Estamos numa conferência que defende uma visão aberta da economia. Quando lemos a doutrina social da igreja, vemos uma negação tanto do liberalismo capitalista como do marxismo comunista. Depois da queda do comunismo, como fica a doutrina?
Seguimos em frente com a passagem do tempo. Agora, a ordem mundial já não é – do ponto de vista político ou qualquer outro – a mesma. Mas em 1965, no Concílio Vaticano II, a Igreja já reconhecia a necessidade de uma nova abordagem ao mundo e às suas culturas. Uma das grandes premissas que saiu desse concílio, aliás, foi quando o Papa Paulo VI disse que «a Igreja tem que abrir as janelas» para ver a realidade lá fora e para quem está lá fora poder ver cá para dentro.
E agora voltámos a abrir as janelas?
Agora há um novo sinal, sim, que tinha que ser dado sobre a relação da Igreja com o mundo. No fim do concílio, o sentimento predominante era a entrada num novo diálogo. Isso ainda está muito presente. Depois do comunismo cair, o que defendemos hoje é muito próximo da visão do atual Papa. O comunismo caiu não pelo seu sentido de coletivo mas pela sua estrutura ateísta, e agora dizem: ficou o capitalismo. Mas não. Essa não é a única estrutura que temos. Não somos todos como os Estados Unidos da América. Na Alemanha, na Áustria, na Holanda, fala-se de economia social de mercado. No Ocidente, hoje, são esses dois blocos que existem.
E a Igreja está mais próxima da economia social de mercado que do ‘capitalismo’ dos Estados Unidos da América?
A Igreja está próxima de uma economia que valorize e respeite a pessoa humana. Que coloque a dignidade no centro. É esse o sistema que nós defendemos, que não sacrifique ninguém em nome de qualquer ganho ou lucro. Aceitamos qualquer sistema que reconheça a dignidade da pessoa humana. Se um capitalista vier e disser isso, tudo bem. Todos os sistemas têm que aprender que no centro estão as pessoas.
Mas desse ponto de vista, não é uma mensagem nova…
Não, não é. Certo. Mas não sendo uma mensagem nova também não é uma mensagem que tenha ficado velha. O mais básico do que sempre dissemos é que qualquer iniciativa do Homem tem que ser inspirada na verdadeira antropologia. Quem diz que defende a vida humana, deve saber o que ela representa. O que é um Homem?, entende? Se não percebemos o que ele é, como é que vamos fazer algo que o ajude? É preciso perguntar e pensar nisso.
E conseguimos fazê-lo numa cimeira de investidores?
Hoje de manhã conheci uma pessoa que me perguntou isso. «Estamos numa conferência onde se discutem investimentos e economias, o que está aqui [como padre] a fazer?». E eu respondi que se viemos falar de economia viemos falar de pessoas. E se estamos a falar de pessoas, eu tenho uma palavra a dizer. A humanidade não pode ser explicada só pela política ou pela tecnologia. A humanidade é explicada por quem procura compreendê-la.
E essa compreensão difere consoante a religião que se segue?
Naturalmente que sim. Mas qualquer religião parte do mesmo ponto: da questão sobre o que é uma pessoa. Nós diríamos que a pessoa não é apenas uma coisa material. Quando falamos de crescimento económico em termos de produto interno bruto, reduzimos a pessoa aos números. Isso é uma lógica redutora da humanidade.
E, do seu ponto de vista, os decisores políticos caem nesse erro?
Isso acontece, sim.
A Igreja está a mudar tanto quanto parece?
A Igreja muda em muitos aspetos. Mas dentro da conversa que estamos a ter, em 2014 o Papa enviou uma mensagem a Davos, o fórum económico mundial. Várias pessoas disseram que não era apropriado, que não pertencia ali. Mas a mensagem do Papa também vai de encontro a homens de negócios, sobre a sua natureza e sobre a necessidade de reconhecerem valores humanos. Para o Papa, os negócios são uma vocação nobre. Mas, como qualquer vocação nobre, o seu propósito tem que ser ajudar a humanidade. Repare que o verdadeiro valor do negócio não é o lucro, mas o desenvolvimento.
A União Europeia tem imposto liberalizações nas leis dos costumes que vão, muitas vezes, contra os valores das comunidades católicas: o aborto, o casamento gay, etc. Como vê isso?
Há sempre essa tentação…
… de fazer esta pergunta?
Não, não! [risos] Você fala da União Europeia e eu poderia falar das Nações Unidas nos mesmos termos… A política norte-americana sobre o sistema de saúde, para a reprodução e para a contraceção, também tem a nossa objeção. Mas por vezes, se não aceitamos esses, não recebemos o outro, que é necessário.
Então defende que se aceite algo com que não concorda para ter algo de que precisa, em termos de saúde?
Não podemos condicionar o acesso à saúde em cenários destes. Mas é sempre preciso separar o ‘acesso à saúde’ do ‘acesso à saúde reprodutiva’, que é a maneira que a ONU tem de dizer aborto e esterilização. Isso não é política. Isso afeta a moralidade e a fé das pessoas. E é algo que acontece todos os dias. A formulação que as Nações Unidas fazem reconhece que não deve ser uma imposição, mas às vezes acaba por acontecer na mesma.
Não me respondeu à pergunta sobre a União Europeia…
No caso polaco, aquilo que é dito é: ‘Os senhores são membros da União Europeia e estes são os valores da União Europeia’… É como a fábula do pau e da cenoura… Eu, sinceramente, preferia que a União Europeia, como nobre instituição que é, não se reduzisse a essa fábula. Os valores das pessoas e das nações devem sempre ser respeitados. A própria União Europeia – que está num aperto hoje em dia, política e economicamente – é sobre aproximar pessoas e isso tem raízes que vão para lá da cenoura e do pau. A UE não nasceu do vácuo, nasceu inspirada num conjunto de valores fornecidos pelas fundações cristãs: fraternidade, solidariedade, comunidade… Esquecendo essas raízes, não pode correr bem. Os desafios tornam-se mais complicados de ultrapassar.
Foi enviado para a paz no Gana e no Sudão. A realidade é astronomicamente diferente, presumo.
Nalgumas coisas, não. Veja o Uganda. Também já lá estive. Quando chega um carregamento de preservativos, o Uganda diz que não quer. E depois cortam-lhes a ajuda externa. Porque é que tem que ser assim? Porque é que uma coisa tem que depender da outra? Há um jogo internacional com África. A liberdade é um valor muito nobre de procurar, mas não para perder a moral pelo caminho. Aí, temos um problema.
Acha que o facto de o Papa ser assumidamente um homem simples e próximo dos pobres faz com que fiéis mais conservadores se sintam distantes?
Não se devem sentir abandonados pela Igreja. Ser conservador não quer dizer que não se seja simples ou próximo das pessoas. O que fez Jesus? Esteve com todo o tipo de pessoas. Se o Papa sente que essa é a sua missão… Eu não acredito que, para essas pessoas, o problema seja a abordagem de proximidade do Papa, mas sim o modo como ele explica alguns dogmas da Igreja. O problema, para essas pessoas, não é o estilo dele, é o que ele diz. É preciso encontrar uma maneira de apresentar a Igreja e não se pode dizer que por ter sido sempre apresentada assim tem que ser apresentada assim para sempre.
Está a dizer que o Papa Francisco mudou a maneira como a Igreja se apresenta?
Não. Estou a dizer que se temos um gabinete para a Nova Evangelização, ele serve para quê?
Para nada… Não há nada de novo numa coisa que tem dois mil anos… [risos]
Certo, a evangelização é a mesma. Mas o método tem que mudar…
Para o quê? Redes sociais?
Sim! O Papa tweeta! Não podemos ignorar os novos meios. Como é que se responde a um mandato para difundir a Palavra por todo o lado e ignorar depois algumas das partes de todo o lado?
É possível Francisco seguir o exemplo de Bento XVI, renunciando?
Eu não sei o que é que ele vai fazer. Isso é entre ele e Deus. Mas também é verdade que aquilo que Bento fez se tornou parte da instituição. Significa que a liberdade de o fazer [renunciar] está sempre lá.
Quer dizer que mesmo que ele não abra a porta, a porta está lá?
Definitivamente. Pode acontecer.
Está ao corrente da condecoração das autoridades de segurança portuguesas depois da vinda do Papa a Fátima?
Ele é muito grato à preocupação das pessoas. E isso [condecoração de personalidades ligadas à segurança e inteligência nacionais] também aconteceu depois das viagens aos Estados Unidos e ao Egipto.