Poucas vozes fizeram carreira após brilharem num concurso. Sara Tavares e João Pedro Pais são exceções. E agora há Diogo Piçarra, farense de 26 anos, que depois de eliminado à primeira tentativa, venceu o “Ídolos” em 2012. Emigrou para Londres e, quando voltou, o país não o esquecera. O público para quem trabalha e que lhe deu duas vezes o número um do top. Há dois anos com Espelho e agora com Dois. No final do ano, estreia-se nos coliseus. Até lá, vai preparar a consagração. Em palco e nas redes.
O Dois é uma declaração de amor?
Nunca me tinham perguntado isso. Sim, é uma declaração de amor não só à minha namorada mas a todas as pessoas que não conseguem expressar aquilo que sentem pelo outro. O Dois serve mesmo para isso, tanto nos bons como nos maus momentos.
O outro está muito presente nas canções do Diogo Piçarra.
Tento escrever da forma mais imparcial possível. Algumas canções são biográficas mas a minha maneira de escrever tenta fazer com que as pessoas se identifiquem rapidamente e a música faça parte da história da vida de cada um. Penso que consegui isso desde que estreei a Volta (cartão de visita do primeiro álbum Espelho), uma canção carregada de sentimento sobre uma amiga que perdi. Não a escrevi só para ela, pensei em todas as pessoas que ficaram sem alguém,
Do particular para o universal.
Exato. A partir do momento em que a canção sai, deixa de ser minha e passa a ser das pessoas.
Já o surpreenderam com momentos de apropriação das canções em situações particulares de vida?
Sim, imensas vezes. Já vi muitos vídeos de casamentos com músicas minhas na entrada da noiva. Já recebi mensagens de pessoas a caminho da maternidade. O pai ouve uma canção minha e assinala o nascimento da filha ou do filho. E de pessoas que me agradeceram porque uma letra as fez voltar a falar. O objetivo de qualquer artista e compositor é que a música vá para além de um disco ou de um concerto.
Essas mensagens ainda o deixam espantado ?
Ainda. Desde que acordo até me deitar. Seja através de mensagens ou quando me abordam na rua, é interessante perceber como é que a música entra na vida daquelas pessoas. Até mesmo quando não se tratam de singles e são canções escondidas no disco. É sinal que ouvem, se identificam e guardam para si.
Quando se tem muitos seguidores, é mais difícil ter consciência de quem está do lado de lá?
É normal. Já não consigo responder a toda a gente como dantes. Dantes, lia cerca de dez ou vinte mensagens por dia e respondia depressa. Hoje em dia, não consigo. São cada vez mais pessoas a escrever-me, o que é bom sinal. Respondo assim que posso. Tenho pena de não estar tão acessível mas é um sinal de gratidão.
É uma preocupação não deixar ninguém de fora?
É. Sempre foi. Não estou a fazê-lo agora só porque chego a mais pessoas. Sempre tive essa preocupação desde que criei a primeira página de Facebook e publiquei os primeiros vídeos no YouTube com o meu irmão. Sempre tive a noção de que sem as pessoas não se faz nada. A minha vida tem sido assim: as pessoas partilham a música e através do boca-a-boca. Hoje, como chego através da rádio e da televisão, já não funciona tanto assim mas devo imenso às pessoas que me seguiram desde os primórdios.
Quando há muita gente a gostar, é mais difícil gostar de uma só pessoa?
(ri-se) Em termos afetivos? É normal conhecer mais pessoas. Na estrada, está-se em contato com muita gente. Pessoas simpáticas, giras…não há que ser hipócrita. O segredo é não cair no deslumbramento. Vão aparecer pessoas novas todos os dias mas há muito tempo que a minha vida é assim. Na banda da adolescência, já tínhamos groupies. Numa escala menor, já passei por isso. Não é por conhecer mais pessoas que me apaixono todos os dias. Quando estás bem em casa, não te deixas levar facilmente.
Na geração do Diogo, as relações tendem a ser fugazes e líquidas.
Sim, eu estou na geração intermédia. A seguir a mim, as pessoas ainda são mais assim. Para essa geração, é tudo impessoal. É tudo um teaser, as pessoas já nem veem o vídeo, só um excerto. Leem os resumos dos livros. A vida é toda ela um resumo. É tudo muito efémero. Passa-nos tudo à frente. É tudo publicidade, flash e ‘néons’. E, de facto, é tudo um engano. As relações estragam-se, os amigos perdem-se, um dia são BFFs, dois meses depois já nem falam. Toda a gente é maninho, irmão, agora «estamos juntos», depois já não…Penso muito nessa geração mas partilho dos valores dos meus pais que ainda hoje estão juntos e casados. Nasci em 1990 e tenho presente a ideia do compromisso. Só tive duas namoradas na vida. A primeira foi há sete anos. Passei muito tempo solteiro. Enquanto não senti que era a pessoa certa, não me comprometi. Com a namorada que tenho agora, estou junto há três anos. É a pessoa certa. Podem pensar que a vida de artista é ter muitas namoradas mas depende muito da educação. A minha personalidade nunca me levou para aí. Espero ser uma pessoa de família, fiel e leal.
Que importância têm os seus pais?
São a minha maior força e ajuda. Os meus pais, o meu irmão e a namorada.
Faz música por gozo pessoal ou para chegar às pessoas?
É uma mistura. Sinto imenso prazer a fazer música. É a minha forma de exprimir o que sinto – histórias na cabeça e vivências. E depois concilio com o que as pessoas pedem e com o que está na moda em termos de produção. Tento que seja o melhor dos dois mundos. É o reflexo da minha mudança. O Espelho é mais acústico e sereno – é a pessoa que eu era na altura. O Dois é mais agitado e eletrónico. Tem mais influências de hip-hop, seja de Drake ou de Future. Comecei a ouvir hip-hop em Londres e acho que enriqueceu este disco. Há sempre mudanças, posso trazer o reggae ou o dancehall, mas não deixa de ser o Diogo. É isto que eu sou hoje e o que ouço.
As letras continuam a ser românticas.
Sim, a essência está lá. Apesar de os singles Dialeto e Já não falamos serem mais dançáveis, a mágoa e o romantismo mantêm-se. É difícil fazê-lo com ritmos eletrónicos, mas consegui conciliar os dois universos.
Para alguém que gosta de preservar o seu espaço, como é que se faz música que pode passar numa discoteca?
Eu sou reservado aqui (ri-se). As minhas bases musicais vêm do rock e do punk. São ritmos mexidos. Como pessoa, sou reservado mas em palco sou animal. Dou tudo e o Dois é também o reflexo disso. No Espelho, as pessoas pensaram que era muito melancólico, romântico e baladeiro quando a verdade é que não. Mesmo no outro disco, transformava as canções para puxar pelas pessoas. Tocava tudo em palco: ukulele, guitarra, timbalões, bateria…ainda toco tudo, o repertório é que é outro.
O êxito é uma preocupação?
Não, preocupo-me acima de tudo em ficar satisfeito com o resultado final. Quando escrevo uma música, gravo e fico a ouvi-la durante horas, é a melhor sensação. Festejo sozinho em casa. Neste disco, há canções que me deixaram boquiaberto. O resto vem naturalmente. O êxito é secundário.
Havia um plano B se a música não resultasse?
Estudava comunicação e o meu objetivo era ser jornalista. Ou estar ligado a línguas. Ser professor de inglês ou de espanhol. A música sempre foi um hobby. Com a minha banda e sozinho. Fazia vídeos de versões, publicava na internet mas nunca quis ser reconhecido nem ter milhares de pessoas a ver-me. Era o meu escape, apenas. A minha carreira académica estava a correr muito bem. Já estava no mestrado de Ciências da Linguagem depois de ter terminado o curso de Ciências da Comunicação. Os meus pais inscreveram-me no “Ídolos”. Dei-lhes esse voto de confiança e correu muito bem. Foi um sinal de que devia dar prioridade à música.
Em 2009, foi eliminado do programa. A primeira experiência deixou marca?
Não correu nada bem. Fui avançando nas galas mas depois acabei eliminado. Foi duro, não estava nada à espera. É um misto de emoções. As câmaras, não poder descansar, ter três horas para aprender uma canção, tudo a cantar….É um turbilhão de nervos mas é bom para crescer e aprender. Depois, surgiu a TVI, a seguir a “Operação Triunfo” onde desisti a meio. Não me estava a sentir confiante. Em 2011, fiz Erasmus. Aproveitei para pensar no que queria fazer da vida. Acabei o curso em 2012, estava a tirar o mestrado quando surgiu o “Ídolos”. Tentei novamente e correu muito bem. Fui para Londres e aí dei prioridade à música.
Poucas pessoas fizeram carreira depois de vencerem ou dar nas vistas em concursos. Isso deixava-o receoso?
Sim, ver que quase ninguém conseguia vingar depois dos concursos dá medo. Pensava: sou mais um. Sempre nos avisaram no programa que a partir dali era connosco. Estávamos por nós. Sabíamos disso. E também, nada está ganho. Só passaram dois anos sobre o primeiro disco. Esta é a prova de fogo. Ainda por cima, estive parado três anos. Estava resignado a ter caído esquecimento. Mas quando lancei o Tu e Eu as pessoas reagiram como se nunca tivesse desaparecido. Se calhar, algumas pessoas têm mais dificuldade em aguentar-se sozinhas. Quando alguém não consegue escrever ou não consegue filmar, é mais difícil. Sempre fui controlador em relação a vídeos, a redes sociais e à gestão de carreira. Sempre fiz tudo sozinho e isso ajudou-me a subsistir enquanto não aparecia uma editora.
A autonomia é um traço de personalidade ou é uma consequência do que a Internet tornou possível?
Já era assim quando tinha uma banda com 15 anos. Na altura, já era eu a tratar do MySpace. Não havia Facebook nem Youtube. Já compunha, produzia no computador e tratava dos concertos. A autonomia foi crescendo comigo. A diferença é que não havia editoras nem luzes, estávamos por conta própria. Éramos nós que ligávamos para as câmaras para arranjar espetáculos. Tratávamos das capas e da impressão. A banda infelizmente acabou mas fiquei com essa escola.
Sente falta de trabalhar em grupo?
Ainda trabalho mas só nos concertos com a minha banda. No resto, estou sempre sozinho. Em casa, a compor ou produzir. Por um lado, é mais fácil porque só conto com a minha opinião. Com a banda era completamente diferente. Cada um dava a sua opinião. Vinha o baixo dar magia, vinha o guitarrista, o baterista…era tudo mais difícil porque era necessário gerir egos. Numa banda, todos querem aparecer. No meu caso, faço como quero e depois tenho a comunhão ao vivo. Somos quatro, eu e três amigos, muito profissionais e mais experientes de Faro.
Faro é um porto de abrigo?
É, se bem que lá já sinto que o mundo para um pouco. Sinto-me inútil. Há pouco tempo passei lá uma semana e fez-me lembrar o velho Diogo. À espera do autocarro para a universidade. Dá-me uma nostalgia quando vou lá mas depois há uma urgência em voltar. Está tudo à minha espera cá: estão as redes sociais, a música mas é sempre bom voltar para ver os meus pais e os meus amigos.
Chegará o momento em que terá de tirar um período sabático para evitar o excesso de exposição?
Isso era um sonho (ri-se). Não sei é se é possível em Portugal. Aqui, se não apareces és esquecido. Tive a sorte de desaparecer durante três anos, embora não tenha sido um silêncio absoluto. Fiz vídeos e gravei. Tive a sorte de ter voltado e estar tudo como quando o “Ídolos” acabou. Parecia que o programa tinha terminado naquela altura. Era bom poder parar e dedicar-me a outros projetos. Filmar: se já realizo os meus vídeos, porque não uma curta-metragem? Talvez seja possível um dia ficar atrás das câmaras. Neste momento, a minha carreira ainda não é certa. Ainda estou na corda bamba. Se este segundo correr muito bem, é sinal que superei a morte do artista. Se o terceiro resultar, talvez então possa dedicar-me a um projeto paralelo. Escrever um livro – já escrevi um mas não um romance. Fazer um filme, viajar pelo mundo ou constituir família (sorri). A música não é tudo.
Quando se desliga da música, a que dedica o tempo?
Não é fácil (ri-se). Gosto muito de andar de skate. Vou ao ginásio quase todos os dias correr ou limpar a cabeça. À terça-feira, jogo futebol. Sou uma pessoa normal, só que o meu trabalho é fazer música e levá-la as pessoas.
Consegue sair à rua sem problemas?
Sim. O nosso país é pequeno e simpático com as suas figuras. Não há paparazzi. Se houver, são combinados. É um país bom para ser famoso, embora eu não acredite na fama. A fama existe na cabeça das pessoas. Eu sou o mesmo de todos os dias. Consigo passear, se tiver de tirar fotos, tiro; se tiver de falar, falo; se tiver de abraçar, abraço; se tiver de dar beijinhos, dou. Faz parte do meu trabalho.
Escreveu Diogo Piçarra em Pessoa, um livro inspirado na obra de Fernando Pessoa. O que é que lhe trouxe?
Pois, essa experiência até foi uma espécie de pausa. Só que de três meses. Peguei em vinte poemas de Fernando Pessoa e reescrevi-os à minha maneira. Também musiquei dois poemas. O convite partiu de uma empresa com projetos escolares. O meu foi mais direcionado para o secundário. Fui apresentá-lo às escolas e houve também uma peça com um rapaz a fazer de Fernando Pessoa e outro de Diogo Piçarra. O Diogo Piçarra escritor é completamente diferente do cantor e, se já gostava de Fernando Pessoa, passei a adorá-lo. A melhor experiência foi o contato com os jovens.
Ser um modelo para os mais novos é um acréscimo de responsabilidade?
É, claro que sim. Sempre tentei ser um modelo não só como artista mas também como pessoa. Em cada gesto, seja um concerto, uma entrevista ou uma publicação nas redes sociais, tento ser o mais humano possível. É importante, sendo uma figura pública. Não gosto de me chamar assim mas sendo alguém com visibilidade, procura ser um modelo social. Muitas pessoas compreendem-no e inspiram-se para serem melhores. Trato da mesma forma a minha mãe, a minha vizinha ou o senhor que recolhe o lixo. Não é por ser mais mediático que sou o mais importante. Se nem o Presidente da República se sente dessa forma…
As redes sociais são uma forma de humanizar o artista outrora inalcançável?
Sim, tiveram esse efeito de aproximar as pessoas. Antigamente, os artistas eram mais misteriosos, distantes e inalcançáveis. Hoje, se não estiveres numa rede social, é estranho. As pessoas querem saber um pouco mais sobre a nossa vida. Se estás bem com a namorada, com a gata ou a apanhar sol na praia. Querem saber se os artistas sentem o mesmo que elas. É um contato bom, mas há que não esquecer do que está por trás, porque o artista é um modelo.
Lê os comentários nas redes sociais?
Vejo tudo! Seja no Facebook ou no YouTube, tento saber se estou no caminho certo, que é tocar na vida das pessoas. Há sempre comentários menos bons mas tento sempre relativizar porque, tal como estou deste lado, há sempre alguém do outro. Nem sempre é o reflexo de uma personalidade. São só os dedos a falar. Às vezes as pessoas nem são más, nem têm aquele veneno todo. Há que ter essa frieza de saber distinguir críticas boas de «porcaria».
Há o perigo de ficar refém das redes?
Sente-se uma pequena pressão. Hoje, talvez não tanta. Há uns tempos, quando estava a sentir-me cada vez seguido, sentia mais. As redes também estão sempre a mudar. O número de palavras numa publicação pode influenciar. A fotografia ter muita informação. O Facebook obriga-te a pagar para chegares a mais pessoas. O algoritmo está sempre a mudar.
Estuda essas questões?
Não, só leio alguns artigos. Qualquer artista que tenha uma rede social, tem uma empresa. É necessário saber a quem queres chegar, qual a faixa etária e os gostos. Saber de tudo um pouco é necessário. Realmente, é uma dependência mas sinto mais se passar muito tempo sem ir às redes. Como há sempre um acontecimento, um concerto ou uma entrevista, é quase natural. Tiro uma selfie e digo: «Estou aqui». Qualquer pessoa faz isso, mesmo sem uma página profissional. Já transferi tudo da minha vida para aí.
Gostava de conseguir chegar a um desses «inalcançáveis»?
Sim, aos estrangeiros porque, no caso dos portugueses, são eles que gerem as redes. Lá fora, a imensidão de fãs aumenta a responsabilidade. Essa distância sente-se no Kanye West, que é quase uma montra de roupa – adoro segui-lo por isso – ou o Justin Bieber – nem sempre é ele que põe as fotos senão estava cheio de noitadas (ri). O Drake também é um bom exemplo. É muito misterioso. A Beyoncé também. O The Weeknd. Não sei se ele é alto, se é baixo. A expressão dele nunca muda. Nunca o vi a rir-se. Gostava de o conhecer para saber se está à vontade. Esses são inalcançáveis.
Já pensa nos coliseus (27 de Outubro no Porto e 3 de Novembro em Lisboa)?
Já pensei nesses dias mas ainda vêm longe. Demorei muito tempo a preparar este espetáculo. É completamente diferente do Espelho. Está mais centrado no vídeo. Nos concertos em que for possível, existe uma tela à frente da banda. Estou praticamente sozinho em palco e escolho quando é que a banda aparece ou o vídeo. Nessa perspetiva, eu é que mando. Foram três meses de trabalho árduo e agora os coliseus só no final do ano. A partir do verão, vou começar a pensar nos surpresas, nos convidados e no palco em si.
Consegue imaginar-se dentro de vinte anos?
Eishhhhhhhhhh…Nem daqui a dois anos. Isso é uma pergunta difícil. Há dois anos, nem me via a ter um segundo disco. Não pensava arriscar mas começaram a aparecer novas influências e sugiram canções como o Dialeto. Daqui a vinte anos, só me vejo mesmo a ter filhos, uma mulher – espero que seja a mesma que tenho agora -, uma boa casa e uma vida estável. Vinte anos dão para quê? Cinco discos? (ri-se). Espero estar nos coliseus a celebrar vinte anos de carreira.