D. José Saraiva Martins é o cardeal português há mais tempo a viver e a trabalhar no Vaticano. Chegou a Roma para estudar em 1954 e nunca regressou definitivamente a Portugal, nem tem planos para isso. Aos 85 anos, diz que continua cheio de trabalho – acaba de publicar um livro sobre a santidade no mundo de hoje. Ainda assim, não é difícil apanhá-lo do outro lado do telefone na cúria romana. Basta ultrapassar o italiano das telefonistas para conseguir ligação ao seu apartamento, sem qualquer burocracia pelo meio. Do lado de lá, um homem disponível para conversar e pragmático. O italiano e o português já se vão misturando, até nos pensamentos, admite. Mas continua a sentir-se filho da terra, uma aldeia serrana na Guarda. Antecipa um pouco do que dirá Francisco nesta primeira visita a Portugal e explica qual é, afinal, o significado de a igreja passar a ter dois novos santos, Francisco e Jacinta.
Nasceu numa pequena aldeia da Guarda, Gagos de Jarmelo, nos anos 30. Já se ouvia falar dos pastorinhos de Fátima?
Sim. Na minha família sempre ouvi falar das aparições e dos pastorinhos, desde criança. Ouvia aquilo sem compreender bem, evidentemente. Ouvia que a Senhora tinha aparecido, aquelas coisas todas, e aquilo ficava-nos na cabeça, mas em criança nunca fui a Fátima, só anos mais tarde.
Quando vai para o seminário, aos 12 anos, é por vocação ou para ir estudar, como alguns rapazes faziam na altura?
Sempre quis ser padre, desde criancinha. Desde muito pequeno mesmo, talvez quando comecei a ser acólito e a ajudar. Via o padre a dizer a missa e pensava para comigo que queria ser como ele.
Os seus pais acharam bem?
O meu pai não queria que eu fosse para o seminário. A minha mãe é que ajudou. As mulheres nestas coisas são mais generosas e foi ela que disse: “Não, se ele quer ir, deixemo-lo ir”. Ainda foi difícil convencer o meu pai.
Queria ajuda para trabalhar?
Naturalmente. Na altura trabalhavam no campo, tinha muitos terrenos e precisava dos filhos para ajudar.
Como era a vida na aldeia naquela altura?
Era uma vida muito tranquila. As pessoas viviam do trabalho do campo.
Com muita pobreza?
Não digo pobreza, porque havia os terrenos e as pessoas cultivavam para comer. Nunca tínhamos fome. Talvez nas cidades fosse diferente, mas na aldeia levava-se uma vida simples.
Quando entrou para o seminário, como é que imaginava o Vaticano, lá longe em Roma?
Nem sequer pensava no Vaticano, acho que nem sabia que existia.
Estava então muito longe de imaginar que seria o cardeal português a viver mais tempo na cúria romana.
Certamente. Durante muitos anos o único cardeal português na cúria.
Como é que foi parar a Roma? Foi porque quis ou mandaram-no?
Mandaram-me. Tinha estudado Filosofia em Espanha e ia começar a estudar Teologia para ser padre. Os meus superiores claretianos queriam que eu me doutorasse e mandaram-me para cá, para continuar os estudos.
Havia algum motivo para uns irem para Roma e outros não? Era o destino dos mais inteligentes?
Seria um bocado assim. Acharam que eu podia doutorar-me em Roma e depois voltar para Portugal. E quando fui pela primeira vez foi com essa intenção de regressar.
Acabaria por nunca voltar de vez. Como é que isso aconteceu?
Deus tinha outros planos para mim. Quando acabei de me doutorar em Teologia escrevi alguns artigos que foram muito bem recebidos e pediram-me para ficar como professor na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma, uma das principais universidades romanas, fundada em 1627.
Eram sobre quê esses artigos?
Foi sobretudo um artigo muito grande que eu fiz, com mais de 100 páginas, sobre a colegialidade episcopal, que era um dos temas na altura mais discutidos no concílio do Vaticano II. Esta ideia de que os bispos constituem conferências episcopais e também fazem parte do governo da Igreja. Eu escrevi a defender a colegialidade, na altura nem todos eram favoráveis a isso.
Era a defesa de uma igreja mais democrática?
Exatamente e que tem dado alguns passos. São os colégios que governam a igreja, com o Papa à cabeça. Na universidade leram aquele artigo e pediram para procurar o autor e foi assim que chegaram até mim. Convidaram-me para ser professor e eu aceitei. Depois de alguns anos queriam que eu viesse para Lisboa, para a Universidade Católica Portuguesa, mas lá não me deixaram vir para Portugal. Quando eu era seminarista primeiro apanhei o Papa Pio XII, mas nesta altura em que já era padre e professor era o Papa João XXIII. Uma vez, o Papa João XXIII perguntou-me “você o que faz em Roma?”. Eu respondi que era professor na Pontifícia Universidade Urbaniana. Ele até estranhou: “Tão jovem e já é professor na Universidade!”.
Tinha 30 anos, era pouco habitual?
Sim. Ficaria lá muito tempo. Acabei por ser reitor três vezes. Os meus colegas chamavam-me a brincar o “três vezes reitor” da Universidade Urbaniana. Depois, em 1988, o Papa João Paulo II nomeou-me secretário da Congregação para a Educação Católica, que é o ministério da Educação da Igreja. Depois, passados dez anos, nomeou-me prefeito para a Congregação da Causa dos Santos e estive lá mais de dez anos. E foi assim a minha vida.
Desde 2008 é prefeito emérito. Como é que são os seus dias na cúria?
Continuo a trabalhar como antes, a escrever sobretudo. Escrevi 36 livros, o último saiu agora.
Ainda não apareceu por cá. É sobre quê?
É natural, é em italiano. É sobre a santidade no mundo de hoje, em mudança. São reflexões depois de há dois anos ter feito um outro volume sobre a santidade, na altura chamado “A santidade é possível”. Agora quis falar do desafio de ser santo no mundo de hoje. O outro volume tinha 600 páginas, este é mais pequeno.
É um livro para padres ou para o público em geral?
É um livro para outros. Até porque a mensagem é que a santidade é possível para todos, mesmo nos dias de hoje. Não é um sonho inalcançável, não é um privilégio, é uma vocação universal.
Mas para uma pessoa ser declarada santa pela Igreja, como vai acontecer este sábado com Francisco e Jacinta, é preciso que sejam reconhecidos milagres, estas curas milagrosas de que ouvimos falar como a da criança brasileira salva pelos pastorinhos…
A santidade não é o mesmo que a beatificação ou a canonização. Esses processos são a aprovação da Igreja da santidade de determinada pessoa, mas todos somos chamados desde o batismo a ser santos. O batismo é isso mesmo: a vocação que a pessoa recebe para ser santo.
Mas o facto de a Igreja aprovar uns santos e não aprovar a santidade de outras pessoas mais normais não passa uma mensagem confusa?
Não. A Igreja, ao canonizar uma pessoa, não está a fazer outra coisa que não a propô-la como modelo de santidade para os outros membros da Igreja, aos outros batizados. É apenas isso.
Francisco e Jacinta foram santos antes deste reconhecimento?
É esse o sentido. Ao serem agora canonizados, a Igreja só está a dizer: aqui têm estes dois modelos de santidade, Francisco e Jacinta, que podem seguir.
Tendo sido responsável do organismo da igreja que lida com esses processos, não acha que este critério de ser preciso reconhecer uma “cura milagrosa”, corre o risco de tornar-se cada vez mais difícil de cumprir com os avanços da medicina?
Não creio. A Igreja é muito realista nestes processos. São trabalhos longos, que envolvem muitas pessoas, incluindo médicos e cientistas. São anos de investigação em que se conseguem fazer análises factuais.
E recebem muitos relatos de milagres?
Sim, temos centenas de processos a decorrer no Vaticano, muitíssimas causas de diferentes países.
Qual foi o processo que o marcou mais enquanto prefeito da Congregação para a Causa dos Santos?
Eu tive a prefeitura mais eficaz e mais fecunda na história da igreja: levei à honra dos altares 1320 santos e beatos.
Isso também pode querer dizer que não era muito exigente…
Quem, eu? Sempre muito exigente, não há margem para ser de outra forma. Existem normas a que todos os processos têm de obedecer. Todos marcam, mas era prefeito quando foi o processo de canonização de São Nuno de Santa Maria, outro santo português. Todos os processos têm histórias muito interessantes e que dão muito trabalho. É preciso avaliar a condição histórica, a condição médica, a condição teológica. Depois, há uma espécie de parlamento de cardeais que aprovam ou não as condições e os factos e depois o Papa tem de aprovar ou não.
O que pesou mais para os pastorinhos serem santos: foi a “heroicidade” de que se fala – terem insistido naquilo que viram e terem passado a rezar e a fazer sacrifícios – ou os milagres reconhecidos posteriormente?
É preciso definir bem as coisas. A beatificação e a canonização são a proclamação da santidade de uma pessoa ao longo da vida. O milagre é uma condição da Igreja para o processo, mas o milagre é feito por Deus. São as pessoas que rezam a pedir a intercessão dos candidatos aos altares e Deus, ao conceder essa graça, aprova a santidade daquela pessoa. O milagre é uma espécie de prova que Deus dá de que aquelas pessoas foram santos. É Deus que confirma a santidade. É a assim que a Igreja vê as coisas. Por isso primeiro vem a heroicidade da vida, que é a chamada que Deus faz a todos.
Como é que é suposto um cristão viver essa heroicidade nos dias de hoje?
Continua a ser a mesma coisa: é a pessoa viver em fidelidade ao que diz o Evangelho, ao que foi a revelação de Deus.
Mas tendo em conta o mote do livro que acaba de publicar, é mais difícil seguir hoje esses princípios?
Certamente. Viver hoje o Evangelho exige um grande esforço, é um verdadeiro ato heroico. O Evangelho ensina muitas coisas de entrega e respeito pelos outros, de desprendimento das coisas. Ser santo implica viver o Evangelho sempre, independentemente daquilo que a pessoa faz na vida, da sua cultura.
Esse percurso começa com acreditar em Deus. Nunca teve nenhuma crise de fé ao longo da sua vida? Nunca sentiu a fé a apagar-se?
Não. Mas o que é a fé? A fé é a pessoa dedicar-se a seguir o Evangelho. Pode haver dúvidas, mas seguem-se as palavras de Deus.
Não é uma iluminação mas um trabalho de persistência, é isso que está a dizer?
Sim e é por isso que se fala de heroicidade. Uma pessoa agarra-se ao Evangelho como norma, como luz na sua vida, e acredita que a palavra de Deus aponta o caminho.
Ultimamente tem havido alguma discussão sobre o que aconteceu em Fátima, se foram aparições, se foram visões. O bispo D. Carlos Azevedo, D. Januário Torgal ou o padre Anselmo Borges fizeram essa distinção, apontando para experiências, de certa forma, mais subjetivas. Para a Igreja, o que é aconteceu afinal em Fátima?
O que aconteceu em Fátima é muito simples. Nossa Senhora apareceu aos três pastorinhos. Foi isto que aconteceu. Vem dizer-se que foi uma invenção deles… não, não tinham como inventar uma coisa assim. Os pastorinhos viram Nossa Senhora, não a inventaram. Viram, ouviram Nossa Senhora, ficaram com as suas palavras, viveram-nas em profundidade e foram santos.
Mas como vê estas afirmações por parte de pessoas que pertencem à Igreja?
A Igreja aprovou oficialmente as aparições e quando a Igreja o faz tornam-se um facto histórico. Não há qualquer dúvida sobre isso.
Mas é dito que as aparições não são um dogma de fé. O que é que isso quer dizer?
Não são um dogma de fé mas são uma certeza. O dogma é o que faz parte da doutrina da Igreja. As aparições são um facto histórico da vida da igreja e da vida dos pastorinhos, que os levou a seguirem uma vida que hoje é considerada um modelo. Disseram o que tinham visto sem nenhuma malícia, não houve nunca qualquer especulação das crianças, não se aproveitaram disso. Eram crianças sem nenhuma cultura, não sabiam sequer ler. Por causa dessa experiência, Nossa Senhora de Fátima tornou-se conhecida em todo o mundo, como Lourdes. São os dois santuários marianos mais importantes do mundo, visitados por milhões de pessoas. Foi a fé deles que levou a isso, não qualquer especulação.
E como vê o comércio que cresceu à volta do santuário e que começou logo nos primeiros tempos de romarias? Incomoda-o?
Fátima teve sempre muitos peregrinos, é normal. Não posso dizer que me incomoda, até porque essas lojas estão todas um bocadinho distantes do santuário, não estão no lugar das aparições. Uma coisa é o santuário, outra coisa são esses objetos. Não se confundem.
E os “pagamentos” de promessas, algumas velas que têm o formato de partes do corpo?
São expressões da fé do povo. O povo é devoto a Nossa Senhora e encontrou formas do exprimir, não tem nada de especial.
Nos últimos 60 anos, mudou muita coisa no Vaticano?
Não mudou no essencial: mantém-se o centro da igreja universal, fiel aos seus princípios. A estrutura da cúria romana foi sendo aperfeiçoada, foram sendo criadas novas instituições, vários ministérios para tratarem das diferentes dimensões da fé e da vida igreja. A igreja acompanha os tempos, foi-se adaptando.
Houve alguns choques: os casos de pedofilia tornados públicos, os desvios financeiros. Como é que lidou com essas notícias?
Certamente que há problemas mas nem sempre o que dizem os jornais corresponde totalmente à realidade. Casos pode haver, mas são exceções, não são coisas gerais na Igreja.
Mas a Igreja passou a reconhecer mais essas exceções nos últimos anos. Bento XVI pediu desculpa pelos pecados dos sacerdotes e pelo abuso de crianças. Francisco também já o fez.
A Igreja sempre foi contrária a tudo isso, mas daí a generalizar vai uma diferença. Quando há um ou dois maus soldados, não se pode dizer que o exército é todo o mau.
Houve mais do que um ou dois casos.
O pecado é uma realidade e existe o sacramento da reconciliação. Foi Jesus que o instituiu, reconheceu que o homem pecava. Quando são crimes, quando realmente há crime, as pessoas têm de ser punidas. A igreja é feita de homens, mas não se devem generalizar estes factos.
Apanhou sete Papas no Vaticano. Qual deles guarda com mais carinho?
Para mim, francamente, os Papas são todos iguais. Claro que têm diferenças, cada um é Papa com o seu modo de ser, mas são todos sucessores de Pedro no seu tempo e completam-se mutuamente uns aos outros.
Que memória tem de cada um?
Pio XII, o primeiro que conheci numa audiência ainda como seminarista, foi um Papa extraordinário. Era muito devoto de Nossa Senhora e teve um papel importante no campo político. Salvou milhares de pessoas na II Guerra Mundial, judeus que vieram viver para o Vaticano.
Mesmo assim foi polémico.
Fez o que podia fazer para salvar o maior número de pessoas. João XXIII, que o sucedeu, foi o Papa conciliar. Foi o momento mais importante dos últimos 60 anos, de reforma da Igreja e adaptação aos tempos de hoje.
A igreja era arcaica?
Não, era a Igreja de outro tempo e tinha de se adaptar ao tempo em que vivia. Mas quando digo que os Papas se completam, a ideia de reformar a liturgia e do concílio foi de Pio XII. João XXIII, que foi um homem mais popular, soube aplicá-lo. Paulo VI a mesma coisa. João Paulo I teve, depois, pouquíssimo tempo, mas continuou. João Paulo II seria muito amado, mas não fez mais do que continuar o caminho dos Papas anteriores.
Bento XVI e Francisco, que conhece pessoalmente, são assim tão diferentes?
Não são diferentes, têm modos de ser diferentes mas não têm um pensamento diferente. Há uma perfeita continuação entre um e outro. Cada um dos Papas completa o magistério de Pedro com o seu carisma e é isso que vemos neles.
Mas o papado de Francisco tem sido muito mais mediatizado, agrada a crentes e não crentes. Essa popularidade tem sido boa para a Igreja?
Sim, com certeza que sim, porque a Igreja tem de ser popular, a Igreja é das pessoas. Mas isso não quer dizer que os Papas anteriores não quisessem a popularidade da Igreja.
Por vezes, porém, parece que Francisco é mais consensual fora da Igreja do que dentro.
Isso depende de muitos fatores que pouco têm a ver com fé. Todos acarinham o Papa e todos veem no Papa o sucessor de Pedro.
Mas dentro da Igreja não há cisões?
Pode haver diferenças em detalhes, mas não se põe em causa o seu apostolado. Cada Papa faz o que tem de ser feito no seu tempo.
Francisco chegou a sugerir que poderia ter um papado curto. A hipótese de ele resignar passa-vos pela cabeça?
Não, nada. Não pensamos nisso. É o Papa e basta. E é Papa porque Deus quer.
Mas Bento XVI era Papa da mesma forma e optou por sair.
Se ele tomou essa decisão certamente terá falado com Deus.
Como está Bento XVI?
Está bem, de boa saúde. Costumo encontrar-me com ele mas são encontros privados.
Já disse que gostou dos sete Papas que conheceu, mas com qual era melhor conversar?
São todos simpáticos, com os seus feitios diferentes. João Paulo II tinha um sentido de humor bastante grande, era muito amável. Era um prazer falar com ele. Com o Papa Francisco, que conhecia já há muitos anos, também. Éramos amigos, quando estava em Roma vinha sempre falar comigo das causas de beatificação e canonização argentinas.
Achou alguma vez que ele ia ser Papa ou não há esses palpites?
Não pensei nisso. Via só um homem muito simpático, muito amável.
É Francisco que tem estas ideias de usar as redes sociais, de aparecer na internet?
Ele age como São Pedro. A Igreja tem de usar os meios de comunicação, não pode prescindir disso nos dias de hoje para chegar às pessoas.
Que mensagem é que Francisco vai trazer a Portugal?
Vai falar naturalmente da mensagem de Fátima: da atualidade da mensagem de Fátima e do lugar de Fátima na Igreja, não na só Igreja portuguesa mas no mundo. Falará da importância e da sua transcendência para a Igreja universal, não tenho dúvidas disso.
Qual é a importância da mensagem de Fátima hoje?
É importante porque toca alguns problemas extremamente atuais para a Igreja e para a humanidade. Uma das coisas de que Nossa Senhora de Fátima fala aos pastorinhos é da necessidade da fé. É um problema atualíssimo: infelizmente a fé está a desaparecer em muitos setores da humanidade e Fátima é um convite para a renovar. É, depois, um apelo à conversão, à aproximação de Deus e à conversão perante os outros, que é outro ponto importantíssimo. A sociedade precisa que as pessoas estejam próximas umas das outras, independentemente da sua origem, que o Homem sinta que faz parte de uma família. É no fundo uma mensagem de esperança e o Homem de hoje tem pouca esperança. Até a própria mensagem de paz: Nossa Senhora pediu aos pastorinhos que rezassem muito pela paz, um problema tão atual.
O Papa vem a Portugal no centenário de Fátima, quando não irá por exemplo ao 300º aniversário da Nossa Senhora da Aparecida no Brasil. E escolheu canonizar os pastorinhos nesta visita. Mostra um carinho especial por Fátima?
Ele foi sempre muito devoto de Nossa Senhora de Fátima. Em Buenos Aires há um santuário dedicado a Nossa Senhora de Fátima onde ele ia muitas vezes e tem falado da mensagem de Fátima. Logo depois de ser Papa recebeu a imagem original de Nossa Senhora de Fátima no Vaticano. Sempre disse que viria como peregrino.
Virá com Francisco na comitiva papal. Gosta destes dias, com todos os protocolos de Estado, a presença de figuras políticas?
Não é a primeira vez, também fui a Fátima com João Paulo II. É normal receberem o Papa assim, para mais num país com muitos católicos.
Estando no Vaticano há mais de 60 anos, sente-se já mais daí do que português?
Penso em italiano e em português, tenho os dois passaportes mas sou português e continuo sobretudo a ser filho da minha terra. Passo todos os anos o mês de Agosto em Portugal e volto sempre à minha aldeia.
Foi difícil estar tantos anos longe, até quando tinha os seus pais vivos?
Claro, quem é que não ama o pai e a mãe e não quer estar perto? Mas depois Deus chama-nos a ir e nós não fazemos mais se não cumprir essa vontade.
Como é que o tratam na aldeia quando regressa lá?
Naturalmente que ter um filho da terra cardeal em Roma foi um acontecimento, mas é tudo normal. Dedicaram-me lá uma praça e, na casa onde nasci, há um placa a dizer quando me tornei cardeal, mas encaro tudo de forma normal. O mais importante é que me sinto dali.
E sente alguma coisa especial em Fátima?
É um lugar especial. Vou todos os anos a Fátima quando estou em Portugal e em 2003 e 2008 fui convidado pelo bispo para presidir à festa do 13 de maio.
Nunca viu Nossa Senhora?
[risos] Não, vejo-a no meu coração.
Mas é algo que uma pessoa, para mais um padre, gostava que lhe acontecesse? Ter uma experiência assim?
Não penso nisso. Chega-me viver a mensagem de Fátima, viver algo assim não depende de nós.
Tem planos para regressar um dia a Portugal?
Não tenho isso em vista.
E, estando com 85 anos, dá consigo a pensar mais na morte?
Não, é o que Deus quiser. Mas quando se fala da velhice digo sempre: a velhice não existe, é juventude acumulada. Desde que nascemos começamos a acumular experiência, sabedoria e juventude. E depois a Bíblia diz que a juventude é perene, nunca acaba.
Se não tivesse ido para padre, imagina-se a ter feito outra coisa?
Nunca tive outra ideia. Eu quis ser padre e agarrei-me a isso, nunca me pus a pensar noutras possibilidades. Podia pensar como poderia ter sido se tivesse ficado lá na terra, mas limitei-me a seguir o caminho que Deus quis para mim. A minha vocação é esta e sou feliz.
De todos os santos e beatos que ajudou a canonizar, qual é o modelo de vida que considera mais inspirador?
A fidelidade à chamada de Deus que é vivida por qualquer pessoa. Aquela experiência de fé que eu vivi na minha terra, no início, nunca deixou de ser inspiradora. Nenhum habitante da minha terra faltava à missa aos domingos, rezava-se em família. A fé não é uma coisa forçada, é algo natural, que deve fazer parte da nossa vida.