1.Marcelo Rebelo de Sousa resolveu condecorar Miguel Portas com a Ordem da Liberdade. Ontem, dia do trabalhador e dia do aniversário de Miguel Portas. E será sempre o dia de aniversário de Miguel Portas – a morte não apaga a presença de espírito, de inteligência, de carisma, de tolerância democrática e de civilidade que Miguel Portas sempre revelou.
Porque há muitos que apregoam a liberdade e a democracia – mas os seus actos e atitudes prestam um excelente tributo a qualquer regime ditatorial.
2.Poucos há (infelizmente!) que discorram genialmente sobre a democracia, sobre a liberdade como direito e como vivência (a liberdade em abstracto e a a liberdade em concreto, aquela com a qual nos temos que habituar a viver) – e, ao mesmo tempo, a vivam e a pratiquem. Sem sectarismos infantis, nem radicalismos tontos. Miguel Portas era um apologista da liberdade, um praticante da liberdade.
3.Por outro lado, Miguel Portas reconhecia a posição que Portugal ocupa no mundo, sem saudosismos de um passado trágico idolatrado por muitos dos seus camaradas; sem querer transformar o nosso Povo, a nossa história e a nossa localização geográfica em abono de uma qualquer utopia de “pequeno radical ensimesmado”.
Também neste aspecto, Miguel Portas era muito pouco bloquista – e daí que se tornassem públicas as divergências que, sobretudo no último período do seu activismo político, foi mantendo com Francisco Louçã. As reportagens e os escritos que Miguel Portas nos deixou sobre civilizações tão longinquamente próximas de nós são uma obra a preservar.
A estimar. A cuidar. E, sobretudo, a agradecer. Melhor ainda: há que agradecer a obra escrita de Miguel Portas, estimando-a e cuidando-a.
4.Porque, afinal de contas, o essencial em Miguel Portas era a sua faceta intelectual e racional. Mais visível no jornalista do que no político – talvez, por esta razão, o político Miguel Portas foi-se aproximando progressivamente do jornalista Miguel Portas, ao longo dos anos. Ironia do destino (mais uma!): o Miguel Portas em final de carreira política foi o Miguel Portas em início da actividade jornalística.
5.Dizíamos, pois que Miguel Portas era sobretudo um intelectual – um pensador, muito racional, que cedia, aqui e ali, à emotividade. Que cedia à paixão pelas suas paixões (que foram tantas e muito variadas).
O que justifica que, como político, se tornasse um pragmático: na verdade, para Miguel, a política era apenas o prolongamento natural da sua faceta de pensador. A possibilidade de materializar as suas ideias, os seus pensamentos em acções concretas. Em mudanças concretas no mundo e na vida das pessoas.
6.Note-se que Miguel Portas é uma daquelas personalidades que valem muitíssimo mais do que o partido em que militam. Miguel Portas valia, vale e valerá mais do que o Bloco de Esquerda.
Aliás, por vezes, é difícil compreender a sua opção político-partidária. Costumamos avançar uma explicação: Miguel Portas integra uma geração que viveu em permanente contestação do meio social que o rodeava. Sociedade, essa, que reputava como repressiva, fechada, hipócrita, cheia de regras, convenções e proibições – logo, Miguel Portas forjou o seu pensamento contra a sociedade, aquela sociedade em que viveu e que era a sociedade portuguesa de quase todo o século XX.
7.Daí o seu pensamento de apologia de ruptura da sociedade – e não de ruptura do Estado. Miguel Portas era contra a sociedade – antes de ser contra, ou apenas crítico, do Estado.
E esta razão explica que inúmeros intelectuais se tenham apaixonado pelas causas fracturantes do Bloco de Esquerda – queriam manter o Estado enorme e omnipresente, alterando apenas os seus fins e a sua orientação; queriam, ao invés, e simultaneamente, romper a sociedade. Mudá-la, transformá-la, libertá-la.
Libertá-la, não do Estado, mas dos “poderes sociais” e das “convenções sociais” formadas pela convivência histórica colectiva.
8.Tudo dito e ponderado, Miguel Portas era um racional que, por acaso histórico, se tornou militante do Bloco de Esquerda. Miguel Portas não do Bloco porque era racional – pelo contrário, Miguel Portas era um racional, apesar de ser do Bloco de Esquerda.
E Marcelo Rebelo de Sousa sabe-o melhor do que ninguém – pelo que não hesitou em lhe atribuir, justamente, a Ordem da Liberdade. Esperemos é que Marcelo saiba honrar o exemplo de LIBERDADE que Miguel Portas nos deixou – e que, no exercício das suas funções, saiba promover o pluralismo político, não se colando a um Governo (por muitas afinidades pessoais que tenha com o Primeiro-Ministro) e não continue a desrespeitar sistematicamente a oposição.
9.Para terminar, importa citar o que escreveu Ana Sá Lopes, na edição de hoje do melhor jornal diário português que é, como todos sabemos, o “i”: “ uma das vantagens de ter Marcelo como Presidente da República e não Cavaco Silva é que Marcelo é capaz de condecorar com a Ordem da Liberdade Miguel Portas”. É verdade: com Marcelo, não teremos esse problema.
10.A condecoração de Miguel Portas por Marcelo era previsível – Marcelo tem aplicado a sua doutrina do “jogo de cintura” às condecorações.
Ora condecora alguém do PSD (como Sá Carneiro) , ora condecora alguém do PCP, ora condecora alguém ligado ao PS, ora condecora alguém ligado ao BE. O parente pobre, no que respeita às condecorações presidenciais, tem sido o CDS/PP.
11.Verdadeiramente surpreendente seria a condecoração de Marcelo ao outro “mano” Portas: Paulo Portas.
Paulo Portas foi líder do CDS durante dezasseis anos, Ministro da Defesa, dos Assuntos do Mar, dos Negócios Estrangeiros e Vice-Primeiro-Ministro. Atendendo aos critérios de Marcelo para condecorar personalidades, há muito que Paulo Portas já merecia o tributo do Presidente da República.
12.Até porque há a tradição de condecorar os antigos Ministros dos Negócios Estrangeiros – e, afinal de contas, Paulo Portas foi Vice-Primeiro-Ministro. Sendo que já abandonou a política activa, por que espera Marcelo para condecorar Paulo Portas?
Ou, porque Paulo Portas é de direita, Marcelo tem uma objecção de consciência em conferir-lhe semelhante estatuto?
Curioso é que Marcelo distribui condecorações como distribuía elogios e referências nas “notas finais” dos seus comentários televisivos – com a mesma sapiência e habilidade de distribuir o “mal – ou o bom?- pelas aldeias” para não se comprometer politicamente…
Talvez a condecoração a Paulo Portas chegue no próximo 10 de Junho…Condecorar Miguel Portas, para quem conhece Marcelo, era previsível. Já condecorar Paulo Portas seria de homem! Se o fizer, teremos muito gosto em oferecer uma vichyssoise ao nosso Presidente da República…
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