José Miguel Júdice. “Passos Coelho está morto politicamente e ainda ninguém lhe disse”

Júdice explica o que o levou a romper com o PSD, aponta erros ao seu amigo Marcelo e confessa que prefere Costa a Passos Coelho

José Miguel Júdice conta conversas que teve com Cavaco Silva, Durão Barroso ou Marques Mendes para ilustrar o seu pensamento sobre o país e o PSD. Numa longa conversa no seu escritório, na Avenida da Liberdade, o ex-dirigente do PSD confessa que António Costa é “mais adequado para este momento político” e aconselha o seu amigo Marcelo a falar menos. Garante que não tem ambições políticas, porque é “um mundo no qual se sentiria mal”, e rejeita ser um homem poderoso. “Isso dá-me vontade de rir.”

Foi apoiante e é amigo de Marcelo Rebelo de Sousa e foi o mandatário da candidatura de António Costa à Câmara de Lisboa. Posso presumir que acha que o país está bem entregue?

A democracia é sábia. Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa são os mais dotados das suas gerações. São as pessoas mais qualificadas, do meu ponto de vista, para as funções que lhes estão entregues na conjuntura que estamos a viver. Já pensava isso, e o que se passou a seguir às eleições… António Costa perdeu as eleições, mas conseguiu transformar uma derrota em vitória. O que é um sinal muito curioso e de mestria política, mas, depois disso, a argúcia e a habilidade deles fez com que o país esteja mais convencido de que esta é uma solução adequada. 

Revê-se mais no discurso de António Costa que de Passos Coelho?

Passos Coelho foi um homem que teve uma qualidade rara naqueles anos terríveis, que foram os anos da troika, e é um homem corajoso, determinado e teimoso. Ele sabia que ia pagar um preço por algumas coisas que fez e fê-las na mesma. Agora, é uma pessoa menos dotada do que António Costa para as subtilezas, as complicações e as especificidades da vida política.

O que está a dizer é que prefere António Costa para este momento político…

Sem dúvida. António Costa está mais adequado a este momento político. Ele está a conseguir fazer uma coisa que era muito difícil a um governo de direita minoritário fazer. A esmagadora maioria das coisas que foram feitas na boa direção – e algumas foram – não teriam sido feitas se fossem propostas pelo PSD e pelo CDS. Pragmaticamente, eu prefiro alguém que leve o assunto para a frente do que alguém que não consiga levar. Usando uma linguagem popular, é melhor um burro que me carregue do que um cavalo que me deite ao chão.

Saiu do PSD há dez anos. Saiu desiludido com o PSD? O que o levou a escolher aquele momento para romper com o partido?

Eu estou completamente afastado da vida política há muitos anos. Há muitos anos que nem sequer pagava as quotas. Tinha sido indisciplinado na lógica partidária. Sentia-me afastado. Há muitos anos que estava desiludido com a vida partidária. Naquela fase do tabu [em 1994] fui falar com o prof. Cavaco Silva e disse-lhe o seguinte: “Se o senhor quiser candidatar-se outra vez para mudar a realidade e avançar com uma solução diferente, se o senhor quiser fazer uma limpeza naquilo a que eu chamo a canalha, os bad boys do PSD, eu vou desgraçar a minha vida, mas estou disposto a apoiá-lo e a entrar, pela primeira vez, na política.” Fiz isto porque achava que era essencial, naquela altura, dar uma volta radical às coisas. Nunca fui um cavaquista, mas continuo a dizer que Cavaco Silva foi claramente o melhor primeiro-ministro que Portugal teve. O Francisco Sá Carneiro foi primeiro-ministro por muito pouco tempo. 

O que lhe disse Cavaco Silva? 

Ele fez um sorriso que era um sorriso de quem estava grato por aquilo que eu lhe estava a dizer, mas evidentemente que não queria voltar a candidatar-se a primeiro-ministro. Mas isto é um sinal do que eu pensava já nessa altura. Em segundo lugar, acho que o PSD mudou de natureza. Com Cavaco Silva, passou a ser um partido de consumidores em vez de ser um partido de produtores. Em vez de ser um partido das classes médias em processo social de ascensão, classes médias dinâmicas, energéticas, com vontade de mudar a sua vida e de mudar o país, passou a apostar nos setores menos dinâmicos da sociedade portuguesa.

Não houve nenhuma razão pessoal que o levasse a sair?

Houve uma gota de água que eu não revelei, mas está na altura de o fazer. Nessa altura fizeram duas ou três homenagens a Sá Carneiro. Eu tinha sido o advogado pessoal do Sá Carneiro, acompanhei a fase final da vida dele. Filiei-me no PSD em homenagem a Sá Carneiro um ano depois da morte dele e fiquei chocado, fiquei triste, porque houve várias homenagens e, no PSD, ninguém se lembrou de me mandar uma mensagem a dizer “vai haver esta homenagem e se quiseres estar presente…”. Mas a gota de água não foi isso, porque a ingratidão é uma coisa normal na vida. O que me desagradou foi que, quando um amigo meu, sabendo do meu desagrado, me pediu para ir almoçar com o dr. Marques Mendes [que nessa altura era líder do PSD], ele, perante o facto de eu estar um pouco magoado, fez uma coisa extraordinária e disse-me: “O programa ainda não está fechado e, se você quiser, eu ponho-o já a ser o responsável por qualquer coisa.”

Reagiu mal?

Eu disse-lhe: “Ó Marques Mendes, você não está a perceber nada. De facto, a maneira como vocês funcionam na política é inaceitável, ou seja, quem chora mama, mas eu não quero mamar e, portanto, não estou a chorar. Estou apenas a registar que deixei de vos interessar.” É curioso que, dois anos antes, quer o Marques Mendes quer o Luís Filipe Menezes tiveram a gentileza de me telefonar a convidar para fazer parte das listas num lugar de muito destaque. 

Não aceitou…

Não aceitei e deixei de ser uma pessoa relevante para aquele partido. Os partidos só se interessam pelas pessoas que podem ameaçar ou pedir. E, portanto, percebi que não estava ali a fazer coisa nenhuma. 

Ideologicamente, ainda se revê no PSD?

É na zona da ideologia do PSD, tal como eu a interpreto e tal como Sá Carneiro a definiu, que continuo a situar-me, mas não quero ter nada com os partidos e, sobretudo, quis ganhar a minha independência absoluta para fazer com mais à-vontade aquilo que me apetece fazer.

Marques Mendes disse, uns anos depois da sua saída do PSD, que José Miguel Júdice “quer estar com todos e contra todos ao mesmo tempo”.

É um elogio de quem não percebe nada das coisas, mas eu continuo a ter uma boa imagem dele porque acho que todos nós dizemos disparates. A minha vida fala por mim, ou seja, tudo o que fiz nunca o fiz através do apoio dos poderosos. Fui um crítico do Eanes nos dez anos em que ele era realmente poderoso, fui um crítico de Cavaco Silva nos dez anos em que ele era primeiro-ministro, fui mandatário de Costa e trabalhei com Marcelo Rebelo de Sousa muitos anos, mas, provavelmente, poucas pessoas terão sido capazes de fazer tantas críticas. Quem quer estar com todos não tem este comportamento na vida. Talvez ele fosse mais rigoroso se dissesse que eu tenho tendência para estar sempre contra todos. 

Como acha que o PSD olha para si?

Não olha sequer para mim, nem tem nada que olhar. Sou um advogado… Por acaso, olhou há uns tempos e isso irritou-me um bocado. Apareceu nos jornais, sem ninguém ter falado comigo, que eu seria um possível candidato à Câmara de Lisboa. 

Irritou-se com isso?

Irritou-me, porque não gosto de ser instrumentalizado. 

Concorda com aquela ideia que se generalizou de que o Passos Coelho mudou o PSD e transformou-o num partido mais liberal?

Curiosamente, não faço essa interpretação. O governo de António Costa é o governo mais à esquerda que houve em Portugal desde o governo de Vasco Gonçalves. Não tem nada a ver com o Vasco Gonçalves, mas não houve nenhum governo tão à esquerda. No entanto, uma das medidas essenciais da liberalização das sociedades é a redução do peso do Estado, é fazer os ajustamentos do lado da despesa. António Costa, bem ou mal, tinha previsto reduzir 950 milhões de euros na despesa em 2016 e reduziu mais de três mil milhões de euros. O que o governo de Passos Coelho dizia é que não era possível reduzir mais do lado da despesa. Claro que é possível. Não vale a pena pensar que a direita pode voltar ao governo se a única coisa que tem para dizer é o mesmo que a esquerda. Não encontramos medidas estratégicas de Passos Coelho que vão no sentido da liberação, no sentido do aumento da liberdade económica, política e social. Há uma tendência estatizante de todos os políticos portugueses. Cavaco Silva era um keynesiano. Não sinto, com franqueza, que a oposição tenha um programa alternativo. O grande problema dos políticos é que pensam sempre para a sondagem seguinte, pensam sempre para o telejornal seguinte, em vez de pensarem a médio e longo prazo. 

Não acredita que Passos Coelho consiga reinventar-se para voltar ao poder? 

A política tem uma coisa fantástica, porque os políticos podem estar mortos e ressuscitar. O Passos Coelho está morto politicamente, só que ainda ninguém lhe disse. Acho que ele está politicamente morto. Agora, se houver um colapso a nível internacional, se as taxas de juro aumentarem, se o petróleo subir brutalmente, se o país perceber os erros da gestão de António Costa, ele está por ali, vai a passear na rua e podem agarrar nele. Não estou a dizer que ele não possa ressuscitar, mas acho que está politicamente morto.

Depende do diabo…

Essa é uma frase infeliz. Todos nós dizemos coisas erradas e disparates, todos nós nos deixamos levar pelas emoções. Não dou nenhuma importância a essa afirmação porque é uma arma de arremesso contra ele que é injusta.

O apoio do Presidente da República tem sido decisivo para a sobrevivência desta solução?

Decisivo, não, mas tem sido importante. Eu disse antes das eleições, e houve pessoas que me censuraram por isso, que o Marcelo queria que o António Costa ganhasse e o António Costa queria que o Marcelo ganhasse. Isso era óbvio. Ninguém o queria dizer, mas era óbvio e está provado. O António Costa fez com Marcelo Rebelo de Sousa um bloco central. Compensou a sua fragilidade e a sua dependência dos partidos de extrema-esquerda com o apoio do Presidente da República. Ambos queriam o que aconteceu e ambos estão a colaborar nesse sentido. O que é bom. É bom que o Presidente da República contribua para a estabilidade governativa. 

Não exagera no apoio ao governo?

O que acho é que o Presidente da República tem cometido alguns erros e um deles é a verborreia, que ele agora, felizmente, está a diminuir. Quem fala sobre tudo não fala de nada. O segundo erro é um erro que resulta do temperamento dele. O Marcelo, sendo uma pessoa florentina, sibilina, capaz de tirar o tapete de baixo dos pés de alguém parecendo que lhe está a pôr o tapete para ele caminhar sem se ferir na calçada, é um homem propício a entusiasmos e realmente anda tão contente com o bloco central, com o António Costa, que tem exagerado. 

Não tem falado com o prof. Marcelo Rebelo de Sousa?

Não. Cruzámo-nos na apresentação do livro de uma amiga comum que é a [Maria] Filomena Mónica e cruzámo-nos na TVI mas, estando agora a comentar política, ainda menos o faria. Acho que é um erro absoluto alguém ser consultor do Presidente da República e ter programa de televisão.

Como Marques Mendes…

O dr. Marques Mendes é uma das quatro pessoas que o prof. Marcelo Rebelo de Sousa mais ouve e, ao mesmo tempo, tem um programa de televisão. Isto é mau para ambos. É mau para o Presidente da República, que pode ficar como a origem de notícias, a origem de informações que depois aparecem como cachas jornalísticas. Pode pensar-se que o que diz o comentador são testes feitos pelo Presidente da República, e o contrário também é verdade. A autonomia e a independência do comentador perdem-se. Não se percebe se ele é o boneco do ventríloquo, aquele boneco que fala mas é apenas a voz de quem o manipula, ou se é uma personagem com a sua própria autonomia.

É amigo de Marcelo Rebelo de Sousa há muitos anos. Ele preparou-se para isto? Para vir a ocupar um cargo político de relevo? 

Desde sempre. Se ele acabasse a sua vida tendo sido apenas presidente do PSD e ministro da Presidência do Balsemão, teria falhado uma parte substancial da sua vida. É uma pessoa que é muito mais do que um político. Não precisa disso para ser feliz. É um homem de enormes qualidades éticas. É manipulador, é capaz de jogar com as pessoas, é capaz de dizer mal das pessoas quando elas não estão presentes… Tem esses defeitos, mas tem enormes qualidades cívicas e é uma pessoa de uma honestidade elevada. É uma pessoa que faz falta na política. 

Embora tenha estado muitos anos fora da política.

Uma coisa que sempre me chocou é como é que um partido como o PSD tinha um homem como o Marcelo e nunca o utilizava. Ele, para ser candidato, teve de avançar contra o aparelho do partido de que fazia parte. Isto é a tragédia da vida política portuguesa. Se não fosse a determinação dele… Ele conseguiu demonstrar ao PSD que tinha as bases do partido com ele.

Aquele lado mais maquiavélico ou mais infantil do prof. Marcelo Rebelo de Sousa já veio ao de cima? 

Ele é maquiavélico de forma instrumental, é ácido, às vezes, com as pessoas, mas isso não é o objetivo da vida dele. Se ele achar que esse lado da vida dele, às vezes lúdico, outras vezes sarcástico, lhe é útil, não deixará de o usar, mas ele quer ficar na história como o melhor e o mais importante Presidente da República em democracia. Esse é o seu único objetivo. Ele está a pensar para a História. Quer ser o Presidente da República que toda a gente venha a considerar o melhor da democracia. Esse é o objetivo essencial. É uma estratégia a longo prazo.

Portugal tem um crescimento medíocre há mais de 15 anos, o sistema financeiro está numa situação muito complexa, a dívida continua a crescer…

Se continuar, vai estar uma hora a dizer os problemas do país. 

A minha questão é o que falhou. Foram as elites…

Há um falhanço das elites, mas não é só isso. O grande problema é que Portugal, um pequeno país de dez milhões de habitantes situado na periferia da Europa, sem recursos naturais fortes e dependente de ativos voláteis, não pode cometer erros e nós cometemos erros demais. Cometemos erros das mais variadas maneiras e estamos numa situação em que estamos cada vez mais próximos da Itália do sul, cada vez mais próximos da Andaluzia, cada vez mais próximos dos países subdesenvolvidos da Europa que vivem na dependência dos mais ricos.

Está pessimista?

Se fosse pessimista, não tinha feito nada. Foi o facto de lutar pelas coisas que me fez ter uma história da qual não me envergonho e fui mais longe do que alguma vez sonhei. A curto prazo, acho que as coisas estão melhores. Um dos erros do Passos Coelho é que, em vez de criticar, devia estar a dizer que o que este governo está a fazer é o mesmo que ele estava a fazer. Devia estar a dizer: vocês estão a dar continuidade ao caminho que eu desenvolvi. 

Essa coisa do otimista e do pessimista é importante na política. Passos Coelho é penalizado por ter criado a imagem do político pessimista, e Costa beneficiado por estar sempre otimista?

É decisivo. Os pessimistas veem o mundo de maneira oposta aos otimistas. Eu tento ser um otimista. Se pudesse ser pessimista, seria, mas não resistiria às dificuldades. Uma das coisas boas que Marcelo e António Costa nos têm dado é uma mensagem de otimismo. Estão a dizer aos portugueses que as coisas vão melhorar. Quando a gente via o Passos Coelho ou o Gaspar, na televisão, eles nem precisavam de falar, porque estavam de tal maneira torturados que só olhavam para o futuro com pessimismo. 

Acha que António Costa acredita mais nos portugueses do que Passos ou é uma questão de feitio?

Eu tenho uma teoria que, como todas as teorias, é exagerada. Faço a distinção entre magros e gordos. Os gordinhos são mais otimistas. O António Costa é gordinho, o Soares era gordo…

E os magros são pessimistas? 

O Salazar era magro, o Cavaco é magrinho, o Passos é magro, é uma linhagem de pessimistas. Quando alguém está bem com a vida, come melhor. O otimismo é importante. O que não me impede de estar muito preocupado com o futuro. Os riscos são muito grandes. O António Costa está a trabalhar à beira do abismo. Se tudo correr bem, ele tem um sucesso clamoroso e ganha as eleições em 2019 com uma maioria esmagadora, e, a seguir, Marcelo Rebelo de Sousa é eleito Presidente com outra maioria esmagadora. Se correr mal, ele vai dizer–nos que tentou…

Não está condenado?

Não. As pessoas vão dizer: ele falhou, foi otimista, deu-nos coisas que não devia ter dado, mas esteve do nosso lado. Na vida política ou pessoal, ninguém agradece a quem lhe diz as verdades. As pessoas vão achar que, mesmo no colapso, ele é melhor para nos ajudar do que o outro. Mas ele acredita que não vai haver colapso e essa é a vantagem de ser otimista. Ele, de uma certa forma, lá fora diz uma coisa e cá dentro diz outra. Diz que vai fazer uma coisa e faz essa coisa e o seu contrário. Repare que, em 2016, o investimento público em Portugal foi o mais baixo desde 1960. 

E mesmo assim consegue o apoio do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda. 

Ora aí está. Eu acho que ele é um génio. Eu vinha do Algarve ontem e estava a ouvir um CD com os melhores fados da Maria Teresa de Noronha, uma grande fadista que foi um bocado tapada pela Amália. Era uma fadista mais tradicional, do fado sofredor. Ela canta um poema lindíssimo [chamado “Gosto De Ti Quando Mentes”] com esta ideia: “Mente-me, porque só me dizes a verdade se me desprezares.” A política baseia-se nesse pressuposto. Os políticos mentem-nos permanentemente, mas nós queremos que eles nos mintam. Nós nunca votaremos em políticos que nos digam a verdade. É assim a política. Ninguém pense que se pode fazer política a dizer a verdade.

Julga que é assim em Portugal ou, em geral, os políticos não dizem a verdade?

É em todo o lado. Quem é que ganha as eleições a dizer que vai aumentar os impostos e criar desemprego? Mas o político convence-se de que está a dizer a verdade. O Fernando Pessoa dizia: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.” Os políticos são capazes de se travestir no seu oposto e acreditarem naquilo que estão a dizer.

A democracia é incompatível com a verdade?

A verdade pode ser uma agressão. Eu costumo dizer que um advogado nunca deve mentir, mas não é obrigado a dizer a verdade. A habilidade do grande advogado é não mentir, mas também não dizer a verdade se ela não convém ao caso que está a defender. É evidente que um político que só mente e que mente contra as evidências é um péssimo político e é castigado. 

No tempo da troika criou-se muito a ideia de que os portugueses viviam acima das suas possibilidades. O português comum também tem culpas na crise?

Todos temos culpas. Uns mais, outros menos. Todos cometemos erros. Mas isso é normal. Se você puser uma pessoa que está há 20 anos a comer comida com pouca qualidade numa sala com as maiores iguarias do mundo, o que é normal é que essa pessoa abuse. Já basta o tempo em que passou fome. Nós convencemo-nos e convenceram-nos de que éramos ricos. 

Isso no tempo do cavaquismo?

O cavaquismo, o guterrismo e o socratismo. Todos eles rezaram à mesma divindade com a ideia de que estamos na Europa e fazemos parte dos mais ricos. Uma das coisas mais horríveis que vi na minha vida foi uma família que tinha comprado a casa a crédito, o carro a crédito, as máquinas a crédito e tinha dois filhos a estudar a crédito e, quando a empresa onde os dois trabalhavam faliu, foram para o desemprego. Isto é dramático. Aquelas pessoas estavam a lutar desvairadamente para melhorar o seu destino. O que é facto é que toda a realidade apontava nesse sentido. Atirar a culpa para cima dos portugueses não é correto. Nós somos o país da OCDE que chega à taxa mais elevada de IRS. Todos nós estamos a pagar impostos de forma alucinada. Se nós estávamos acima das nossas possibilidades, agora estamos manifestamente abaixo. Eu, quando falo com os meus amigos advogados – trabalho muito no estrangeiro, mas pago impostos aqui -, ficam de cabeça perdida. 

Paga muitos impostos?

Não há nenhum advogado no mundo que pague os impostos que eu pago. Pagamos impostos como milionários que não somos. Os portugueses estão a fazer a sua parte de forma dolorosa. 

Os impostos aumentaram com a troika. Era evitável tanta austeridade…

A austeridade continua. O que é ter o investimento público reduzido ao nível mais baixo desde 1960? Isso é que é a verdadeira austeridade, porque não se provoca o efeito multiplicador. Nós vivemos em austeridade. O problema não é esse, o problema é que o Estado devia emagrecer. Quando o Centeno fez uma inversão de marcha, e partiu na direção de uma política como o BCE [Banco Central Europeu ] e a União Europeia queriam, ele conseguiu poupar. O Estado torra dinheiro. Nós continuamos a ter políticas de país rico sem termos a capacidade de sustentar essas políticas. Os acertos da redução dos custos do Estado vão vir a seguir. O António Costa está a tentar fazer isso depois de ter a maioria absoluta, mas vai ter de diminuir fortemente o peso do Estado. 

Passos Coelho entregou essa tarefa a Paulo Portas e saiu aquele documento que não deu em nada. 

Não fizeram porque queriam ganhar as eleições. O Durão Barroso disse-me uma vez uma coisa que gostei de ouvir. Disse-me que preferia ficar na História por ter feito as reformas de que o país precisa do que não fazer as reformas e ser reeleito. Gostei de ouvir. E pensei: finalmente temos aqui um político a dizer o que é preciso. Não o fez, porque nenhum pode fazer. Você não pode esperar de um político, que tem como único objetivo ser reeleito, que mude de natureza. Se mudasse, não era político. Todos querem estar a mamar no doce.

A juntar a todos estes problemas temos a elite política e financeira do país envolvida num processo judicial. Como vê este processo que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates?

Não quero falar de casos concretos. A corrupção é o maior crime que existe nas sociedades porque é o pai de todos os outros mas, por mais grave que seja o crime, não pode levar a violar o Estado de direito. Eu, antes de ser bastonário [da Ordem dos Advogados], dizia sempre que havia dois tipos de casos que eu nunca aceitaria, que eram defender um pedófilo e defender um traficante de droga. Mas quando houve uma pessoa acusada de pedofilia sem que ninguém aceitasse ser advogado do homem, fiz uma declaração a dizer que, se nas próximas 48 horas ninguém aceitasse defendê-lo, eu, o bastonário, seria advogado dele. Todos merecem ser defendidos e tiro o chapéu ao colega que o fez porque, naquela altura, era quase tão difícil ser advogado de um pedófilo como de um banqueiro. Eu sou advogado até ao fim. Portanto, não há crime que justifique a violação do Estado de direito e, infelizmente, tem-se violado muito o Estado de direito em Portugal. Os abusos da investigação criminal… 

Está a referir-se a algum caso concreto?

Acho que é essencial fazer-se uma grande investigação jornalística sobre aquilo que Dias Loureiro significou, aquilo que significaram aqueles que eu censurei no cavaquismo. E até lhe conto uma história. Uma vez, o prof. Cavaco convidou-me para almoçar e, quando cheguei, ele disse: “Estes advogados de negócios…” À despedida, voltou a dizer-me a mesma coisa. E eu disse-lhe: “O professor não está a querer ofender-me, mas chamar a um advogado advogado de negócios é ofendê-lo. Se quer que lhe fale de advogados de negócios, posso falar de alguns que estão no seu governo. E alguns nem são advogados.” Mas defendi publicamente o Dias Loureiro pela patifaria ignóbil que fez uma procuradora da República. E está tudo calado. O Presidente da República calado, a ministra da Justiça calada, o António Costa, que censurou, e muito bem, o que se tinha feito ao camarada dele no tempo da Casa Pia, calado. Eu gostaria de o ouvir agora. 

Deviam falar sobre esse caso concreto?

Este não é o único caso em que isto acontece, mas os políticos são oportunistas. Não são capazes de dizer aquilo que diziam que era essencial. O Marcelo Rebelo de Sousa fala todos os dias das coisas mais variadas, mas não tem uma palavra sobre esta violação do Estado de direito. Porquê? É um dever do Presidente da República. O Jorge Sampaio teria tido. Por enquanto, o melhor Presidente da República ainda é o Jorge Sampaio e o Marcelo vai ter de pedalar muito para lá chegar. 

É considerado umas das figuras mais influentes do país…

Isso dá-me vontade de rir. 

Porquê?

Não me considero uma pessoa poderosa. Estou a falar-lhe com toda a sinceridade. Acho que sou uma pessoa incómoda. As pessoas que me contactam, agora que tenho um programa de televisão [na TVI24], dizem-me que digo coisas que ninguém tem coragem de dizer. Isto não é ser poderoso. Ser poderoso é os outros saberem que posso dizê-las e eu não as dizer. Sou advogado e nunca me preocupei com as consequências financeiras e económicas que possa ter. Tenho atacado o Presidente da República, o primeiro-ministro, o ministro das Finanças, a líder do CDS, os banqueiros, os dirigentes de grandes instituições como a Santa Casa… É o meu luxo. Não tenho grandes carros, tenho uma casa que não é de luxo, não vou para hotéis de luxo e também não ando de barco com banqueiros nem sem banqueiros. Tenho uma vida de uma pessoa normal. Prefiro ser um Quixote do que um Sancho Pança.

É inegável que os escritórios de advogados têm muita influência.

Os escritórios, os bancos, as auditoras… Tanta gente tem influência. Já tive um adversário poderoso que contratou um detetive para saber tudo da minha vida. O meu poder é que não tenho medo. Sou um advogado de tribunal e ganho ou perco nos tribunais. 

Nunca teve ambições políticas?

As pessoas, agora, já acreditam que nunca tive ambições nenhumas. Quando fui bastonário, diziam que estava a preparar-me para ser Presidente da República. Nunca quis e continuo a não querer. Nunca tive qualquer vontade de fazer política.

Porquê?

É um mundo do qual não gosto. Gosto da política, mas não gosto de estar dentro da política. É um mundo no qual me sentiria mal. Uma vez, o prof. Cavaco Silva telefonou-me, com uma voz firme, a dizer o seguinte: “Dr. Júdice, o partido está numa fase difícil e peço-lhe que não escreva sobre o PSD.” Eu escrevia aquela coluna semanal n’“O Semanário”. Isto foi na terça-feira e, no sábado seguinte, escrevi sobre o PSD. Eu era presidente da distrital de Lisboa e era normal que ele pedisse aquilo, mas eu tinha de mostrar que no Júdice ninguém manda. Sempre que ele me pediu ajuda corretamente, dei-lhe essa ajuda. Ele era o líder do partido e eu achava que ele estava a fazer algumas coisas bem feitas. Uma coisa é de livre vontade ajudar, outra coisa é alguém dar-me ordens. O meu pai morreu quando eu tinha três anos e não me habituei a obedecer. É um dos meus defeitos.