A música é quase alegre, a batida é poderosa e em menos de uma semana está a disputar a liderança do top britânico. Isto apesar de todas as rádios terem proibido a sua passagem. O autor é o músico londrino Captain Ska e o título da música remete para as alegadas mentiras da primeira-ministra conservadora, Theresa May. O vídeo já conta com um milhão e meio de visualizações no Youtube e a letra é simples: «She’s a liar, liar, you can’t trust her, no, no, no» (É uma mentirosa, mentirosa, não podes confiar nela, não , não , não). A canção Liar, Liar GE 2017 lançada pelo grupo ‘Assembleia Popular Contra a Austeridade’ teve uma aceitação fulgurante e bate-se alegremente pelo primeiro lugar nas preferências dos britânicos, com um tema de Justin Bieber. O caso é uma espécie de parábola da reta final da campanha eleitoral no Reino Unido.
Quando May convocou as eleições, ninguém previa outro resultado que não fosse uma esmagadora maioria tory, num novo parlamento. Todas as sondagens davam quase 20% de vantagem do Partido Conservador em relação aos seus rivais trabalhistas. Dizia-se que a antecipação das eleições tinha sido feita no cenário mais favorável de sempre para os tories, desde 1945.
A intenção de May era clara: ganhar o máximo de apoio popular para poder negociar um hard Brexit com Bruxelas. A seu favor tinha um Partido Trabalhista dividido, com os deputados a contestarem repetidamente a liderança de Jeremy Corbyn, e o esvaziamento dos nacionalistas de direita do UKIP, após a decisão dos britânicos pelo abandono da União Europeia, em referendo.
Apesar destes prognósticos tão favoráveis, May viu essa vantagem reduzida, a apenas uma semana das eleições – realizam-se na próxima quinta-feira –, para menos de três pontos percentuais. Em contraste com as previsões otimistas, aquando da convocação do ato eleitoral, há pouco mais de um mês, as últimas projeções feitas pelo YouGov antecipavam que os tories perderiam 20 dos 330 deputados que têm no parlamento e, pior do que isso, a atual maioria de 17 lugares. Esta sondagem, feita para o The Times, baseou-se em 50 000 entrevistas, feitas nesta fase final de campanha, e fez-se valer de um modelo de distritos, que permite fazer previsões ao nível dos círculos eleitorais. O estudo sugere ainda que o Labour pode ganhar quase 30 deputados. Os trabalhistas, de Corbyn, não seriam o primeiro partido, mas os conservadores ficariam a 16 lugares da maioria absoluta.
O cenário é de tal forma preocupante que, numa recente ação de campanha, houve mesmo jornalistas a perguntarem a May se se demitiria depois das eleições, no caso de um resultado aquém do esperado. A líder dos conservadores recusou-se a admitir qualquer cenário negativo e afirmou que não lhe interessavam as sondagens, mas apenas aquilo que iria suceder no dia das eleições. «No que se refere às sondagens, as pessoas veem uma escolha muito clara, estas eleições são sobre quem vai ser o primeiro-ministro, sobre quem vai liderar o Reino Unido nas negociações do Brexit, quem tem um plano para o fazer e a determinação para conseguir o melhor acordo possível», argumentou.
O problema de Theresa May pode ter sido esse excesso de confiança, ao achar que o Brexit tinha ferido de morte os seus adversários políticos. É verdade que o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia partiu os trabalhistas em dois: a base operária do partido votou pela saída, enquanto os eleitores trabalhistas das grandes cidades e as camadas mais jovens votaram pela permanência na União Europeia. E apesar das suas posições históricas de contestação do processo de integração europeia, Jeremy Corbyn foi obrigado a fazer campanha pelo remain, para tentar manter o partido unido. Mas serviu-lhe de pouco. Semanas depois da consulta teve que convocar novas eleições para a liderança do Labour Party, que voltou a ganhar contra os notáveis e quase dois terços dos deputados trabalhistas. Nessa altura, a quase totalidade dos comentadores e órgãos de comunicação social encomendaram-lhe o funeral, e garantiam que apesar de ter reconquistado a liderança não passava de «um velho tolo», com propostas demasiado radicais, que não interessavam a ninguém, e que iam levar os trabalhistas ao seu pior resultado eleitoral de sempre.
‘É a Economia, estúpido’
A frase deste entre-título é da autoria de Bill Clinton, e foi pronunciada quando o mesmo se candidatava a Presidente dos EUA, numa campanha que veio a vencer. Clinton explicava que o comportamento dos eleitores seguia muitas vezes as flutuações económicas: se havia mais emprego e progresso, votavam no Governo; se a situação económica era má, votavam na oposição. E por isso, ele, o candidato da oposição, ia ganhar. Parece que May se esqueceu desses princípios. Desde o referendo ao Brexit – consulta convocada pelo então primeiro-ministro conservador David Cameron –, que a economia britânica está mais frágil, em recessão, e os salários reais mais baixos. E as propostas dos conservadores, de cortar nos impostos dos mais ricos, nos apoios sociais e no Serviço Nacional de Saúde, não parecem ter acalmado a maioria da população. Por seu lado, o programa radical de Corbyn, que parece, com a nacionalização dos caminhos de ferro e os cortes nas propinas universitárias, demasiado socialista para os comentadores da comunicação social, não é apercebido assim pelos eleitores que estão fartos de uma política com poucas diferenças reais entre conservadores e os trabalhistas tipo Tony Blair. Um dos dados mais reveladores das sondagens é que o velho programa socialista de Corbyn arrasa nos eleitores mais jovens com mais de 57% das intenções de voto.
«Quando Theresa May decidiu adiantar estas eleições três anos, o que procurava era reforçar o seu poder parar ter carta branca [para negociar o Brexit]», relembrou o líder trabalhista. Nessa altura falava-se numa mágica maioria de mais de 100 deputados para os conservadores. Depois de uma campanha eleitoral em que a primeira-ministra recusou qualquer debate televisivo com os outros candidatos, o cenário que apontava para uma vitória fácil dos conservadores, e para uns trabalhistas à beira da morte, parece estar fora de questão. Corbyn derrotou duas vezes os barões do seu partido e agora parece lutar para governar o Reino Unido. «Não vamos fazer pactos, nem coligações, nem nenhuma coisa que se pareça», declarou numa ação de campanha em Pitsea. «Vamos lutar para ganhar as eleições».
Jeremy Corbyn
Quando se apresentou às eleições internas do Labour, na ressaca dos resultados eleitorais desastrosos do partido, em 2015, Jeremy Corbyn foi catalogado por adversários e colegas partidários como ‘o mais rebelde trabalhista’ dos últimos tempos e um outsider. Ocupando o cargo de deputado desde 1983, pelo círculo de Islington North, o político de 68 anos fora sempre uma das vozes mais críticas contra a liderança de Tony Blair – o mais bem sucedido líder trabalhista de sempre, vencedor de três eleições consecutivas –, através de um discurso socialista, anti-austeridade, crítico para com as intervenções militares no exterior e pró-desnuclearização, pelo que foi tratado com desdém pela opinião pública. Desde essa altura, Corbyn venceu duas eleições primárias, com o apoio das bases do partido e a concorrência da cúpula trabalhista e, mesmo tendo sido enterrado vezes sem conta pela opinião pública, chega a estas eleições com fortes possibilidades de frustrar os planos de Theresa May.
Theresa May
Depois de uma campanha tímida pelo remain, no caminho para o referendo do Brexit, a conservadora de 60 anos foi ‘atirada’ para a frente do Executivo, em julho do ano passado, com a inclassificável missão de liderar o Reino Unido ao abandono da União Europeia. Depois de meses a fio sem apresentar grandes novidades nessa hercúlea tarefa e de se ver obrigada a aceitar demissões embaraçosas de funcionários-chave, Theresa May apresentou então os seus planos e anunciou um hard Brexit. Enfrentou tribunais, a Câmara dos Lordes, a oposição interna e a críticas constantes dos ainda parceiros europeus, mas no final de março o artigo 50º do Tratado de Lisboa foi mesmo acionado e o pedido de saída oficializado. Defensora da tese «um não-acordo é melhor que um mau acordo», a ex-secretária de Estado dos assuntos internos aposta tudo nesta eleição, para poder encarar as difíceis negociações com a UE, com a legitimidade que muitos britânicos ainda não lhe reconhecem.