A tese dominante sobre a segunda volta das eleições francesas mantém-se: a barragem republicana que travou o caminho a Jean-Marie Le Pen em 2002 voltará a formar-se para impedir que a sua filha Marine vença no domingo e altere de uma forma ainda insondável a arquitetura do continente e França.
Essa barragem, aliás, já se formou. Os tradicionais partidos socialista e gaulista já pediram o voto em Emmanuel Macron e não há razões para crer que o homem que já venceu a primeira volta – não sem alguma surpresa e muito alívio nos centros de poder europeus – vá agora perder a segunda.
As empresas de sondagens erraram no Brexit e vitória de Donald Trump, mas mantiveram-se essencialmente apuradas na realidade francesa. Em média, Macron tem 60% das intenções de voto e Marine Le Pen apenas 40%.
Esta segunda-feira, porém, Dia do Trabalhador e começo não-oficial do fim das eleições mais importantes da V República, não se viu a união consensual em torno de Macron que se viu em 2002 em volta de Jacques Chirac. Pelo contrário: as fraturas são visíveis e violentas.
Brecha
Le Pen avista uma brecha na barragem republicana. E com razão. As sondagens podem atribuir-lhe uma distância de dez pontos, mas, há semanas, essa vala era pelo menos três pontos maior. E esse não é o único sinal de oportunidade.
As grandes sindicais que marcharam esta segunda-feira com dezenas de milhares de pessoas pelas ruas da capital, unanimemente condenando-a e dizendo que é urgente travá-la nas urnas, não defenderam em conjunto o voto no único homem que a pode deter – das cinco organizações, só duas o fizeram.
O mesmo acontece com o movimento France Insoumise, de Jean-Luc Mélenchon, que promete lutar contra Le Pen, mas ainda não decidiu se vai fazer campanha pelo seu rival. E a violência antissistema que explodiu ao longo da tarde, quando algumas dezenas de encapuzados lançaram bombas incendiárias e feriram quatro polícias – um deles com gravidade – parecia quase repetir as palavras de ordem de alguns protestos: “Nem Le Pen, nem Macron.”
Homem do sistema
O inconformismo é evidente. Macron foi ministro da Economia do impopularíssimo François Hollande. Foi também banqueiro de investimentos. Coloca-se no centro, mas o seu programa económico tem contornos liberais. Le Pen espera aliciar um terço dos eleitores do centro-direita, mas procura também alguns dos desiludidos melechonistes, desgostados com a alta-finança, mesmo que menos de 10% estejam dispostos a votar nela.
“O adversário do povo francês será sempre o mundo da finança, e, desta vez, ele tem um nome, uma cara, um partido, apresenta a sua candidatura: ele chama-se Emmanuel Macron”, lançou Marine em Villepinte, nos arredores de Paris.
Le Pen não se lançou apenas contra o candidato do sistema. Na linha do que tem feito nas últimas semanas, ao afastar-se temporariamente da chefia da Frente Nacional e ao retirar o apelido dos cartazes de candidatura, Marine, como quer agora ser chamada, suavizou o discurso contra a Europa, deixou de pedir tão ostensivamente a – impopular – saída da moeda única, e, em seu lugar, apresentou um candidato a primeiro-ministro que se diz gaulista, fala de um programa de “amor” e insiste nos tons de um nacionalismo suave que se vê afrontado por dois radicais. “Entre o ‘tudo economia’ e ‘tudo religião’, nós oferecemos uma via alternativa”, prometeu.
Quem não a ajudou nesta missão foi o seu pai, que ela expurgou do partido mas não do cargo de seu “presidente honorário”, e que esta segunda-feira, como todos os anos desde 1988, organizou um comício do Primeiro de Maio em Paris.
Jean-Marie defendeu o voto na sua filha, mas não evitou recordar os traços mais radicais da sua antiga Frente Nacional: “Estão construídas milhares de mesquitas. Os talhos halal abrem por toda a parte. A Sharia pressiona-nos em todo o lugar. Nós estamos diante um risco de submersão. Mas repito-vos: não sou xenófobo, sou francófilo.”
Anti-França
Se Marine tenta “desdemonizar” o seu partido, Macron tenta que a sua face mais radical não se esqueça. O candidato centrista começou o dia de ontem num memorial para o Holocausto e numa homenagem a Brahim Bouarram, o jovem marroquino que morreu afogado no Primeiro de Maio de 1995 por um grupo de skinheads que se haviam separado do comício de Jean-Marie Le Pen.
A socialista Anne Hidalgo, a presidente da Câmara de Paris, esteve a seu lado. Mélenchon apareceu horas depois. Mais tarde, num longo discurso de campanha, Macron – que, de manhã, fez uma crítica pouco habitual à União Europeia, dizendo que, sem reformas, o seu país está condenado a querer sair da comunidade –, regressou à face racista e xenófoba da Frente Nacional.
“O combate de hoje trava-se entre dois projetos para a França, estritamente opostos. O de uma França patriótica, que exige reformas, eficaz e justa. Uma França forte numa Europa que a protege. E um outro, de uma França reacionária, nacionalista, que aproveita a cólera do povo para lhe dar apenas uma solução: a fuga, o ódio, a saída francesa do mundo e da História. A Frente Nacional é o partido da anti-França."