Estávamos em 2010, e também depois de uma visita do Papa, Bento XVI. Edgar Clara, então porta-voz do Patriarcado de Lisboa para a visita papal, não tardou a abraçar um novo desafio. Em outubro foi colocado à frente de paróquias na zona histórica de Lisboa, entre elas São Cristóvão. Apesar de ter nascido nas redondezas da capital, no Catujal, Edgar numa tinha entrado nesta igreja da Mouraria que, como outras do seu território, estavam fechadas dado o estado de degradação. Quando começou a estudar o património, sentiu que tinha de fazer alguma coisa e começou uma saga de angariação de fundos e restauro que esta semana fecha um dos capítulos. A tela do altar-mor, uma representação da “Última Ceia” do século xvii – que estava escondida e danificada – foi restaurada e regressou a casa. Hoje, pelas 19h, será apresentada ao público numa sessão que inclui retoques finais ao vivo.
Para Edgar Clara, a descoberta da tela foi uma surpresa, recorda. Em pesquisas online tinha encontrado uma fotografia dos anos 40 onde aparecia a representação da “Última Ceia” no altar principal, mas a tela não estava à vista. Também os paroquianos mais velhos se lembravam da pintura. Mesmo no meio de lixo e objetos danificados, e sem a “Última Ceia” à vista, o padre lembra que sentiu que o espaço tinha muito potencial desaproveitado. “A única coisa que pensei quando entrei ali foi que era demasiado bonito para estar fechado.”
Depois, investigando melhor o altar-mor, Edgar Clara percebeu que havia uma reentrância e umas roldanas que viriam a revelar a tal tela da foto, que, afinal, nunca tinha saído do sítio. A peça voltou a ver a luz no dia 9 de julho de 2013. “Era o meu dia de anos e costumo fazer uma missa para amigos. Foi nesse dia que levantámos a tela.”
A partir daí começaria a imaginar forma de avançar com o restauro, não só desta peça mas de toda a igreja, que há dois anos voltou a estar aberta ao culto. Ao todo há 35 telas, muitas atribuídas ao pintor barroco Bento Coelho da Silveira – como era o caso desta “Última Ceia” -, e o telhado e a cobertura da igreja, que sobreviveu ao terramoto de 1755, também estavam a cair.
Começaram um programa de “marketing cultural”, resume Edgar Clara. “Mesmo se houvesse alguma forma de ter de repente um milhão de euros para fazer as obras, o que não era possível a menos que houvesse uma situação de emergência, quisemos envolver as pessoas e sensibilizar para o património. Se tivéssemos feito tudo sozinhos, isto não atraía ninguém, mas quisemos criar uma comunidade. Todo o trabalho foi sendo feito gradualmente com o apoio de pessoas simples que nos procuraram para fazer um donativo.”
Não faltaram ideias. Começaram a vender telhas, que permitem a qualquer pessoa inscrever o seu nome nas peças que vão dar corpo à nova cobertura da igreja. Anónimos e conhecidos, locais e estrangeiros já passaram por ali e, ao todo, já têm mais de mil telhas assinadas, até em japonês.
A construção do telhado deverá começar no próximo mês. Na cozinha popular da Mouraria organizaram noites de fado e uma venda de biscoitos de São Cristóvão, confecionados por paroquianas, que ajudaram já a recuperar uma outra tela com a imagem de Santo António. Mas o restauro da tela que esta semana passa a ser um dos chamarizes da igreja foi feito através de um projeto de crowdfunding, no âmbito do projeto Arte por São Cristóvão, financiado pelo Orçamento Participativo de Lisboa. A recuperação da pintura de seis por dois metros, a cargo da empresa especializada de Braga Signinum, levou dois anos e custou 5 mil euros.
O “Watch Day” de hoje, que incluirá ainda esta tarde quatro visitas guiadas à igreja, teve o apoio do World Monuments Fund, que em 2015 incluiu a Igreja de São Cristóvão numa lista de 50 monumentos em risco. Edgar Clara diz que os rostos, de Jesus ou do apóstolo João são dos que mais o tocam na tela, que entretanto já há suspeitas de que, afinal, não será da autoria de Bento Coelho da Silveira. “Tive essa indicação de um perito do Museu Nacional de Arte Antiga, mas ainda não tivemos oportunidade de a estudar. É um novo mistério”, diz Edgar Clara.