Incerteza, imprevisibilidade, indefinição, indecisão e por aí fora. Foram as palavras utilizadas, de forma mais recorrente, para apontar os desfechos dos principais atos eleitorais nos últimos tempos. Ao Brexit, às presidenciais norte-americanas e austríacas, ou ao referendo italiano do ano passado, juntam-se as eleições na Holanda (que já passaram) e em França (que se vão passar) no quadro das votações que encarnam de forma sublime as primeiras quatro palavras do texto.
Explicações há muitas, claro, e até costumam estar umbilicalmente relacionadas: desde a discorrida falência do establishment ocidental, passando pela resposta ineficiente das democracias tradicionais à crise económico-financeira, pelo renascimento dos adormecidos movimentos ultranacionalistas ou pelos efeitos da globalização – como a imigração ou o desemprego em excesso -, provocadores de discussões acesas.
O caso de França engloba todas elas e o resultado mais imediato da sociedade insatisfeita e fraturada que nela reside é um conjunto de sondagens que, embora distintas na atribuição de alguns pequenos pontos percentuais aos candidatos ao Palácio do Eliseu, concluem unanimemente que a segunda volta das presidenciais, no dia 7 de maio, será disputada entre dois dos seguintes quatro concorrentes, integrantes de uma lista que junta um total de 11 competidores: Emmanuel Macron (entre 23 e 24% das intenções de voto, de acordo com os inquéritos respetivos do OpinionWay e do Ifop), Marine Le Pen (22 e 23%), François Fillon (19 e 20%) ou Jean-Luc Mélenchon (18 e 20%).
Outros estudos há que colocam o candidato da França Insubmissa – o movimento de esquerda que agrega comunistas e socialistas dissidentes – à frente do republicano e até acima da concorrente da extrema-direita, na segunda posição, atrás do líder do movimento centrista En Marche!. Hipóteses diversas e ideais para cenários variados em que qualquer um dos “quatro magníficos” pode aspirar a defrontar um dos restantes três. E que, a poucos dias da votação deste domingo, apenas demonstram que apontar os quatro possíveis é mais aconselhável que antever os dois prováveis.
A dança dos favoritos
Nem sempre foi assim. Há uns meses, a líder da Frente Nacional (FN) era claramente favorita a marcar presença no confronto final de maio e Fillon era o candidato preferido para poder vir ocupar o lugar de presidente de França, vencendo essa previsível segunda ronda.
Se Le Pen perdeu fôlego e possíveis eleitores para o também pouco europeísta Mélenchon ou para a campanha do vencedor das primárias da direita, este último perdeu o estatuto de predileto, após a descoberta e desenvolvimentos subsequentes da alegada criação, e remuneração com dinheiros públicos, de empregos fictícios para a sua mulher, Penelope, e para os filhos, denunciada pelo jornal humorístico “Le Canard Enchainé” – Fillon foi mesmo indiciado pelos crimes de “desvio de fundos públicos”, “cumplicidade e ocultação do desvio de fundos públicos” e “cumplicidade e ocultação do abuso de bens públicos”.
O espaço deixado vago pelo candidato d’Os Republicanos caído em desgraça acabou por ser ocupado pelo centrista independente Macron. O ex-banqueiro e ministro de François Hollande cresceu espetacularmente nas sondagens e é, nesta altura, o grande favorito à presidência, caso consiga o apuramento para a próxima fase da contenda eleitoral.
Inexperiente – tem apenas 39 anos e nunca concorreu a uma eleição -, apartidário – prometeu “novas ideias, nem de esquerda, nem de direita”, aquando da criação da sua plataforma política -, e afortunado – foi o principal beneficiado pelo “Penelopegate” -, Macron aposta no chamamento do voto da direita moderada e da esquerda reformista de França, através de um programa pró-integração, pró-liberalização comercial e pró-Europa, e no distanciamento dos partidos do sistema e das candidaturas radicais e populistas. E embora o favoritismo seja real, não chega para garantir que Macron passa realmente à segunda volta. Uma vez mais, desaconselham-se previsões.
A queda do 'centrão'
A omissão do nome do candidato do Partido Socialista francês nas confusas contas acima apresentadas não resultou de qualquer incorreção. É que, de acordo com sondagens, Benoît Hamon apenas recolhe a confiança de cerca de 8% dos franceses.
O homem que defende a taxação de empresas que usem robôs para fazer o trabalho de pessoas e que promete um rendimento básico incondicional representa duas fações dentro do maior partido de esquerda de França – ainda no governo, há que recordar – e nenhuma delas parece estar a convencer os franceses.
Ideologicamente falando, Hamon faz parte da ala mais à esquerda dos socialistas. Partidariamente falando, é a cara eleitoral de um dos mais impopulares governos de sempre da história política francesa. Duas cruzes que o colocam bem atrás de Mélenchon – o experiente político de 65 anos, apoiado pela Front de Gauche, que promete convencer grande parte do eleitorado mais à esquerda – e que já levaram o ex-primeiro-ministro socialista Manuel Valls, ou os ministros alemães do SPD, Sigmar Gabriel e Wolfgang Schäuble, a declararem preferência por Macron em detrimento do candidato das suas famílias políticas.
A provável débâcle de Hamon – um dos poucos desfechos destas eleições que se conseguem prever com alguma correção – e as dificuldades apresentadas por Fillon põem a nu a perda de confiança dos franceses no seu establishment. Com 56% do total de votos na primeira volta das presidenciais de 2012 e cerca de 70% nas legislativas do mesmo ano, socialistas e conservadores estão em vias de não conseguir passar sequer dos 30% na votação deste fim de semana.
“Os eleitores afastaram-se de um sistema de representação para um sistema de identificação”, diz ao Politico Pierre Rosanvallon, professor de História Política Moderna do Collège de France. “No sistema ‘antigo’, os partidos tinham bases sociais identificáveis, e a sua missão era a de representar essa base, agregando os seus interesses. Agora estamos num processo de identificação. Os novos líderes estão a apresentar-se como conceitos e os eleitores são chamados a aderir a essa realidade”, explica o académico.
Os perfis, os percursos e as fações que representam, dentro dos partidos do centrão francês, fazem de Fillon e de Hamon candidatos peculiares, dirão os representantes do PS e d’Os Republicanos, e, nesse sentido, podem estar a contribuir para uma situação de associação errónea entre uma candidatura pessoal e uma realidade partidária. Mas ambos foram escolhidos em eleições primárias, por milhões de militantes.
Se um mau resultado no domingo – leia-se a não eleição para a segunda volta – não puder ser utilizado para argumentar contra a falência dos partidos moderados tradicionais em França, as eleições legislativas de junho tratarão de tirar as dúvidas. Nessa altura, talvez não sejam tão imprevisíveis. Têm a palavra os eleitores franceses.