Santo António viveu 39 anos e passou os últimos dez em movimento. Do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra viajou para Marrocos e dali para a Sicília, passando por Argel e Túnis. Além de Itália, onde viajou e viria a morrer em Pádua, a 13 de junho de 1231, conheceria o sul de França. Gonçalo Cadilhe ficou fascinado com o percurso do santo português e decidiu revivê-lo, primeiro para o livro “Nos Passos de Santo António”, editado no ano passado, e depois para um documentário que será exibido esta noite pela RTP. O escritor de viagens fê-lo como investigador, sem devoção, mas admite que houve pelo menos dois momentos mais transcendentes, ao alcance de qualquer um que se queira fazer ao caminho.
O 13 de Junho já era um dia especial para si antes deste trabalho?
Não era, nem o dia 13 de junho nem nenhum outro ligado a Santo António. Sou da Figueira da Foz, lá festejamos o São João – era algo completamente fora do meu raio de festejos.
Como surgiu a ideia?
Foi daquelas coincidências… Estava na cidade de Pádua a fazer uma visita cultural e lá toda a gente fala de Santo António. E foi aí que comecei a questionar-me se o Santo António de Pádua e o Santo António de Lisboa eram o mesmo e começou assim. Comecei a olhar para biografia e apercebi-me de que estava ali uma viagem muito interessante que poderia dar origem a um livro de viagens e, depois, a um documentário.
Quando é que se fez à estada?
Há duas viagens. A do livro foi feita há um ano, entre a primavera e o verão de 2016. E depois fiz uma segunda viagem para o documentário que vai ser transmitido amanhã (hoje) pela RTP, e que já foi um bocado diferente. Na primeira era um escritor à procura de matéria para o livro e a outra é o oposto: há um guião e não queremos que nada falhe. Temos os minutos contados e qualquer nuvenzinha que cubra o sol já é uma contrariedade.
Passa por Andaluzia, Marrocos, Argélia, Sicília, norte de Itália e sul de França. Isto é uma viagem para quanto tempo?
Para mim foi uma viagem de três meses: dois meses seguidos e, depois, um mês para o regresso a casa. Quem quiser fazer a viagem poderá fazê-la em menos tempo, mas não colhe o espírito dos lugares. Quem quiser fazer uma viagem mais espiritual, como peregrino, então poderá estar os dez anos que Santo António levou a fazer esta travessia. Claro que ele fazia a viagem aos ziguezagues, não tinha uma meta. Enquanto eu tinha uma data para voltar, ele era um nómada, sem nenhuma data que o prendesse.
E ele faz o percurso a pé?
Sim, essencialmente. Claro que apanhou barcos, mas em terra andou sobretudo a pé, o que, aliás, era uma regra da ordem franciscana, que estava a nascer naquela altura. Andavam a pé, sozinhos ou a dois. Eram caminhadas duras: estamos no final da Idade Média, as estradas romanas tinham desaparecido quase completamente depois de serem destruídas pelas invasões bárbaras, 700 anos antes. Uma carroça não conseguia ir a lado nenhum.
Surpreendeu-o como é que um homem palmilha tantos quilómetros?
Sim, mas na altura estava a nascer na Europa o fenómeno de peregrinação a locais onde havia relíquias dos santos – Santiago de Compostela e Roma são alguns exemplos. Tínhamos uma série de indivíduos solitários a caminhar na Europa para irem a esses lugares considerados santos, onde podiam ver um fragmento, uma tíbia. Com isso começavam a aparecer conventos, estalagens, lugares onde podiam passar a noite. O viajante medieval sabia que, caminhando em média 30 quilómetros por dia, encontrava um sítio onde alojar-se. No caso de Santo António, que era um místico e um homem radical, ficava muitas vezes ao relento a rezar, dormia em grutas ou debaixo de rochas. Isso para ele não era um problema, era uma bênção passar uma noite nesse desconforto porque era uma forma de aproximação a Deus. Quanto mais o corpo sentia essa fustigação, mais o espírito se aproximava de Deus.
Dormiu também ao relento?
Já o fiz muitas vezes, sei o que significa essa experiência. Desta vez, o meu ponto de partida para o projeto foi um papel de investigador, não sou devoto nem místico, e queria sobretudo conhecer. Mas ainda assim tive dois momentos mais místicos. Um deles foi a noite no Mosteiro de La Verna, nos Apeninos italianos, a mil e tal metros de altitude, um mosteiro que ainda hoje é habitado por franciscanos mas que aceita hóspedes.
Santo António dormiu lá?
Dormiu ali, mas na altura ainda não havia o mosteiro, era um ermo, dormiu ao relento. Mas aquilo é impressionante. É como estarmos no cenário do filme “O Nome da Rosa”, uma sensação forte, todo o silêncio. Outro momento muito especial que tive foi na travessia dos Alpes por uma estrada romana que ele também percorreu e que se chama o desfiladeiro do Montemisio. A 2 mil metros de altitude, numa noite superestrelada, fiquei a dormir num refúgio alpino e fui passear à noite, meio às escuras e sem ninguém nas redondezas. Tive um momento de recolhimento, mesmo não indo à partida com esse espírito.
Onde se documentou?
Nas biografias de Santo António, nos textos sobre as estradas que os peregrinos percorriam na época e sobre as quais existe muita documentação, porque muitas estão a ser recuperadas para efeitos de trekking. Em Itália e França está muito na moda utilizar os antigos caminhos medievais de peregrinação. E também nas atas dos congressos sobre a época medieval em que viveu Santo António, que estão disponíveis na biblioteca de Pádua.
O que o surpreendeu mais na vida de Santo António?
O paradoxo de um homem que procurava naturalmente o silêncio dos ermos para encontrar força para predicar nas praças. Onde ele se sentia bem era no isolamento, mas a sua missão era no meio das pessoas.
Como é que ele se orientava sem GPS, sem Booking e Airbnb?
Numa época em que praticamente todas as estradas tinham desaparecido, não havia grandes bifurcações, o caminho era só um. As pessoas seguiam todas o mesmo trilho, que basicamente ligava as grandes cidades umas às outras. Acho que é mais fácil perdermo-nos hoje, com as ramificações que temos, do que na altura. No fundo, as pessoas, não tendo nada que as ajudasse, desenvolviam uma intuição natural, uma capacidade de compreender os pontos cardeais, as estrelas, a direção dos ventos, que nós hoje delegamos nas tecnologias. E às vezes, quando a tecnologia falha, e falha, ficamos completamente perdidos. O homem medieval conseguia ter sempre uma orientação inata para perceber que estava a seguir o caminho certo.
Nesse sentido, Santo António é um viajante inspirador?
Nesse sentido e também por ter sido o primeiro grande viajante da história de Portugal. Parece que o nosso destino comum como portugueses já estava traçado logo praticamente desde a fundação do reino. A nossa grandeza parece que só a encontramos quando nos pomos a viajar e migramos, como ele encontrou a grandeza fora de Portugal. Não sei se é bom ou mau, mas é assim.
Se pudesse eleger três destinos que o marcaram nesta viagem, quais seriam?
A Argélia, que eu não conhecia. A ideia que tinha era de um país de fundamentalistas e de grande risco. Ia cheio de medos mas senti-me muito seguro, acarinhado pelos habitantes. Isto foi em 2016, depois da final do Euro, e o facto de Portugal ter “humilhado” a França era motivo de grande orgulho entre os argelinos com quem falei: diziam-me que tinham ido para a rua festejar a “nossa vitória”, uma coisa um bocado surreal. Outro ponto alto foi a travessia noturna no ferry que faz todas as semanas a ligação da Tunísia a Palermo. Chegar a Palermo, uma das grandes cidades do mundo a visitar, de madrugada, com o nascer do sol, foi algo marcante. O terceiro destino mais marcante foi a região francesa do Languedoc.
Sendo um viajante experiente, o que dá consigo a valorizar mais quando conhece algum lugar pela primeira vez? Porque elege estes três destinos?
Com tudo o que já conheci, com a idade que tenho, é aquela intuição de que são lugares genuínos e que não devem ter mudado muito desde que Santo António passou por lá. Não sei explicar melhor.
É uma viagem muito cara?
A Europa é sempre mais cara; Marrocos e Argélia, nem por isso. Claro que quem for disposto a viajar com uma mochila às costas, usar transportes públicos, ficar em hostels, consegue sempre um preço mais em conta. É muito difícil dar um valor mas, se a viagem for feita como Santo António a fez, não custa nada. Ele viajava na miséria absoluta, pedindo esmola. No registo de Santo António, fica de graça.
Gostava que esta rota entrasse na vida dos peregrinos e dos caminhantes em geral?
Acho que é demasiado dispersa geograficamente para se tornar uma rota, mas estou a começar a fazer o troço italiano com a agência de viagens com a qual colaboro. Acho que há potencial para isso.
E vai começar a festejar o Santo António?
Vamos ver no final do ano como correm os direitos de autor e logo vejo se é caso para festejar ou não. (risos)
Que souvenir fica desta viagem?
Um maior e melhor entendimento de quem eu sou individualmente e de quem nós somos como portugueses.