A Fábrica de Nada. Ou de um novo mundo

Estreia-se hoje na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, o último filme de Pedro Pinho. Entre a ficção, o musical e o documentário, um quase-ensaio sobre  que lugar deve ocupar  o trabalho. A partir da história de uma fábrica que pode até ser ficção  mas tem tudo de realidade

A dividir-se o mundo não há de ser entre esquerda e direita, mais fácil será entre “os que aceitam tudo” e “os que estão dispostos a abdicar”. Dos telemóveis, das viagens, dos tupperwares, e esses são nenhuns, ou quase, e serão cada vez menos quanto mais se descer na escala das classes, explica o operário ao intelectual, cineasta à procura de um laboratório para o futuro numa fábrica à beira de fechar. Fábrica de elevadores feita fábrica de nada no meio de uma crise da qual pouco haveria de sobrar, operários em protesto que não é ideologia, é desespero, luta pela manutenção dos seus postos de trabalho quando já nem o trabalho existe.

Esta história foi Pedro Pinho contar a uma fábrica da Póvoa de Santa Iria, em Vila Franca de Xira, numa adaptação da peça homónima escrita por Judith Herzberg há 20 anos e que Jorge Silva Melo, de quem partiu a ideia original deste filme, encenou com os Artistas Unidos em 2005. Mas do texto original pouco sobra neste filme de três horas, de ficção por onde hão de entrar o musical que percorria toda a peça original e o documentário, que tem hoje a sua estreia internacional na paralela Quinzena dos Realizadores, em Cannes. Única longa portuguesa a marcar presença nesta 70.a edição do festival de cinema francês, a que se somam duas curtas-metragens na mesma secção – “Água Mole”, de Alexandra Ramires e Laura Gonçalves Xá, e “Farpões, baldios”, de Marta Mateus – e ainda uma outra, “Coelho Mau”, de Carlos Conceição, que teve no domingo a sua estreia numa sessão especial da Semana da Crítica.  

Do musical ao documentário

 “O filme como ficou não tem nada a ver com a peça, a não ser a história da fábrica que fecha”, explica-nos Pedro Pinho numa conversa por Skype a partir de Cannes. “Foi adaptado à nossa realidade, muito adaptado.” Daí que seja esta a história de uma fábrica de Vila Franca de Xira que na verdade acabou por fechar mesmo, já depois de terminada a rodagem, e boa parte dos seus protagonistas sejam não-atores, num trabalho coordenado por Carla Galvão, uma das protagonistas. Operários a fazerem de si próprios num filme em que a ficção vai sendo pontuada por excertos documentais, operários a saírem das personagens e a serem eles próprios de novo, entrevistas sobre o que podia ser “A Fábrica de Nada” mas é realidade. “Os não-atores são operários que conhecemos na zona [em que foi rodado o filme, no início de 2015], pessoas com histórias de vida semelhantes às das personagens”, recorda Pedro Pinho sobre o processo desta produção da Terratreme e que fala sobre a sua dimensão documental como a forma encontrada de o aproximar da realidade que retratava. “Pensámos o filme de maneira a aproximá-lo da realidade, quisemos produzir um documento de verdade, porque aquilo a que estávamos a assistir ao longo do processo de preparação era de tal maneira forte e impactante que não podíamos simplesmente construir uma ficção em cima do que estávamos a ver.”

E o que vemos em “A Fábrica do Nada” é o que foram os últimos anos, a tragédia que alastrava por um país vergado perante a Europa e a troika, mas também mensagem de esperança. Da tragédia para a utopia que há de parecer difícil mas não impossível. Em parte musical neorrealista, em parte obra política que se faz quase ensaio numa discussão à mesa sobre o que é aceitável e o que não é no capitalismo – e veremos Isabel do Carmo sentada à mesa numa discussão com Anselm Jappe e Danièle Incalcaterra para que isto volte a parecer um documentário. O que Pedro Pinho (com Tiago Hespanha, Luísa Homem e Leonor Noivo, porque como a fábrica é dos operários este filme é deles todos) vê aqui é, mais do que um retrato sobre a crise, “uma interpelação, um convite à reflexão”, com “um conjunto de posições, de posturas e de propostas que são importantes para pensar como lidar com a questão do trabalho, explica. “Não tanto pensar o valor do trabalho, mas o lugar do trabalho no futuro. Agora Portugal vive já um momento completamente diferente [daquele em que o filme foi rodado, há dois anos], mas nesse sentido o filme não perdeu atualidade.”

Depois dos anos da troika, anos negros para todos e o cinema português incluído, é com o país já a reerguer-se que vamos assistindo aos filmes que saíram desse tempo e que têm dado a volta aos grandes festivais de cinema internacionais. No ano passado “São Jorge”, que Marco Martins levou a Veneza, que deu a Nuno Lopes o prémio de melhor ator na secção Horizontes, em fevereiro “Colo”, de Teresa Villaverde, a estrear na Competição da Berlinale, dois filmes sobre a crise a que se vem juntar agora “A Fábrica de Nada” na Quinzena dos Realizadores em Cannes. Fábrica de nada que pode ser fábrica de tudo afinal, laboratório para uma nova ordem, reflexão para o futuro com um otimismo que surge perfeito para este novo tempo que vivemos.