‘Era estranho se andássemos aí a fazer asneiras’

Em Aljustrel, a terra dos pastorinhos, a canonização de Francisco e Jacinta é motivo de orgulho. Dois dos oito sobrinhos vivos dos santos falam da responsabilidade e do privilégio.  

Elisa está a tratar da horta debaixo da chuva que vai e vem. Tem 92 anos, uns enormes olhos azuis. Também ela foi pastorinha, não muito tempo depois de Francisco e Jacinta. Acredita nas «coisas boas» que aconteceram por ali em 1917, mas não as sabe explicar muito bem. Ela nunca viu Nossa Senhora. «O mais que me aconteceu foi deixar-me dormir nos Valinhos. Quando acordei as ovelhas já tinham vindo para casa», sorri.

Estamos em Aljustrel, o lugar que viu nascer os pastorinhos e que hoje tem dois santos. «A vida era pobre, mas alegre», diz Elisa, ao recuar a esses tempos, em que estava longe de imaginar as romarias de peregrinos de todos os cantos do mundo. Ela passa despercebida aos grupos que sobem e descem a rua. Deixa-se estar sossegada a tratar das ervinhas, o que é melhor do que estar parada a pensar na vida, que vai carregada de tristezas para as quais não há milagres. Perdeu três filhos ainda pequenos e outro aos 40 anos. Tem uma filha doente num lar. «Eu precisava dela e ela de mim». Vai resistindo ao tempo num lugar que, com mais ou menos lojas de souvenirs, continua parecido com o que sempre conheceu. O caminho ladeado de muros baixos feitos de pedrinhas e pontuado de oliveiras.

Quase todos por ali têm uma ligação à família Marto, de Jacinta e Francisco, ou então à família da prima mais velha, Lúcia, a quem a Virgem confiou o segredo de Fátima – só Lúcia relatou ter conversado diretamente com a Senhora de branco. Jacinta ouviu o que ela disse e Francisco só viu. 

Hermínio é neto de Maria Rosa, a madrinha de Lúcia, e resume: «Primeiro as pessoas ficaram reticentes, mas depois houve o milagre do Sol e acreditaram. O meu avô, que era menos sensível, voltou de lá completamente diferente. E disse para os filhos: ‘Oh rapazes, que há lá alguma coisa, há’».

Se houve ou não, não consegue dizer, mas a fé nessas aparições que fazem cem anos vai crescendo também com os peregrinos, que todos os anos parece que são mais. «Parece-me difícil andar tanta gente enganada». Emília, 59 anos, tem a mesma convicção. E mais uns pozinhos que ajudam à fé popular com que sempre cresceu. «A minha avó lembrava-se de ter embalado a Jacinta no berço». E o avô era irmão do pai dos pastorinhos, daí o apelido, mas são ligações familiares a que nunca prestou muita atenção. Ela ficou sempre por ali mas, ao contrário de outros, não enveredou pelo negócio das lembranças que vai dos Valinhos à Cova da Iria, onde é hoje o santuário de Fátima. «Aljustrel continua a ser igual a qualquer outro sítio, a única coisa que tem é que quem pôde fazer negócio fez. Nós éramos pobres».

O irmão dos pastorinhos que nada viu

Em vésperas da canonização, os grupos estão sempre a passar na estrada que liga Minde a Fátima, mas são poucos os caminhantes que viram para a Rua dos Pastorinhos, hoje o epicentro de Aljustrel com as tais lojas de lembranças. Há algumas camionetas de turistas, mas o ambiente é sereno.

A meio da rua encontra-se facilmente a casa onde os pais de Jacinta e Francisco viveram os últimos anos de vida e a tomar conta dela estão dois dos oito netos, que herdaram os nomes dos tios que nunca conheceram. São filhos de João, o irmão dos pastorinhos que esteve na aparição de Agosto ali perto, mas nada viu. Ele era mais calado, mas foi do avô (pai dos pastorinhos) que herdaram o maior testemunho de fé. «Andava sempre com o terço, era muito meditativo». Eram quatro irmãos mas só sobrevivem agora eles os dois, Jacinta e Francisco. Notamos a coincidência e Francisco brinca: «E vamos ser canonizados no dia 13».

Estão habituados às romarias, há quem lhes peça fotografias ou até para tocar-lhes e foi assim desde pequenos, mas contam que desde a beatificação a procura tornou-se muito maior. Até ali também tinham feito a vida fora da terra, ela educadora de infância e ele gerente no Banco de Portugal. «Dantes, quando ia a uma repartição de Finanças, pediam-me sempre para repetir o apelido e eu tinha de dizer: ‘Sim, Jacinta Marto, masculino de Marta’. Só depois é que passaram a perguntar se eu era da família», conta Jacinta que, além do nome, cresceu com os avós a dizerem-lhe que tinha o físico e o temperamento da tia. «Ela antes das aparições era assim caprichosa, quando andava a brincar e a jogar nunca podia perder».

Já as parecenças estão à vista nas fotografias que decoram o exterior da casa: têm o mesmo olhar amendoado e a traquinice, que a Jacinta não mostrou na fotografia solene que correu o mundo, salta à vista na sobrinha, de 74 anos, despachada e de riso fácil perante os pedidos dos peregrinos para mais uma fotografia. «Começaram a fazer-me perguntas ainda era eu pequenina. Uma vez aqui deu-me uma fraqueza. Deram-me uma amêndoa e engasguei-me. Fugi para casa e não tornei a aparecer». Na fotografia de 1917, os pastorinhos aparecem calçados. Na dos irmãos homónimos, nos anos 40, há mais pobreza. «Era a Segunda Guerra, o racionamento», lembra Jacinta. «A primeira vez que pus sapatos tinha dez anos e foi quando fui embora pela primeira vez para trabalhar», diz Francisco.

Na casa guardam algumas memórias da família e a cama onde Francisco morreu e onde Jacinta, a sobrinha, viria a nascer duas décadas mais tarde. A cama enferrujada pelo tempo e um brinco da pastorinha, que lhe ofereceu a madrinha de batismo, são as memórias preferidas da Jacinta sobrinha. O outro não se perdeu mas está guardado para ser oferecido a Nossa Senhora, quando chegar o momento.

Diz-se em Fátima que 70% das lojas de lembranças estão ligadas à família dos pastorinhos, direta e indireta, uma estatística popular já que não há números oficiais. Por ali, todos já ouviram as críticas ao negócio, mas entram por um lado e saem por outro. «Que eu saiba, o santuário também vende lembranças», diz Jacinta.

Aparições também trouxeram chatices

Eles decidiram abrir a loja em 2002, depois de reunir o espólio ligado aos pastorinhos. «Temos aberta aos peregrinos a casa da família. Não cobramos nada. O que vendemos são os únicos donativos que temos». Os preços pagam os valores dos fornecedores e as peças pequenas rondam um ou dois euros. «Não estou rico e trabalhei mais de 40 anos», diz Francisco, que admite que as aparições acabaram por trazer coisas boas, mas também algumas chatices na família. Quando chegou a altura das partilhas do avô, houve algum conflito entre primos, com a parte do lado do primeiro casamento da avó a ficar com a casa onde cresceram os pastorinhos, vendida entretanto ao santuário. «Das duas vezes em que pude conversar com Lúcia pessoalmente acabámos por falar mais sobre estas coisas de família».

Hermínio, que também tem uma loja, também desvaloriza as críticas ao negócio. «Claro que se for caro, acho mal, mas não é o caso nas lojas que temos por aqui. Passa muita gente que diz ‘têm tanta sorte de ser desta terra’. Não escolhemos, é o nosso lugar e as pessoas vêm aqui. Na Cova da Iria também se fizeram hotéis, os cafés têm imagens, o santuário. Então tudo isso era uma exploração. Se as pessoas viessem e não houvesse nada também havia queixas». 

Agora com dois santos, Aljustrel poderá continuar a tornar-se popular. Muda alguma coisa? «Para nós é uma honra, um privilégio. Mas traz também mais responsabilidade, era estranho se andássemos para aí a fazer asneiras», diz Francisco. Jacinta fala da alegria – e está feliz por lhe terem dado um passe para assistir de perto à canonização – mas diz que, em matéria de fé, o apelo é o mesmo. Rezar e estar ali para os outros. Hermínio também reza, mas «com moderação». Não é capricho, mas uma forma pragmática de ver a fé. «Só rezar não chega. Há pessoas no mão de peito que, se fosse para levar a sério, a mão até ardia».

Alheia a tudo isto está Elisa, que sorri como se fosse novidade quererem saber dela. «Ainda bem que vieram fazer-me uma visita, meninos», termina.