O estranho caso da coroa
Em 1984, para agradecer a “divina providência” de Nossa Senhora no atentado de 1981, João Paulo II ofereceu a Fátima uma das balas que o atingiram. O santuário decidiu pôr o projétil na coroa da imagem de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, a escultura que é venerada na Capelinha das Aparições, e é aí que começa o mistério.
A imagem de N. Sra. foi oferecida à paróquia de Fátima em 1920. Já a coroa aparece duas décadas mais tarde: é entregue a Fátima em 1942, depois de uma campanha nacional de donativos dos portugueses, num sinal de gratidão à Virgem pelos filhos poupados na II Guerra Mundial. É feita de ouro, pesa 1,2 quilogramas e tem, diz o santuário, 313 pérolas e 2679 pedras preciosas.
O pormenor mais estranho dá-se em 1989, quando o santuário pede à joalharia de Lisboa a quem tinha sido confiada a criação da peça nos anos 40 para encastrar no conjunto a bala de João Paulo II. “A bala encontrou o encaixe perfeito no espaço vazio, deixado em 1942 na união das oito hastes que constituem a coroa de Rainha”, diz o site da joalharia Leitão & Irmão Joalheiros. A cavidade onde foi encastrada a bala era mesmo a única que tinha sido deixada pelo joalheiro na peça original. Se vai a Fátima por estes dias, vai poder espreitar ao vivo a peça. A coroa com a bala é utilizada oito vezes por ano, nos dias das aparições – 13 maio, 13 junho, 13 julho, 13 agosto, 13 setembro, 13 outubro – a 15 agosto e a 8 de dezembro.
Nossa Senhora e as 13 sósias
Ainda falando da imagem de Nossa Senhora dos anos 20, provavelmente já ouviu falar das “sósias” que correm o mundo. No início, pensou-se que a escultura da Capelinha das Aparições pudesse responder aos convites, mas a primeira viagem mostrou que ia ser complicado. A primeira vez que saiu de Fátima foi para um congresso da juventude católica feminina em Lisboa, em abril de 1942. A viagem até à capital demorou dois dias e passou por Leiria, Aljubarrota, Alcobaça, Caldas da Rainha ou Óbidos, terras que se “engalanaram” para o cortejo. O regresso começou a 13 de abril. “É como em Fátima, mas mais triste ainda, porque Ela vai partir e não volta”, escreve o “Diário de Lisboa”. Passaria por Vila Franca, Azambuja, Santarém e chegaria às 16h40 à Cova da Iria, “seguido de numerosos automóveis e de milhares de pessoas no meio de um delírio indescritível”. A imagem tornaria a sair outras cinco vezes entre os anos 40 e 50, mas os riscos de danificação levaram o santuário a só enviar a escultura original em ocasiões especiais. Desde os anos 80, saiu seis vezes, duas delas para o Vaticano, uma a pedido de João Paulo II (1984) e a última a pedido de Francisco (2013). Para fazer a vez da original nas viagens, apareceram as imagens peregrinas, a primeira logo em 1947, por indicação da irmã Lúcia. Esta primeira imagem visitou mais de 64 países, mas entretanto também passou a estar guardada no santuário e só sai em ocasiões especiais. Há 13 imagens peregrinas idênticas à primeira. Uma delas vai estar esta sexta-feira na sede da ONU, em Nova Iorque.
A horta da família de Lúcia
O local onde é hoje a Capela das Aparições no santuário de Fátima, que começou a ser destino de peregrinação logo em 1917, pertencia à família de Lúcia. A religiosa chegou a contar que, quando, em agosto, a aparição aconteceu nos Valinhos e não na Cova da Iria, a mãe dela – que não reagiu bem ao aparato em torno das crianças e pedia-lhes que dissessem a verdade – ficou satisfeita. “Se essa Senhora vier agora, a aparecer aqui nos Valinhos, ainda é bom, porque, talvez, essa gente venha para aqui, e deixem de ir à Cova de Iria. Aqui nos Valinhos, não causam tanto prejuízo, porque não é terra cultivada”, lembrou Lúcia, na sexta memória publicada em 1993. Tornaram a ver a virgem na Cova da Iria, que seria sempre o centro do culto em Fátima. A Igreja acabou por comprar os terrenos logo no início dos anos 20, não só à família de Lúcia mas a outros proprietários nas imediações para “organizar” as manifestações religiosas no local, isto mesmo antes de ser concluído o processo de validação das visões. A construção da Capela das Aparições começou em 1919.
Fontes nunca secaram
Logo nas primeiras romarias, que implicavam alguns quilómetros a pé desde a estação de comboios de Chão de Maçãs (hoje, o apeadeiro de Fátima), a igreja local apercebeu-se de um problema: o sítio não tinha água. Foram mandados abrir poços que, segundo a lenda, nunca secaram nos últimos cem anos, mesmo em período de seca. Os poços originais encontram-se hoje debaixo do santuário, onde existem alguns túneis de acesso. Dentro do santuário existe um único fontanário, na base da estátua do Sagrado Coração de Jesus. Tem quatro bicas. As propriedades da água nunca foram demonstradas e a Igreja chegou a determinar que fossem usadas apenas no local pelos peregrinos para matar a sede, mas no passado chegaram a ser motivo de romaria, à semelhança da atração da “água milagrosa de Lourdes”.
As contas do santuário
São um dos mistérios mais mundanos em torno de Fátima e que tem vindo a agudizar-se: desde 2006 que o santuário não divulga publicamente os relatórios e contas, depois de o conselho nacional ter entendido que existem falhas na regulamentação da Concordata entre o Vaticano e o Estado Português em matéria fiscal.
Nesse ano, as ofertas ao santuário totalizavam 9.311.455 milhões de euros. A atividade registava, ainda assim, um prejuízo de 3.702.414 euros, justificado com a construção da Igreja da Santíssima Trindade.
A história dos joelhos
São uma das tradições de Fátima que causam maior estranheza. Foi Lúcia que a começou e o relato surge nas suas primeiras memórias. A mãe da pastorinha mais velha, que tinha sido sempre cética dos relatos das aparições, estava doente em casa e os filhos pensavam que ela ia morrer. As irmãs mais velhas de Lúcia dizem-lhe, a certa altura, “se é certo que tu viste Nossa Senhora, vai agora à Cova da Iria, pede-lhe que cure a nossa mãe. Promete-lhe o que quiseres, que o faremos; e então acreditaremos”. Lúcia foi à Cova da Iria e prometeu que, se a mãe ficasse boa, iria durante nove dias seguidos desde o “cimo da estrada” (onde está hoje a cruz de madeira no santuário) até à carrasqueira a rezar e, no último dia, daria de comer a nove crianças pobres. Quando regressou a casa a mãe tinha melhorado e passados três dias já estava de pé. Acabou por ir com ela pagar a promessa. Dizia: “Nossa Senhora curou-me e eu parece que ainda não acredito! Não sei como isto é!”, escreveu Lúcia em 1935.
A escultora que viu Francisco
Um dos lugares de peregrinação por estes dias é a Loca do Cabeço, onde Francisco, Jacinta e Lúcia dizem ter visto o Anjo de Portugal aparecer em 1916. O sítio tem estátuas do anjo e dos três videntes, que começaram a ser feitas em 1958 pela escultora Maria Amélia Carvalheira da Silva. Numa entrevista publicada em 2003 no jornal “Cerveira Nova”, um anos antes de morrer, a escultora ligada à arte sacra, falava de um episódio insólito durante a preparação da obra. Depois de ter esculpido as imagens do Anjo, da Lúcia e da Jacinta, faltava-lhe o modelo para o Francisco. Um dia, perto do Natal, ouviu as gargalhadas de uma criança à porta do estúdio. Abriu a porta e viu um rapaz, que acabou por lhe servir de inspiração. Quando as esculturas foram expostas, o pai de Francisco e Jacinta, que ainda era vivo, disse que a cara era mesmo a do filho.
A escultora nunca percebeu quem era a criança.
As premonições…
Os estudiosos do segredo de Fátima e das revelações têm apontado para algumas profecias que os pastorinhos não teriam como saber de antemão. A ideia de que Jacinta e Francisco morriam em breve mas que Lúcia ficaria é uma delas – os irmãos morreram vítimas da epidemia de gripe pneumónica em 1919 e 1920. A terceira parte do segredo que lhe foi confiado, e que Lúcia escreveu em 1941, anuncia que no reinado de Pio XI começará uma guerra pior – em 1917 estava em curso a primeira guerra. Embora só tenha sido escrita já com a II Guerra Mundial em curso, os defensores do segredo dizem que seria impossível a criança saber o título do futuro Papa. A religiosa falou também de uma luz incomum antes da guerra, profecia que tem sido ligada à aurora boreal de 25 de janeiro de 1938, que causou espanto na Europa. O anúncio da conversão da Rússia é também apontado como premonitório, dado que a revolução marxista que viria a proibir a prática religiosa aconteceu a 25 de outubro de 1917. O facto de os segredos só terem sido revelados mais tarde gerou sempre dúvidas.
Em outubro de 1917 já havia voluntários
No ano passado, o santuário de Fátima registou 5,3 milhões de participantes em celebrações, apoiadas por 312 funcionários do santuário e 431 voluntários, isto sem incluir os voluntários dos Servitas de Nossa Senhora de Fátima. A história desta associação de leigos e religiosos que presta auxilio durante as peregrinações remonta à aparição de outubro de 1917. Na altura, um advogado de Torres Novas, Carlos de Azevedo Mendes, terá sido incumbido de proteger os pastorinhos no meio da multidão até chegarem à Cova da Iria. Em 1924, foi criada esta associação de voluntários, ainda antes da Igreja reconhecer formalmente que as aparições eram dignas de crédito. Hoje podem pertencer aos servitas maiores de 17 anos, depois de passarem por um curso. São fáceis de distinguir entre a multidão: os homens usam uma espécie de suspensórios, correias que eram usadas para transportar as macas com peregrinos que se sentiam mal. As mulheres usam uma bata de enfermeira.
A outra visão de Fátima
O Vaticano só reconhece 16 aparições marianas (ver págs. 20-21) e os relatos dos pastorinhos são uns dos que geraram maior devoção. Mas mesmo ao lado da Cova da Iria, a quatro quilómetros por estrada, há relatos de um acontecimento parecido no século XVIII, em que uma pastora muda terá visto Nossa Senhora aparecer no meio de urtigas, pedindo-lhe para ser construída naquele lugar uma capela. O relato chegou a ser investigado pela Santa Sé, mas não foi reconhecido. A primeira capela do santuário de Nossa Senhora de Ortiga (de urtiga) foi construída em 1758.
Toneladas de velas amarelas
A entrega de velas a Nossa Senhora é uma das tradições populares que em Fátima tem o ponto alto na procissão de 12 de maio. Em 2013, data dos últimos dados, foram derretidas 18 toneladas de cera só na procissão das velas. A venda deste artigo em Fátima terá começado nos anos 30. O jornal “Médio Tejo” recordou a história há uns dias, lembrando que havia vendedores de duas aldeias, Monsanto (a 27km) e Cardigos (a 86km). Na altura, as velas eram feitas de cera de abelha e não de parafina. Para manter a tradição, as velas usadas em Fátima continuam a ter o tom amarelado das do princípio do século passado.
A pequena azinheira e a grande azinheira
Quando começou a ser construída a capela das aparições, as pessoas que ali iam em romaria já tinham arrancado tantos ramos à carrasqueira (pequena azinheira) onde os pastorinhos diziam ter visto a Senhora que a árvore tinha morrido. Nas obras, algumas pessoas ficaram com as raízes, conta ao i Madalena Fontoura, que tem estudado a devoção mariana. Restou apenas a azinheira grande, que também aparece nos relatos, hoje uma árvore de grande porte ao lado da capela. Em 2007 foi classificada árvore de interesse público. Com cem anos de idade, tem 13,5 metros e um diâmetro de 19,3 metros.
A História do Hino
A música “a treze de maio, na Cova da Iria…” será das mais repetidas por estes dias em Fátima. O poema é atribuído a António Botto, que enviou os versos ao Cardeal Cerejeira. Botto, homossexual, tinha sido afastado do trabalho no Estado em Portugal e estava expatriado no Brasil.