A crise dos mísseis em Cuba, que se desenrolou ao longo de treze dias em outubro de 1962, é justamente considerada como o período mais dramático e perigoso de toda a Guerra Fria. Não é exagero afirmar-se que o desencadear de uma guerra termonuclear esteve então por um fio. Recordemos alguns factos. Nikita Kruschev foi o responsável direto pela crise, ao ter tomado, três meses antes, a iniciativa de instalar sub-repticiamente na ilha de Cuba, com o assentimento de Fidel Castro, mísseis nucleares que ameaçavam uma boa parte do território dos Estados Unidos. A ideia surgiu-lhe durante um passeio numa praia búlgara do Mar Negro, ao ponderar que para além do horizonte que perscrutava se encontravam em território turco mísseis nucleares norte-americanos, que poderiam alvejar Moscovo em poucos minutos. De forma impulsiva decidiu “pagar-lhes na mesma moeda”. São estes os termos nas suas memórias: “Os americanos tinham cercado o nosso país de bases militares; eles mantinham-nos permanentemente sob a ameaça das suas armas nucleares. Eles iriam conhecer a sensação de terem apontados foguetes inimigos contra si próprios; não faríamos mais do que devolver-lhes – em ponto mais pequeno – a gentileza”.
John Kennedy geriu de forma equilibrada e cerebral a posição norte-americana mantendo, durante as quase duas semanas que a crise durou, um rigoroso controlo sobre os seus altos dirigentes militares. Tarefa difícil, pois alguns deles estavam impacientemente belicosos e desejosos de começar sem grandes delongas o bombardeamento da ilha, o qual, certamente, teria desencadeado um cataclismo termonuclear. Tem-se em mente, sobretudo, Curtis LeMay, general que terá inspirado a personagem do general Jack D. Ripper (note-se a ironia macabra subjacente a este nome) no filme “Dr. Strangelove”, rodado por Stanley Kubrick em 1963.
Tentando não se encurralarem mutuamente e socorrendo-se também de canais de comunicação heterodoxos à margem da tribuna internacional, os dois líderes supremos mantiveram um diálogo de alta tensão, é certo, mas que nunca degenerou em ira descontrolada.
Verificou-se um crescendo de perigo, que atingiu o seu pico no sábado, 27 de Outubro, dia em que, confessadamente, alguns dos altos decisores americanos, que aconselhavam então Kennedy na Casa Branca, fizeram telefonemas aos seus familiares mais próximos com a voz embargada de emoção, em tom velado de despedida.
O dia seguinte, o décimo terceiro da crise, que desmereceu assim a tradição de mau agoiro, viu o conflito desanuviar-se dramaticamente: Kruschev acedeu em retirar os mísseis já instalados ou em fase de instalação a troco da promessa de Kennedy de não invadir a ilha de Cuba. Um codicilo secreto assegurava ao líder soviético que os mísseis americanos seriam num futuro próximo retirados da Turquia.
Assim, houve cedências de parte a parte: a promessa pública da não invasão de Cuba tinha significado, uma vez que a celeuma causada pela tentativa frustrada apoiada pelos Estados Unidos no ano anterior não fora esquecida; também, a retirada discreta dos mísseis da Turquia atendia à angústia original de Kruschev e causa imediata da crise.
No entanto, para a opinião pública mundial a União Soviética tinha perdido a parada. Os círculos dirigentes soviéticos também o entenderam assim pois, dois anos mais tarde, quando da deposição de Kruschev, um dos motivos então alegados foi o deste líder ter arrastado o seu país para um projeto aventureiro e desmiolado nas Caraíbas.
A mensagem privada de Kuschev Kennedy, justamente orgulhoso da sua gestão, ao mesmo tempo que solicitou aos seus conselheiros a ocultação de qualquer triunfalismo, ofereceu-lhes algum tempo mais tarde uma placa comemorativa onde os fatídicos treze dias, de 16 a 28, apareciam marcados num calendário de Outubro de 1962.
Quando a palavra vitória foi mencionada neste círculo restrito que gerira a crise, uma voz estridentemente discordante levantou-se na Sala Oval da Casa Branca. Qual vitória! Tratava-se antes de uma derrota, pois acabara de perder-se a oportunidade soberana para “resolver” de uma vez por todas o problema, desperdiçando-se a ocasião, talvez irrepetível no futuro, em que o potencial nuclear americano era uma ordem de grandeza superior ao soviético. Provavelmente o leitor adivinhou: sim, a voz indignada era a do general Curtis LeMay.
No entanto, a experiência da guerra não era alheia a Kennedy ou a Kruschev. O primeiro capitaneara uma lancha que foi afundada em combate na Guerra do Pacífico, comportando-se então com bravura. O segundo participara na Guerra de 14-18, na Guerra Civil Russa, que se lhe seguiu e, sobretudo, tivera altos comandos político-militares nas batalhas de Estalinegrado e de Kursk em 1942-43.
Quanto ao resto, quase tudo os separava na vida: à origem proletária do líder soviético contrapunha-se a infância e juventude douradas de John Kennedy; a truculência e impulsividade de Nikita Kruschev contrastavam com a cerebralidade e reserva natural do Presidente americano. No entanto, no momento crucial, um fundo de decência e de humanidade salvou-os de caírem no abismo e de arrastarem com eles milhões de compatriotas. Ficam as próprias palavras de Kruschev, da mensagem enviada a Kennedy, no décimo primeiro dia da crise, quando a tensão se aproximava do seu pico: “Sr. Presidente, não deveremos ambos puxar as pontas da corda onde haveis colocado o nó da guerra, pois quanto mais as puxarmos mais apertado ficará o nó. E poderá chegar o momento em que o nó estará tão apertado que aquele mesmo que o enlaçou já não terá força para o desenlaçar, e então será necessário cortá-lo, e o que isso significaria não me compete a mim explicar-vos, uma vez que compreendeis perfeitamente que forças terríveis estão à disposição dos nossos países”.
“Saudar o povo russo” No dia 10 de junho do ano seguinte, Kennedy – pouco mais de meio ano era passado sobre a crise dos mísseis e restava ao Presidente menos tempo de vida ainda – proferiu um discurso na American University em Washington. A toga e a pompa universitárias poderiam ter induzido uma retórica de circunstância. Não foi assim: as palavras reverberam com autenticidade e tornam o discurso numa peça memorável. Para Kennedy, a paz seria o mais importante, afinal. “Mas que paz quero eu referir? Que paz almejamos? Não uma Pax Americana imposta ao mundo pelas armas de guerra americanas. Não a paz do túmulo ou a segurança do escravo. Não somente a paz para os americanos mas a paz para todos os homens e mulheres – não somente paz para o nosso tempo mas paz para todo o sempre”.
Kennedy propunha que se reexaminasse a atitude para com o arqui-rival soviético: “Como americanos, reconhecemos o comunismo profundamente repugnante como a negação que é da liberdade e dignidades pessoais. Mas podemos, contudo, saudar o povo tusso pelos seus muitos feitos – em ciência e no espaço, no desenvolvimento económico e industrial, na cultura e nos atos de coragem”.
Pelo seu lado, Kruschev, em conversas pessoais com líderes ocidentais, confessou-se profundamente tocado pelo discurso, considerando-o como a melhor afirmação de um Presidente Americano desde Roosevelt.
Por vezes, a proximidade do abismo, com a correspondente vertigem da possibilidade da aniquilação visceralmente sentida, é necessária ao passo de recuo para o lado da vida e da esperança.