Surrealista da primeira hora, eterno inconformado, Mário-Henrique Leiria (1923-1980) escreveu curto, como se tivesse ganas a coisas compridas, como as que um dia lhe queriam arrancar (presumivelmente, a instituição literária, atraída que sempre esteve pela produção de longo curso) e ele, por incapacidade, não alcançava: “- Coisas compridas como? – Bem, romances, crónicas autênticas, ensaios sólidos. – Não, isso não sou capaz. – Então você não é um escritor. – Pois não. Quem se atreveu a chamar-me tal coisa?”
Boa parte da prosa que então se estirava nas areias de Portugal, absorvida a reescrever a História, não era a sua praia, como agora se diz. Não lhe interessava a narrativa de grande formato, atulhada de lances descritivos e bibelôs, e à qual associava, com algum desdém, o enfado e a inutilidade das coisas sem préstimo. Movia-o antes a possibilidade de alcançar longe através de pequenas histórias, desenvoltas, insólitas, truculentas, inquietantes, tremendas: contos, microcontos, poemas indefiníveis, fragmentos de imaginação à solta, brevíssimos textos de subvertido fundo aforístico, textos-relâmpago, flashes de puro nonsense – enfim, contas feitas (pela academia), uma “miséria” de produção que dos usos & costumes da narrativa convencional fazia tapetes para o leitor se espalhar ao comprido.
Fiel à sua própria marginalidade, Mário-Henrique Leiria sempre declinou o estatuto de escritor, a normalidade burguesa, o respeitável, a compostura social e moral das palavras, a escrita a metro. Sabia bem que pode haver mais vida e “eficiência” numa frase mínima que num romance quilométrico ou numa dessas dissertações soterradas nos anais da academia. Que uma nêspera pode apontar mais longe que um melão alienado. “Quando as coisas vão a ficar maiores, deito logo fora”, escreve nesse long-seller que é o seu livro de estreia, num texto-assalto em forma de interrogatório apertado cujo título, ausente, bem poderia ser “Poética em Forma de Assim” ou mesmo “Autorretrato Literário”, a extravasar da moldura surrealista para deambular livremente por outros movimentos artísticos, alguns dos quais de sinal contrário ao surrealismo.
Os “Contos do Gin-Tonic” (1973), rapidamente convertido num livro de culto, e os “Novos Contos do Gin” (1974) fizeram dele um autor estranhamente popular; corria a década de 70, adoecida de tristeza. Feitos de aromas hilariantes, insólitos, por vezes de travo mais ácido que um limão, humor gelado e aquelas pedrinhas de perfídia que Mário Viegas, sempre sequioso de provocação, soube manter intactas, esses contos arrepiaram a pele da literatura que então por cá se fazia, esticada até ao limite do realismo, crivada de verrugas e de sinais atávicos de uma ficcionalidade envelhecida. E, claro, pouco habituada a altos teores de irreverência e subversão, a fazerem tombar as hierarquias e os valores instituídos. Esses primeiros livros que lavaram as gargantas de tantos leitores, há muito esgotados, davam expressão à suspeita de que é fraquinha – e quebradiça – a linha que separa o familiar do bizarro, a candura do monstruoso, a autoridade da marginalidade, a razão da alienação, o facto da ficção.
Mas nem só do mítico Gin-Tonic, esse fiel aliado, companheiro de todas as horas, vive a ficção deste português rebelde que morreu em 1980, com escassos 57 anos (“implodiu para dentro”, Cesariny dixit), deixando fama de comunista e obra inédita, tão sensível ao curso livre e imprevisível da linguagem como às águas paradas dos dias salazarentos.
A E-Primatur, correspondendo ao desejo dos leitores mais constantes de Leiria, que há muito reclamavam uma edição sistemática da sua obra, até agora dispersa e em boa parte indisponível, já pôs nas livrarias o primeiro de três volumes que hão de reunir a obra completa do genial iconoclasta. Além dos emblemáticos Contos e dos “Casos de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos”, já o ano passado repostos em circulação com o selo da mesma editora, “Ficção” recolhe contos dispersos e inéditos, claramente situados na família aromática do Gin, a novela “Diapasão”, teatro muito fora da órbita do convencional, guiões para cinema e até a erótica banda desenhada “Mário e Isabel”, originalmente publicada em 1975.
Ao leme da edição, que conta com ilustrações de Cruzeiro Seixas, está a investigadora brasileira Tania Martuscelli, que dirige o Departamento de Estudos Hispânicos e Portugueses da Universidade do Colorado/Boulder, nos Estados Unidos, e há décadas estuda o espólio do autor surrealista com rigor. afinco e resultados visíveis.
Ao elenco já conhecido dessa “comédia humana de gosto bem português” juntam-se agora revolucionários de café (e cápsulas de humor concentrado), leitores de suplementos de letras e artes (Que diabo!, “ou somos intelectuais ou não somos”), novos ministros e presidentes com o mesmo grau de desvario, generais com mais medalhas, juízes sem ponta de siso, o próprio J. Cristo, acusado de exercício ilegal da medicina, depois de ter acorrido a um lázaro de nova espécie, simples tipos com sorte: “Não era progressivo. Foi uma sorte. Chegou a Primeiro Secretário dum Partido.”