oportunamente se demitiu após os 7% de Portas. Em 2001, meses depois, o CDS estaria em governo com Durão Barroso. Em 2017, a resiliência do primeiro-ministro socialista é bem diferente. A sorte da direita também.