Pensemos num crime que até seríamos capazes de cometer. Não importa qual. Basta pensar num crime e na correspondente pena. Com essa moldura de tantos a tantos anos a pena desempenha aquilo a que se tem vindo a chamar prevenção geral. Esta prevenção geral funciona através de dois vetores: a previsão de tal comportamento como crime e de uma pena correspondente; a existência de um sistema judicial e prisional que a reforcem. Face a estes dois vetores, é esperado que a generalidade dos membros da comunidade se afaste do comportamento criminoso.
Este é um dos elementos fundamentais do Direito penal moderno, fundado numa lógica preventiva. Contra estes valores, haverá sempre quem diga que “todos temos a perfeita consciência de que a punição nunca foi um grande dissuasor”, tal como Ed Witwer, meio antagonista, meio personagem à nora de “O Relatório Minoritário”, para quem a punição “em nada ajudava a vítima já morta”.
Não é que a punição não funcione como dissuasor, até porque a nossa subsistência estaria seriamente ameaçada caso a maioria de nós não estivesse entre aqueles para quem os quais a punição é eficaz como dissuasor ou entre aqueles para os quais essa dissuasão nem é necessária. O problema é que em muitos casos, ainda que minoritários, a dissuasão não supera uma série de outros fatores como o impulso do momento, o desejo inultrapassável de cometer o crime, a óbvia vantagem económica do crime face à expectativa de ser por ele punido, isto para ficarmos num plano estritamente subjetivo e não nos aventurarmos por outros condicionalismos como a classe social, a situação económica, o meio em que se cresceu, etc.
Vejamos o problema de duas perspetivas. Por um lado, o que hoje temos já é muito bom. Basta pensar no seu oposto, a que podemos chamar muita coisa, desde barbárie até caos, mas que, na hipótese de termos todos nascido mais como refugo da natureza que como emblema último do seu esplendor, Thomas Hobbes definiu bem melhor como um estado de guerra de todos contra todos. E nem é necessário entrarmos em pressupostos teorizados, basta descobrirmos como é que se pune nos tempos em que Cesare de Beccaria escreveu “Dos Delitos e das Penas” (1764). Por outro lado, o que hoje temos pode ser melhorado? Nada recomenda dizer que não, até porque quase tudo nos indica que os sistemas prisionais contemporâneos carecem de uma reponderação séria e já vai sendo hora de se perceber que a prevenção criminal começa muito antes de os sistemas judiciais e prisionais serem sequer chamados a intervir. Mas há o melhorar e o “melhorar”, fazendo aqui as aspas a vez de tom eufemístico.
Em “Relatório Minoritário”, de Philip K. Dick, o sistema de prevenção criminal da cidade de Nova Iorque descobriu uma dessas formas de “melhorar”, escravizando um grupo de mutantes com capacidades divinatórias – os pré-cogs – ao serviço de uma máquina capaz de prever qualquer crime antes de ele acontecer e, assim, capaz de dar às forças policiais um intervalo de tempo suficiente para parar o crime antes de este ser cometido. Digo grupo de mutantes, porque, num pormenor relevante que parece ter escapado a Steven Spielberg, a julgar pelos seus loiríssimos pré-cogs da adaptação ao cinema deste conto, os pré-cogs de Philip K. Dick são “três criaturas balbuciantes (…), com as suas cabeças dilatadas e os seus corpos atrofiados”, chamados Mike, Donna e Jerry, nomes bem menos significativos que os excessivamente policiais Agatha (Christie), Dashiell (Hammet) e Arthur (Conan Doyle) que Spielberg escolheu.
Trouxe os meus parágrafos até aqui, em parte, para justificar – até a mim enquanto leitor – a escolha do título desta edição portuguesa de alguns dos melhores contos de Philip K. Dick, que segue de perto, tanto quanto posso perceber, a edição de 2002 de “Selected Stories of Philip K. Dick”, na Random House – embora com uma seleção mais reduzida -, e não a edição do mesmo ano publicada pela Gollancz com o título “Minority Report”. Antes de regressarmos à justificação, contudo, uma palavra de apreço por esta edição da Relógio d’Água que, finalmente, dá a alguns contos de Philip K. Dick uma tradução portuguesa mais do que decente – do fantástico Paulo Faria – e ao nível do que Frederico Pedreira ou David Soares já fizeram com alguns dos romances do autor.
Tendo começado a escrever nos anos 50, Dick adotou uma linguagem praticamente morta na altura, a ficção científica. Entre os anos 20 e os anos 40, as gerações do pulp conseguiram transportar a FC do género gótico para o moderno, mas, entre outros fatores, a pobreza e a reputação dos meios editoriais em que o fizeram haviam condenado e repisado o género na sua marginalidade. Como destaca Jonathan Lethem, na introdução a esta edição, só graças a Twilight Zone, a Outer Limits, à banda desenhada e a realizadores como Carpenter, Lucas ou Spielberg é que este vocabulário altamente codificado passou a linguagem universalmente reconhecida. Na sua adolescência, essa grande geração de realizadores que se começaram a evidenciar no final dos 70 e inícios dos 80, compunham parte do pequeníssimo universo de leitores de FC e, por este caminho, de Philip K. Dick e dos seus contemporâneos, como Ray Bradbury, outro gigante do género.
Nos melhores momentos de Philip K. Dick, seja em contos, seja nos seus bem mais conseguidos romances, a FC surge mais como um aparato e uma forma de falar das coisas, que o autor partilha com muitos dos escritores seus contemporâneos, da mesma forma que Lovecraft e os seus partilhavam e partilham o mythos. Dick, pelo menos nos seus contos, é a FC depois de Kafka ou, por outras palavras, é a FC que leu Kafka e que substituiu o horror cósmico pelo horror das máquinas, dos robots, dos simulacros e dos governos que usam essas mesmas máquinas, robots e simulacros para desenvolver novas formas de exploração e de controlo. É uma FC à qual aconteceu a Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria; a que aconteceu Estaline e Hitler, Orwell e Huxley. Repare-se que Lovecraft, um dos autores mais influentes de FC das gerações anteriores à de Philip K. Dick, apenas em “Sombra sobre Innsmouth” explora, e muito lateralmente, o tema da grande conspiração governativa. A paranoia é um lugar comum da FC, mas nos contos de Philip K. Dick é-o de uma forma diferente e, na altura, absolutamente original neste género. A paranoia já não vem com o medo de estar à beira de descobrir uma verdade inominável, algo sobre o tecido da realidade que a nossa mente não será capaz de suportar. Nestes contos, a paranoia vem do absurdo, do burocrático, do ritualístico em que apanhamos os seus personagens metidos, quase sempre já a meio do caminho e com uma inapagável sensação de que a qualquer momento a sua liberdade será ameaçada.
Num detalhe em que o paradoxo com o que foi a vida do autor só pode ser particularmente significativo, os personagens de Philip K. Dick, experimentam a paranoia enquanto “homens comuns a debaterem-se sob o jugo do capitalismo”, como nota Jonathan Lethem também na introdução. Nem o horrorismo, nem a indiferença cósmica lhe interessaram verdadeiramente enquanto matérias de reflexão, já que a uma outra matéria negra e impiedosa lhe animava as intenções, a de um horror menos universal e bem mais de carne e osso, bem mais subúrbio e consumista.
Em “Relatório Minoritário”, o protagonista, chefe da pré-crime, a agência policial que explora as capacidades divinatórias dos pré-cogs detendo os “criminosos” antes de o crime acontecer – na verdade apenas os homicídios, já que a agência não se preocupa com evitar outro tipo de crimes -, vê-se confrontado com uma previsão que o aponta como futuro homicida de alguém, passando, por isso, de executor do sistema a alvo do mesmo, ou seja, a alguém que vai ser punido não pelo que fez, mas pelo que poderia fazer.
É neste pequeno detalhe que me parece justificar-se plenamente a escolha deste conto para intitular esta seleção o qual, mesmo não sendo o seu melhor, é, sem dúvida, um dos seus contos mais necessários. Porque os três mutantes e o seu sistema de prever crimes são apenas um dispositivo para dar corpo a algo nada ficcional e nada tecnológico, ou não é verdade que, mesmo sem mutantes e máquinas, nunca deixámos de prender ou matar pessoas não por aquilo que elas cometeram mas por aquilo que elas poderiam cometer?
Tentando enquadrar as purgas de Estaline, Maya Kavtaradze, cujos pais haviam sido detidos durante esse período, achava que não valia bem a pena perguntar por que razão as pessoas eram mortas, já que elas eram mortas não pelo que fizeram mas pelo que podiam fazer. O progresso tecnológico e a presença permanente daquilo que somos através da nossa pegada digital coloca-nos mais próximos deste mundo. A fronteira entre o mundo dos pré-cogs e o do combate ao terrorismo pós-Al Qaeda é ténue, neste universo de perfis e níveis de perigosidade. E, do que já vamos sabendo sobre nós, o mais provável é nem pararmos onde a sociedade de “Relatório Minoritário” parou e levarmos estes sistemas preventivos, primeiro, até todo o tipo de crimes e, por último, até ao mero comportamento contrário ao normativo imposto pelo poder e pelas suas estruturas.
Talvez estejamos à beira de resolver a velha e insuperável tarefa de preferir ou justiça ou segurança, criando um mundo em que a segurança é garantida por referência a uma certeza que ocupa o lugar da justiça. Mas podemos mesmo chamar justiça a esta certeza? Ou poderemos mesmo chamar certeza a isto quando sabemos que o espaço que há entre cada uma das nossas orelhas é imensurável?