Um bufo é um bufo

Defender a delação premiada é reconhecer que a Justiça é incapaz de combater o crime com os meios legais que tem ao dispor e abrir um caminho perigoso 

O Vaticano condecorou destacadas figuras das forças de inteligência e segurança nacionais, premiando a excelência dos serviços prestados durante a visita do Papa Francisco a Fátima.

A confirmação foi feita ao SOL pelo cardeal Peter Turkson (ver entrevista nesta edição). Não houve anúncio público, muito menos cerimónia de pompa e circunstância, tudo foi feito com discrição – tal como o foi, aliás e como nesta página já se elogiou, a ação dos homens condecorados e respetivas equipas aquando da passagem do Papa por Portugal, a 12 e 13 de maio.

Há certas profissões que, por natureza e para maior eficácia e cumprimento dos objetivos que perseguem, têm inerente uma obrigatória conduta de discrição, de espírito de missão, até de sacrifício na forma de estar social, em público e em privado, inclusivamente com reflexo na vida pessoal e familiar.

Os serviços de inteligência e de segurança são óbvios exemplos.

Como exemplos também o são os juízes e os magistrados do Ministério Público.

A autoridade para julgar ou para promover os interesses do Estado e da sociedade, a Lei, e deduzir acusação contra quem atenta contra eles/ela pressupõe um perfil ético e uma formação moral muito acima do exigível ao cidadão comum.

Quem envereda por essas carreiras, sabe-o. Ou devia sabê-lo.

Sempre foi assim.

Nas últimas décadas do século passado, juízes e magistrados do Ministério Público, fartos dos ataques sistemáticos ao funcionamento da Justiça e à tentativa de depreciação dos estatutos das respetivas carreiras – sobretudo por parte de políticos que reagiam contra o escrutínio de que passaram a ser alvo e, sem censura, à consequente e muitas vezes excessiva mediatização dos casos em que eram referenciados -, criaram legitimamente os seus próprios mecanismos de defesa, saindo da clausura e passando a jogar com as armas da comunicação que até aí nunca tiveram nem delas precisaram.

Daí a alguns juízes e magistrados do Ministério Público passarem a protagonistas do espetáculo mediático, quando não a vedetas ou estrelas do mesmo, foi um pequeno passo.

Ao ponto de, não raro, e ainda que implícita ou indiretamente, aparecerem em público a falar sobre casos pendentes – sobre os quais, deontologicamente, nem em família deveriam pronunciar-se.

O mesmo se diga dos advogados, também obrigados a sigilo profissional e cujas normas da própria Ordem os impede de publicitar os seus escritórios ou serviços e assim são facilmente contornáveis.

(E os jornalistas também não escapam, tantos os que, em lugar de procurarem dar notícias, fazem muito mais por serem eles próprios notícia).

Sede ou ânsia de protagonismo há em todas as classes e profissões. Mas se as há em que são próprias e devidas – no cinema, na televisão, no teatro, no desporto, na música, na literatura, na arquitetura… na política -, outras há em que o bom profissionalismo implica precisamente o contrário.

E voltamos aos juízes e aos magistrados do Ministério Público, e bem assim também aos advogados e demais agentes da Justiça, que usam os meios de comunicação social não apenas para defenderem os seus interesses (ou os dos seus representados) ou realizarem os seus anseios de protagonismo, mas para fazerem a sua justiça. 

Especialmente quando não há Justiça ou não conseguem alcançá-la em tempo e em sede própria: os Tribunais.

Vem todo este palavreado a propósito da conferência dos ‘superjuízes’ no Estoril, esta semana, na qual o juiz Carlos Alexandre se juntou ao grupo de defensores da institucionalização da delação premiada.

A lei penal já prevê como circunstâncias atenuantes a considerar na fixação da medida da pena tanto a confissão de um arguido como o seu comportamento colaborante no sentido do apuramento da Justiça (assim como criminaliza a obstaculização).

É claro que a lei tem de estar em permanente adaptação à realidade e às novas realidades que o progresso impõe.

Mas se os criminosos têm cada vez mais recursos, tecnológicos e não só, e a complexidade de alguns crimes é igualmente maior, também os agentes da Justiça – a começar pelos investigadores – têm cada vez mais e melhores meios para os combater.

Faltam meios? Arranjem-se.

Não se dê é cabo dos princípios.

A delação premiada – levando a Justiça a proteger quem, criminoso, denuncia e entrega provas bastantes para incriminar outrem – não é um bom princípio.

É apenas um meio, aliás perigoso, discricionário e arbitrário, para se chegar a um fim.

E quem o defende é porque reconhece a sua incapacidade para atingir esse fim com os meios que a lei já coloca ao seu dispor.

Os estados totalitários, ditatoriais, policiais, quando não se impõem por revolução ou golpe, começam assim: por arranjar argumentos para, aos poucos e em nome de bons fins, se criarem os meios para a discricionariedade e a arbitrariedade de quem com poder.

E para cultivar o medo.

Um bufo é um bufo.

A corrupção é difícil de combater? É verdade. Invista-se nos meios. E na educação e na formação para a prevenção. Porque, se não há sociedade sem Justiça, também não se conhece sociedade sem corrupção. Desde os tempos da Grécia Antiga, como bem disse Carlos Alexandre, que escusava de citar o nome de um filósofo que é homónimo de um arguido num caso pendente. 

Um juiz tem de manter total isenção e imparcialidade, sempre, porque a presunção de inocência até ao trânsito em julgado de sentença condenatória é um direito constitucionalmente consagrado e o julgador não é acusador ou persecutor.

Se a plateia achou graça, então ainda pior.

Este não é o melhor caminho para a Justiça nem, obviamente, para a Sociedade – e é péssimo para um Estado de Direito democrático.