Como há uma evolução da escala humana, há uma desagregação dos bairros, daquelas distâncias que os passos contavam repetidamente, as zonas da cidade que eram conhecidas como a palma da mão. E, por décadas, antes de nos habituarmos às lojas de conveniência, houve as mercearias, as lojas de esquina onde a fruta e os vegetais dispunham esse jardim consumível, mudando segundo os dias, dando corda às estações, como um calendário de rua. Havia e há ainda aquele compêndio das nossas necessidades básicas, os pequenos luxos, os vinhos e os licores, as conservas e os enlatados, os doces e os frutos secos, a selecta charcutaria, os buquês de flores… Como em Portugal, por toda a Europa houve vidas sempre dedicadas à conveniência das demais, e em França, por exemplo, “o árabe da esquina” era sinónimo desse amparo vizinho, que permanecia aberto quando tudo o resto gozava o seu descanso.
Quando, em 1999, o escritor francês Eric-Emmanuel Schmitt escreveu a peça “O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão” – que mais tarde viria a adaptar ao formato de novela, alcançando um sucesso fenomenal –, vivia na rua Bleue, onde a parte principal da acção se desenrola. Era um bairro judeu, e tinha um árabe e a sua loja aberta das 8 da manhã à meia-noite. Assim, se repete que árabe é sinónimo dessa persistência que ao longo dos anos serve os vizinhos, da loja aberta de noite e aos domingos.
Numa entrevista dada há uma dúzia de anos, Schmitt lembrava como muitos dos judeus que viviam naquela rua parisiense se sentiam muito mais próximos do árabe, alguém que tinha vindo da bacia do Mediterrâneo, do que dos judeus do norte e centro da Europa como, por exemplo, os Asquenazes. O dramaturgo lembra-se que as pessoas se sentiam confortáveis nessas lojas onde o tempo parecia partido, e a pulsação descia algumas oitavas.
Inspirada na infância de um actor seu amigo, o actor Bruno Abraham-Kremer, para quem inicialmente a peça foi escrita, Schmitt serviu-se do seu próprio avô ao desenvolver a personagem que lhe dá título. Sendo um autor prolífico, que continua a escrever ao ritmo de uma peça ou mais por ano, “O Senhor Ibrahim” tornou-se a sua obra mais célebre, e o evoluir das tensões religiosas na Europa retirou-lhe a moldura de um simples conto de fadas sobre harmonia entre religiões, para fazer dela “um antídoto contra a intolerância”.
Nesta história sobre um adolescente judeu que se torna amigo e acaba por ser adoptado pelo merceeiro árabe da rua Bleue, há uma série de distinções vitais que se vão fazendo. As noções crescem, os sinónimos ganham autonomia entre si, os preconceitos abatem-se e, se o Senhor Ibrahim, nem sequer é árabe, mas muçulmano, à medida que o rapaz convive com o velho, não nasce apenas entre eles uma forte cumplicidade, há toda uma cultura e sensibilidade, hoje representada nas notícias no seu rosto mais disforme, grosseiro e fanático, que reassume o seu encanto, a sua sabedoria mística e força poética.
Em 2012, a encenação desta peça valeu ao Teatro Meridional o Prémio do Público no Festival Internacional de Teatro de Almada. Agora, no ano em que a companhia celebra os seus 25 anos de existência, o espectáculo regressa para absorver-nos neste monólogo em que Miguel Seabra interpreta o papel do rapaz que, tantos anos depois, nos conta como cresceu a partir do ouvido, dando atenção ao mundo que conhecia o Sr. Ibrahim. Daquelas lições que, ao invés de se lhe imporem a ele como leis e obrigações, o ajudaram a encarar a vida de frente, sem medo, com gosto, ousadia, com lucidez também. Responsável pela encenação, Seabra é acompanhado em palco pelo músico e compositor Rui Rebelo, que entre a viola e o piano arquitecta cenários e ambientes, das distâncias medidas em passos, abre depois para os quilómetros na viagem que Momo e Ibrahim vão fazer até às origens deste, na Turquia.
Uma vez mais a eficácia da companhia dirigida por Miguel Seabra e Natália Luiza percebe-se nas conquistas de grandes leitores. Só depois de ter entoado as frases com o coração, emerge da página um tempo e uma voz, o seu imaginário toma as rédeas de um corpo, e os elementos atingem o mais generoso equilíbrio num personagem que se revela o herdeiro de um majestoso contador de histórias. “Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema”, disse Celan, poeta que escavou o seu fim de um modo não muito diferente do que acontece com o pai de Momo, que também vira a família morrer às mãos dos nazis. Mas serve-nos esta citação para notar como é mais provável que acreditemos numa voz que estabelece com quem a ouve um pacto, que sabe tornar-se cúmplice, dosear nos seus relatos o grau de clareza e mistério, ficando-se pelo bastante em vez de fazer desfilar perante nós fastidiosas representações.
Muito mais eficaz que espectáculos que povoam de distracções o palco, querendo engarrafar carnavais, Seabra consegue despertar-nos do torpor de tanta animação e da fanfarra azucrinante de tudo o que nos enterra em animação nestes dias, e vai seduzindo e coleccionando aqueles velhos instintos que temos quase recalcados enquanto ouvidores de lendas, das grandes odisseias aos não menos estruturantes episódios de circunstância, às anedotas, aos boatos e rumores. Todo esse universo oral um tanto desprestigiado, pela sua sobriedade, pelos pobres recursos que fazem da imaginação a sua matilha caçadora de horizontes e sentidos.
Este é um texto a que as próprias circunstâncias actuais atribuem agora uma força inusitada. Além da mestria de Schmitt, do modo como as suas palavras são feitas para a boca, como da boca trepam dos galhos da imaginação para aqueles mais altos cumes onde fica a espiritualidade, há ainda o modo como no tronco desta história se forma uma resina, se segregam pérolas. O triunfo de sabor e saber contido nos textos que são alvo de grande culto, textos que, ainda que de tempos a tempos motivem paixões equívocas, sirvam de justificação para tentações odiosas, para a autoridade daqueles que fazem a sua grandeza de submeter a si os outros, ainda assim, para leitores atentos, para ouvidos apurados, detêm sonhos a perder de vista, e o desejo de libertação que parece a marca de Deus nos homens. Textos como o Corão, como a Bíblia.
Escrita antes do 11 de Setembro, como notou Schmitt numa entrevista dada já este ano, esta peça foi escrita numa altura em que os ocidentais, na sua maioria, tinham alguma indiferença em relação ao Islão. “Hoje há uma desconfiança e um medo do Islão, e por isso a viagem em que levo as pessoas também mudou. Antes, levava as pessoas numa viagem de exploração e aventura, com o Senhor Ibrahim a abrir-nos as portas ao mundo do sufismo, uma perspectiva mística e de mente aberta do Islão, na qual as orações se fazem dançando. Hoje já não é uma viagem, mas tornou-se uma batalha pela tolerância num mundo que está cada vez mais intolerante”.