1.º de Maio de 1974. A poesia saiu à rua num dia assim

A única vez que Soares e Cunhal se juntaram num 1º de Maio foi logo a seguir à revolução. Estiveram lado a lado, os dois de fato cinzento e gravata escura. O país cinzento, esse, tirou o fato habitual e saiu à rua como nunca mais aconteceu

1974. Pela primeira vez depois de 48 anos de ditadura, era possível comemorar um 1.o de Maio, o Dia Internacional do Trabalhador. Era uma quarta-feira e havia um novo feriado no país.

Foi uma festa de celebração total. Ao lado de cartazes sobre “o direito à greve” ou ao “salário mínimo nacional”, havia-os a pedir “o fim da guerra colonial”, “o direito de voto aos 18 anos”, o “julgamento público dos criminosos fascistas”. Havia saudações: “Bem-vindos os exilados.” Proclamações: “A poesia está na rua.” Alguma estava de certeza. “Não paguem o aumento dos telefones”, “Julgamento público dos criminosos fascistas”, “Demos à PIDE-DGS férias no Vietname” [que ainda estava em guerra, que só acabaria um ano depois].

O povo estava tão unido como nunca mais depois desse dia viria a estar. Foi o único 1.o de Maio que Soares e Cunhal festejaram juntos.

Mário Soares, 49 anos, e Álvaro Cunhal, 60 anos, estavam lado a lado na mesma tribuna. Os dois de fato cinzento e gravata preta – a farda seria hoje impensável para um dia assim.  Nenhum tinha cravos na lapela (a polémica cravo-não cravo só chegaria mais tarde). Cunhal, só de camisa branca e fato. Soares, sempre friorento, levava por cima da camisa um pulôver também escuro, ainda mais escuro do que o fato cinzento. 

“Camaradas, em 25 de abril as Forças Armadas destituíram o governo fascista e colonialista de Marcello Caetano. Mas foi hoje, foi aqui que nós destruímos o fascismo.” Soares é muito aplaudido. De pé ao lado de Soares, Cunhal aplaude burocraticamente o discurso daquele que a breve trecho se transformará em grande inimigo. De resto, Soares encarrega-se de começar a separar as águas quando, de seguida, diz: “Essa vitória não é de ninguém, essa vitória é do povo português.”

“Eu quero saudar aqui, como legítimos representantes do povo português, o sindicalismo livre”, prossegue Mário Soares, de microfone na mão. “Foram eles os organizadores desta festa.” “Desejo também saudar as Forças Armadas. Sem elas, nada seria possível.”

Depois de ter dito que a vitória não era de ninguém – numa clara demarcação do PCP e da sua ala militar -, Soares faz questão de elogiar a luta dos comunistas. “Saúdo-vos a todos. Mas vocês permitam-me que me volte para Álvaro Cunhal.” As palmas interrompem o discurso. “E saúde o partido que foi incontestavelmente o partido que teve mais vítimas no fascismo.” Ovação. Continuação: “Nós, socialistas, que também nos honramos de ter as nossas vítimas, não nos envergonhamos de dizer, pelo contrário, proclamamo-lo. E é para essas vítimas, algumas das quais eu tive a honra de defender, que eu me volto saudando o Partido Comunista Português.” Nova ovação.

Mário Soares alerta: “Mas é agora que as grandes dificuldades vão começar. Eu não peço, camaradas, neste dia de alegria, não peço represálias contra ninguém. Se tenho uma palavra a dizer é que nós temos de ser tolerantes e temos de ser generosos. Mas, camaradas, é um escândalo que se peça a caça aos pides reles e que os Rapazotes e os Santos Juniores continuem em liberdade. É um escândalo, camaradas, que esse velho almirante Tenreiro” – há gritos de “assassino”, Soares continua -, “é um escândalo que esse velho e sinistro almirante Tomás, é um escândalo, camaradas, que esse hipócrita Caetano” – o povo continua a gritar “assassinos” – “estejam a gozar as suas férias na Madeira.”  

Soares pedia o julgamento de Américo Tomás e Marcello Caetano, respetivamente Presidente e primeiro-ministro depostos. “Esses são os responsáveis, esses têm de ser julgados. Não por um tribunal plenário, que nós não somos desses. Têm de ser julgados por um tribunal comum e com todas as garantias de defesa. O fascismo foi vencido. Mas as bases sociais de suporte do fascismo continuam intactas.” 

Álvaro Cunhal levava o discurso escrito e põe os óculos para o ler. Diz que “os militares, a nação portuguesa inteira, todos os democratas estão firmemente decididos a levar até ao cabo a liquidação do fascismo e dos seus restos, a consolidar e a alargar as liberdades, em pôr fim à guerra colonial, a instaurar em Portugal um regime democrático. São estes os objetivos fundamentais da hora presente. Eles podem e devem ser alcançados. E se o fizermos, sê-lo-ão.”

“Nestes dias deram-se passos gigantescos no sentido da democratização da vida nacional”, prossegue Cunhal, “mas o perigo da reação fascista, o perigo da contrarrevolução existe. Apesar de que ninguém mais do que nós, os comunistas, sofreu a repressão fascista, muitos com sangue, a liberdade e a vida, não nos anima o espírito de vingança.” 

“Mas devem assegurar-se todas as medidas necessárias a que os fascistas não voltem ao poder.” Cunhal faz um “apelo para um reforço da vigilância das massas populares em relação às atividades, às conspirações e às provocações daqueles que procuram na sombra reconduzir a nossa pátria à tirania”. Fala no governo provisório que será formado em breve para “realizar eleições livres”.  A vitória só chegará com “a unidade e a rápida ampliação e reforço da classe operária, das massas populares, das forças democráticas”. Talvez a palavra mais repetida por Álvaro Cunhal tenha sido “unidade”. 

Cunhal é extremamente aplaudido, mas só raramente por Soares, que olha para o lado, para a multidão e mexe no casaco. Soares não entrará na “unidade” proposta por Cunhal. Rapidamente, PS e PCP entram em conflito por causa da ideia da unicidade sindical (uma só central sindical). Nunca mais secretário-geral do PS e do PCP passarão um 1.o de Maio juntos.