Se para navegar com alguma confiança nas águas da mundanidade bastam umas luzes ao nível do que por aí passa como cultura geral – umas indicações tomadas dessas estrelas coladas a este teto falso, com um pé alto o suficiente para a maioria, obrigando os restantes a dobrarem-se, e alguns a baterem com a cabeça -, para uma leitura mais profunda das coisas que persistem entre o céu e a terra, há a cultura clássica, os mitos, que sobrevivem quase clandestinamente neste tempo, talvez porque, em vez de umas luzes, lançam trevas no nosso espírito. Exemplo máximo disto é “Bacantes”, obra-prima de Eurípides, que escreveu a peça no fim da vida, com 80 anos, exilado na corte de Pela, Macedónia.
O último dos grandes da tragédia grega morreu no ano 406 a.C., com a peça a estrear-se com caráter póstumo, um ano mais tarde, pela mão do seu filho, Eurípides, o Jovem, em Atenas.
No Teatro Nacional D. Maria II estreia hoje uma “leitura coreográfica” desta tragédia que quebra o vaso grego e, ao invés das palavras, procura interpretar através da música e da dança esta peça com que o poeta de algum modo se penitenciou por também ele, nas suas mais de 90 peças – das quais apenas 16 chegaram até aos nossos dias na íntegra -, ter voltado as costas aos mitos, e por isso este é um drama em que expressa o conflito entre a razão e a fé.
Desafiada por Tiago Rodrigues (diretor do TNDMII) a trabalhar a partir de Eurípides, a coreógrafa e bailarina Marlene Monteiro Freitas, disse ao i que inicialmente a ideia foi medir-se com outra peça do Grego, “Medeia”, mas a sua pesquisa, que tinha já antecedentes nas águas da antiguidade, levou-a para um território mais nebuloso. Admite que foi atraída para “Bacantes” porque não a pode compreender, e explica que isso a obriga a prosseguir uma busca durante todo o processo de criação do espetáculo.
Percebe-se como “Bacantes” foi também uma peça conflituosa para Eurípides, que se inspirou num dos muitos mitos associados ao último dos deuses do Olimpo, Dioniso, e através dela exprime não apenas a luta desigual entre o ser humano e a divindade, mas os próprios contrastes internos que esboçam a sua alma, o debate tantas vezes dilacerante entre os impulsos instintivos do homem, o lado mais irracional, sensual e até delirante, e o lado civilizado.
Nesta obra da velhice, é clara a homenagem de Eurípides à dimensão dionisíaca da vida, retratando a morte e o renascimento de Dioniso, deus das festas, do teatro, dos rituais religiosos, e sobretudo do vinho, da intoxicação que permite ao bebedor entrar em comunhão com a deidade. À semelhança deste deus, a própria peça esteve morta durante séculos, por celebrar o excesso, com os seus temas vistos sob a lente puritana como grotescos; foi um dos clássicos malditos e até proibidos, sendo a peça condenada a um limbo. Foi Nietzsche quem, em 1892, a resgatou com “A Origem da Tragédia”, trazendo Dioniso de volta enquanto figura em torno da qual o teatro se ergue a culto, ao mesmo tempo que associa precisamente a decadência da tragédia à racionalidade, e defende, por isso, que com esta peça Eurípides quis redimir-se.
Os séculos passam e “Bacantes” teima como uma tenebrosa ilustração dos antagonismos que caracterizam cada época, com a ação a decorrer em Tebas, um enclave que tem um valor sentimental para Dioniso, que ali foi concebido depois de Zeus ter revelado a sua verdadeira forma a uma das suas amantes, Sémele. O mesmo raio em que o pai dos deuses se despiu fulminou esta mortal, filha do rei Cadmo, fundador de Tebas. Entretanto, o rei entrega o poder ao neto, Penteu, que se nega a honrar Dioniso, prestando-lhe libações. Depois de um esforço para mostrar o seu lado benemérito e levar o jovem rei a conceder, e mesmo aconselhado pelo avô, este não se deixa demover, e de forma prepotente proíbe o culto ao primo. A vingança que se segue tem todos os condimentos que levaram Eurípides a ser considerado “o mais trágico dos poetas”, tendo Bernard Knox, um especialista na sua obra, afirmado que foi ele o criador dessa “jaula” em que Shakespeare concebeu “Otelo”, Racine, “Fedra”, e que serviu de inspiração a tantos outros dramaturgos como Ibsen e Strindberg.
No palco da Sala Garrett do Nacional – tendo sido dada à imprensa apenas a possibilidade de ver o ensaio de um excerto do espetáculo – deparámo-nos com um ‘ensamble’ remetendo-nos para uma reunião de músicos, havendo suportes para as pautas, das quais estas estão ausentes, como se o vento as tivesse soprado, e com elas as palavras de Eurípides. Somos confrontados com o que aparenta ser uma orquestra desfalcada, mas assim que o espírito toma as figuras em palco, os cinco trompetes articulam um discurso ainda incerto, já não sabemos que território se move diante de nós. No palco, não temos apenas performers mas seres cosidos à mão com o fio de fábulas, a vida nas suas expressões veste a música como máscara, e por isso ora se desfaz revelando o rosto, ora impõe de novo estas figuras suspensas sobre o vazio, embalando a tragédia nesse terreno inseguro onde uma linguagem nova se cria.
Dirigindo e integrando o elenco em palco, Marlene Monteiro Freitas explicou ao i que ao se acercar musicalmente desta tragédia, não quis conquistar “estados precisos, contar uma história, mas sim passar a força daquele drama com recurso à coreografia”. “Quando faço a transferência de um sentido, de uma palavra para um corpo que está em palco, e que não está a usar a palavra, há uma perceção que é mais rítmica e musical desses estados”, adianta. As palavras que vão ser ditas em cena não são já as de Eurípides, mas de outros textos escritos por referência às “Bacantes”.
A coreógrafa que encabeça esta equipa de elementos de diferentes nacionalidades, numa coprodução de várias companhias europeias, sublinha que este espetáculo vem na sequência de outros em que havia já um esforço para capturar “uma simultaneidade contraditória, exprimindo uma intensidade que escapa a categorias estanques”. E para exemplificar esta tradução entre universos, a intensidade que escapa aos modos clássicos da representação, e deve ser sentida através de outros elementos, escolhe a cena em que “Agave, mãe de Penteu, regressa com a cabeça do próprio filho ao palácio, e é o pai, Cadmo, que a faz voltar a si. Então, dá-se conta de que o que tem nas mãos não é um troféu de caça – a cabeça de um leão-da-montanha -, mas a do filho, que ela mesma desmembrou junto com outras mulheres, levadas ao êxtase por Dioniso. Fora de si, Agave não percebe que foi traída pelos seus sentidos, que o que vê não é o que vê.” E conclui afirmando que “a questão do olhar é importante aqui. Isto que nos liga à embriaguez, à visão dupla e ao espelho, à questão da face, do reflexo, da metamorfose.”