É preciso dizer algo, logo a abrir: os Benficas-Sportings são tão antigos que começaram mesmo antes de haver Benficas-Sportings. Não, não é exagero: o primeiro Benfica-Sporting não foi Benfica-Sporting, foi Sport Lisboa-Sporting. E, já agora, o segundo também.
Um dia, há já dez anos, resolvi escrever um livro sobre os 100 anos de Benfica-Sporting/Sporting-Benfica. Chamou-se: Pior do que Inimigos, Eram Irmãos. Uma belíssima frase de Dino Segrè, mais conhecido por Pitigrilli, o autor do extraordinário A Loira Dolicocéfala.
Temos, portanto, de ir até ao início no dia 1 de dezembro de 1907. Mesmo antes. Veja-se…
No dia 30 de novembro, o Diário de Notícias noticiava esta possibilidade: «Vida Sportiva. Foot-ball. Desafios da Liga. Devem realisar-se hoje, no campo de Carcavellos, os desafios da Liga entre o Sporting Club de Portugal e o Sport Lisboa e entre o Carcavellos Club e o Club Internacional de Foot-ball». (Era assim que se escrevia e assim se reproduz).
A possibilidade desse «devem» tornou-se realidade. E os desafios disputaram-se mesmo.
Esta Liga de que se fala é, de facto, o Campeonato de Lisboa, a primeira competição por pontos disputada em Portugal.
Na origem
Não foi com leviandade que escrevi: antes do primeiro Benfica-Sporting já havia Benfica-Sporting. Sim, porque a rivalidade germinara antes de qualquer dos clubes entrar em campo naquele Primeiro de Dezembro de Mil Novecentos e Sete, assim mesmo por extenso e com maiúsculas.
Fundado a 1 de julho de 1906, o Sporting era, no início de 1907, um clube cheio de entusiasmo e sede de glória. Nascido dois anos e meio antes, no dia 28 de fevereiro de 1904, o Sport Lisboa estava a braços com a sua primeira crise. E que crise!
No início do Séc. XX, o futebol era um desporto caro. Tornou-se hábito dizer, em tom irónico, de quase gozo, que era o tempo das balizas às costas. Era mesmo. Completamente às costas!
Não tendo campos nem instalações próprios, os jogadores dos diversos clubes que tinham surgido entretanto estavam obrigados a desmontar os postes, a recolher as redes – geralmente compradas a pescadores – e a fazer peditórios para adquirir bolas, um verdadeiro artigo de luxo.
O Benfica pode, ao longo dos anos que seguiram, ter ganho a aura de clube popular e, até, plebeu. Mas não era isso que sucedia com o Sport Lisboa, em 1907. Muitos dos seus jogadores da primeira categoria, como se designava na altura a equipa principal, eram gente de elevada posição social. Januário Barreto era médico, Couto arquiteto, Francisco dos Santos, acabado de regressar de Paris, e José Neto eram escultores com certo nome, Silvestre José da Silva, professor, Pedro Guedes abraçava a carreira de pintor, os irmãos António e Cândido Rosa Rodrigues, conhecidos por Catataus, eram senhores das melhores relações. Além disso já não eram propriamente uns garotos e sentiam-se diminuídos pelo facto de o Sport Lisboa não possuir um campo próprio, sendo obrigados a treinarem-se e a jogarem nas Salésias, um terreno público, com todas as desvantagens inerentes.
Que diferença!
No Campo Grande, na antiga Alameda do Lumiar, hoje em dia Alameda das Linhas de Torres, José Holtreman Roquette, o José de Alvalade, que recebera um terreno do seu avô, o Visconde de Alvalade, erguera um campo de futebol com todas as condições e que era conhecido pelo Sítio das Mouras. Em breve teria também pista de atletismo, courts de ténis, pavilhão com vestiários e armários pessoais, chuveiros e banhos de imersão, sala de estar e de jogos e até uma cozinha equipada para a preparação de refeições quentes.
Ah! Que arrepiante diferença!
Orgulhoso das suas instalações e da sua sede, com lugar num edifício que era propriedade da sua família, ali ao Lumiar, José Holtreman Roquette sonhava agora com um grande team de futebol. O descontentamento dos jogadores da primeira categoria do Sport Lisboa entreabria-lhe uma porta que não tardou em abrir às escâncaras. De uma assentada, traz para o Sporting oito deles: José da Cruz Viegas, Emílio de Carvalho, Albano dos Santos, António Couto, António Rosa Rodrigues, Cândido Rosa Rodrigues, Daniel Queirós dos Santos e Henrique Costa.
Deserção? Dissidência? Traição?
De volta ao dia 1 de dezembro de 1907. No Campo da Quinta Nova, em Carcavelos, com arbitragem de Burtenshaw, magnífico jogador inglês do Carcavellos, as equipas alinham: SPORT LISBOA – João Persónio; Luís Vieira e Leopoldo Mocho; António Alves, Cosme Damião e Marcolino Bragança; Félix Bermudes, António Costa, Eduardo Corga, António Meireles e Carlos França. SPORTING – Emílio de Carvalho; Queirós dos Santos e José Belo; Albano dos Santos, António Couto e Nóbrega de Lima; António Rosa Rodrigues, Cândido Rosa Rodrigues, Jacob Eagleson, Cruz Viegas e Henrique Costa
Cosme Damião e António Rosa Rodrigues capitaneavam e orientavam as suas equipas, como era prática nesse tempo.
Recordemos a crónica saída no jornal Os Sports: «O principal fator da vitória do Sporting foi o peso; enquanto ao jogo, há falta de união. Depois de um embate renhidíssimo, o Sporting marcou um golo na primeira parte e esta acabou debaixo de uma chuva torrencial.(…) O Sport Lisboa esteve bem, mas com muita infelicidade e talvez esta motivada pelo estado de enervação do Sport Lisboa, por se encontrar com um grupo formado por antigos irmãos cuja recordação é um fel. Na primeira parte joga bem, embora o terreno não ajude. Na segunda parte arranca com energia e cinco minutos depois consegue marcar um tento. Obtido este resultado, eles marcham com mais energia, e o Sporting defende-se mal e com dificuldade, praticando novamente outras irregularidades. Quando todas as probabilidades lhe dão a vitória, cai uma grande bátega e o campo alagado não deixa caminhar a bola. Enquanto o Sporting abandona o campo, o Sport Lisboa permanece quedo. Burtenshaw obriga-os a voltar e eles obedecem com visível má vontade; a chuva tendo tornado frios os rapazes do Sport Lisboa, abate um pouco a sua energia e os adversários aproveitam-se e marcam novamente goal. Ficou feito o resultado». Irmãos e inimigos. Há quase 110 anos.