Nigel Farage é um espetáculo de um homem só ou, como os ingleses dizem, um «one man show».
Nas conferências do Estoril, dividiu o palco com o também eurodeputado Francisco Assis. Não podiam ser mais contrastantes. Assis é de um país do mediterrâneo, socialista e europeísta. Farage tem que atravessar o Canal da Mancha para chegar ao Velho Continente e é um eurocéptico com rótulo de populista.
O debate entre ambos, todavia, corre tranquilamente – afinal, conhecem-se bem dos corredores de Bruxelas.
Nigel não deixou de atacar Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão Europeia, e Assis não deixou de defender a Europa. Nisso, tanto um como o outro foram pouco originais. O britânico, antigo líder da UKIP, soltou várias gargalhadas à audiência e escassas a Assis. Talvez o esboço mais conseguido de um sorriso por parte do português tenha derivado da perturbadora sinceridade do sr. Farage perante os seus próprios defeitos.
«O que vale é que eu só oiço Jean-Claude Juncker dizer algumas coisas depois de almoço», atirou, mais ou menos a meio do painel, fazendo a sala irromper em riso. O hábito vínicola de Juncker às refeições é sobejamente conhecido nas lides políticas europeias. «Ó, vá lá, você sabe que é verdade», puxou ele por um Assis algo constrangido. «Eu admito que também tenho alguma culpa», e novo ataque de riso na audiência. É que o gosto de Farage por vinho tinto e uma boa caneca de cerveja também é do conhecimento público. A sua quota parte na conta de almoço de Juncker é, portanto, cómica. Mas tinha que haver consenso em alguma coisa.
Fora do palco, Nigel anda solitário, do camarim para o bar do lounge, do bar para a conferência de imprensa conjunta – evitando entrevistas amontoadas – e daí para o terraço, onde se rende a outro dos seus vícios: o tabaco.
O SOL, que tem menos vícios que ele mas a mesma tendência solitária, cruza-se com o ex-líder do UKIP na escadaria das conferências do Estoril e entra na súbtil arte jornalística de conseguir uma entrevista sem ter que a pedir. Tem lume, sr. Farage? «Tenho, venha daí».
E o que achou Nigel quando Jean-Claude Juncker levou uma mochila cheia de papéis para uma reunião com Theresa May, de modo a demonstrar à primeira-ministra britânica as dificuldades e o tempo necessário para conseguir assinar um tratado com a União Europeia?
Depois de um sorriso matreiro, a resposta, tão natural quanto bem ensaiada: «É a mente do burocrata. De uma pessoa que prefere dizer ‘não podes fazer isto’ que de uma pessoa que diz ‘podes’. Eu sou um ‘free-marketer’, sou a favor do livre-comércio, da riqueza e da mobilidade social», descreve-se. Mas aquilo que estava a tentar provar com o gesto é que «ele acredita em muitas regras, em excesso de complexidade e em dificuldades», o que para Nigel, muito sucintamente, «até resume bastante bem o projeto europeu». E agora já era difícil parar a carruagem discursiva. São anos de prática e a cassete já rola para o gravador. Pára, momentaneamente, mas para acender o segundo cigarro consecutivo.
«Promotores de guerra» é uma acusação que faz com relativo à-vontade. «Vimos isso com Gibraltar [depois de o Brexit vencer o referendo] mas também já vi isso com a Líbia», conta. «Foi dito, à minha frente, no Parlamento Europeu: ‘Queremos bombardear a Líbia em nome da União Europeia’; por isso esta ideia de que se trata de um ‘projeto de paz’ é um pouco tonta». Para Farage, a Europa não é um projeto de paz, é um projeto de poder.
O conservador britânico que gosta de comunistas
Não lhe faz confusão nenhuma defender alguns pontos em comum com Jean-Luc Melénchon, próximo do comunismo em França. «A divisão entre esquerda e direita, hoje, é completamente irrelevante». E porquê? «Se não temos soberania, se não decidimos nós o destino do nosso país, de que serve o debate entre esquerda e direita?».
A batalha, para ele, já não é entre ideias de um lado ou do outro. A batalha é «pela identidade do Estado Nação». No referendo, recorda, chegou a partilhar o púlpitos com várias personalidades da esquerda britânica que defendiam o Brexit como ele. «Os referendos aproximam a direita e a esquerda», sorri.
A grande questão não fica para o fim. Nigel, um cético sobre o aquecimento global, não atira a beata pela varanda e busca civilizadamente o cinzeiro distante. O SOL segue-o de gravador em punho. Ele nunca pára de falar. Como é que um homem que fundou um partido e dedicou toda uma vida à intervenção consegue apoiar um amador que nunca havia feito política? «Porque ele tem as ideias certas», dispara prontamente.
‘Ele’ é Donald Trump.
«Muito simplesmente: os instintos do Donald são bons. Pode cometer erros, pode não encaixar no padrão habitual, mas a sua perspetiva panorâmica é mesmo boa», avalia.
«Ele percebe o distanciamento entre a sociedade e a classe política, ele percebe os problemas crescentes do empreendedorismo global e como isso deixou para trás os pequenos e médios empresários, ele percebe o grande erro que foi a Líbia…». No geral, nas questões mais abrangentes, Farage admite: «Estou com ele», e revira os olhos de seguida, fingindo estar cansado de fingir.
Nigel, conservador britânico, é casado com uma alemã. Trump, nacionalista americano, com uma eslovena. Porque será? «É engraçado, eu sei», e ajeita a lapela do casaco largo, «deve ser por sermos mais abertos ao mundo que eles».
O «eles» não foi concretizado – a graça aí foi demasiadamente eficaz.
Não acredita que Juncker vá para a Goldman Sachs após abandonar a presidência da Comissão Europeia, como fez o seu antecessor lusitano, mas recorda com gozo o dia em que pediu ao Parlamento Europeu para bater palmas à nova fase da vida profissional de José Manuel Durão Barroso. «O antigo maoista é que vai para a Goldman! Deus nos ajude!», e dá uma palmada eufórica na mesa de esplanada.
A vossa auteridade acabou de começar, meus caros
Sobre o território luso, Nigel não está otimista. «A vossa austeridade acabou de começar. Têm 127% de dívida e têm que chegar à meta dos 60%, por isso podem preparar-se para vinte anos de austeridade…». Talvez «trinta», acrescenta, hesitante e esmagando a beata contra o metal.
Não estaria Portugal mais pobre fora da União Europeia? Farage responde com outra questão. «Com a vossa própria moeda? Porque é que seriam mais pobres? Se a moeda desvalorizar, quanto custa a caneca de cerveja ali na esquina? Custa o mesmo, não é?».
Claro que haveria consequências a nível de comércio internacional – afinal, falávamos de sair da moeda única e do maior mercado do planeta – mas, pergunta o inglês, «não seria melhor do que estar agrilhoado a esta prisão?».
O Reino Unido, e acendemos outro cigarro, é que pode ter deixado a prisão mas parece agora agrilhoado às negociações para sair.
Não vão tentar prejudicar a Grã-Bretanha? «Eles podem tentar. Mas nós não podemos perder. Neste momento, pagamos-lhes 20 mil milhões, não nos deixam legislar para a nossa própria indústria, não nos deixam assinar acordos de comércio globalmente, não controlamos a nossa democracia, por isso como é que poderíamos ficar a perder?!».
Está a dizer que será sempre melhor estar fora da União Europeia do que dentro? E novo regogizo: «Pior não poderá ser!».
Há coisas bem mais importantes que dinheiro, contempla, com as mãos no corrimão e os olhos fixados nas palmeiras do casino. «Orgulho e respeito, meu caro, orgulho e respeito».
Depois do seu muito ansiado Brexit também abandonará o Parlamento Europeu, no qual teve «uma carreira fantástica». «Ninguém teve um percurso como eu ali. Foi muito divertido. Se terei saudades? Não sei… Quando ficamos mais velhos percebemos que cada coisa tem o seu tempo. E quando acabou, acabou».
Niguel Farage despede-se. «Lamentavelmente, não tivemos tempo para ir beber uma caneca. Este sol é das melhores coisas que há no mundo». No mundo e não na Europa. Claro.