Rússia-Portugal. O rapaz que foi ao fundo do poço do silêncio

A enorme alma dos russos não teve correspondência na qualidade do seu jogo. Um público incrível, que abarrotou o estádio, calou-se quando Ronaldo disse: “CHIU!”

MOSCOVO – Depois de termos escutado, com o deleite de sempre, um dos mais belos hinos jamais compostos, o da Rússia, ainda por cima agora que a República Democrática Alemã passou aos arquivos da história, eis-nos perante 90 minutos de inevitável importância para as contas do grupo, sobretudo vendo as coisas do prisma português, já que, para os russos, a vitória inicial frente à Nova Zelândia valeu o conforto de três pontinhos no bornal.

Anunciava-se estádio cheio, e os moscovitas abarrotaram-no. Mais: carregaram-no de um entusiasmo meio enlouquecido que poderia muito bem provocar aneurismas, como diria o Alencar.

Ficámos então, rapidamente, entre o som e o silêncio.

O som daqueles gritos histéricos, guturais, de “Rassia! Rassia! Rassia!”, entrecortados por guinchos desafinados de cada vez que a bola chegava a menos de dez metros da área de Rui Patrício, e o silêncio que veio com Ronaldo, o seu salto de Mercúrio com asas nos pés, o golo, o dedo na vertical frente à boca: “CHIU!”

Sete minutos apenas.

Um silêncio incomodativo, até. Parecia que ninguém estava à espera… Como pode alguém não esperar um golo de Ronaldo, tal é a sua voracidade, tamanha a sua avidez? Só um néscio não conta com um golo de Ronaldo, seja a que horas for, seja em que meridiano for, sejam os bilhetes pagos em euros ou nos rublos que já viram melhores dias.

Ronaldo e o golo: confundem-se.

Essa quietude depois da fúria.

Sacha Guitry tinha uma frase maravilhosa sobre Mozart: “Aquilo que mais gosto na música de Mozart é que, quando acaba, o silêncio que se segue também é de Mozart…”

Pois: o silêncio que se seguiu ao minuto sete também foi de Ronaldo.

E o público russo ali, aporrinhado, assobiando o rapaz quando ele tomava balanço para a bola num livre direto, assobios de medo, de pânico até. Às vezes, os valentes mujiques sentem medo, não basta soltar ao vento que ninguém pode nada contra Deus e Novgorod, como Alexandre Nevski, o herói do Neiva.

As mudanças Já tinha escrito ontem que seria provável que Fernando Santos fizesse uma ou outra alteração. Afinal, isso encaixa na sua filosofia de ação, sobretudo quando não sai satisfeito do jogo anterior – o que aconteceu, tendo em conta o seu discurso na conferência de imprensa que se seguiu ao desafio de Kazan, frente ao México.

Mexidas na defesa – uma, Fonte por Bruno Alves; no meio campo – duas, Adrien no lugar de Moutinho e Bernardo no lugar de Nani; e no ataque – uma, André Silva no lugar de Quaresma. Há, no entanto, que assentar que as mudanças foram mais complexas do que a simples troca de nomes, não fossem as características de cada um bem diferentes das daqueles que tinham ocupado os postos de titulares no domingo passado.

Mais um facto, para que não fiquemos apenas pelo embalar da prosa: não há talento na Rússia. Não falo dos talentos robustíssimos de Mandelstan e Gorki e Tchaikovski e Prokofiev. Falo de algo mais terreno, mais físico. Do futebol, afinal. Imaginação insuficiente, técnica sofrível. É que isto dá para pouco, para muito pouco. E as ambições do velho país dos sovietes são bem mais frágeis do que um pucarinho de Estremoz.

Depois do silêncio, de novo o barulho. O bramar das 45 mil gargantas. Mas é Portugal que tem as melhores oportunidades. André Silva, uma e outra vez. A Rússia debate-se, mas não sabe como libertar-se das amarras férreas das suas próprias insuficiências. É, pode dizer-se, um som sem tom. E, no entanto, uma firmeza de vozes desprende-se das correntes.

O jogo fica aberto. Haverá ainda um desígnio da vontade?

O Exército Vermelho abre, aqui e ali, brechas na muralha lusitana. Demasiado pequenas, demasiado estreitas para deixarem passar um homem. Smolov, por exemplo, o atirador de Krasnodar.

Fímbrias de frio no final da tarde fervente de Moscovo. Há a sensação de que o vulcão se limitou a cuspir cinza, e nunca lava. Alma grande, imensa, como o coração que bate do Cáucaso aos confins da Sibéria, para lá das estepes.

Uma última chama que se apaga.

Houve um rapaz que lhes roubou a alma no fundo do poço do silêncio…