O Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu esta semana que todos os acusados no âmbito da Operação Fizz devem ser julgados. A situação do vice-presidente de Angola não fica porém totalmente clara, uma vez que este ainda nem sequer foi notificado da acusação – que foi deduzida no início do ano. O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) considerou que foi alegadamente montado em 2011 um esquema que tinha o objetivo de travar investigações que corriam em Lisboa e que visavam Manuel Vicente, mediante o pagamento de contrapartidas ao procurador que tinha os inquéritos em mãos, Orlando Figueira.
A defesa do governante angolano considera, porém, que não se poderia ter avançado para a fase de instrução sem que chegasse a Portugal a resposta a uma Carta Rogatória enviada para Luanda, no âmbito da qual se solicitava a notificação da acusação. Esta posição foi também defendida no início do mês pelo ministro da Justiça daquele país, Rui Mangueira. A verdade é que o despacho de pronúncia dos arguidos, a que o SOL teve acesso, não deixa claro se a parte relativa a Manuel Vicente também vai a julgamento já, até porque é a própria juiza de instrução que admite que o vice-presidente angolano ainda não foi sequer notificado, mas não analisa as consequências de tal omissão.
O número dois da hierarquia angolana está acusado por um crime de corrupção ativa, um crime de branqueamento e um crime de falsificação de documento. Já o ex-procurador do DCIAP foi acusado por corrupção passiva, branqueamento, violação de segredo de justiça e falsificação de documento. Mas ontem, em entrevista exclusiva ao semanário angolano Novo Jornal, Manuel Vicente garante que «nunca teve relações com o procurador português». No âmbito da Operação Fizz foram ainda acusados Paulo Blanco e Armindo Pires, da confiança de Manuel Vicente. O ministro da Justiça de Angola já garantiu que será dada uma resposta a Portugal e explicou as razões pelas quais a carta rogatória ainda não fora devolvida (ver caixa).
Pronúncia
Armindo Pires foi o único acusado a pedir que fosse aberta a instrução para tentar evitar que o caso chegasse a julgamento. Os restantes arguidos não requereram a abertura de instrução. A defesa de Manuel Vicente argumenta mesmo que sem a notificação da acusação nem sequer se poderia ter avançado para esta fase.
Mas avançou-se e no despacho de pronúncia conhecido quarta-feira salienta-se que, segundo a acusação, Armindo Pires terá juntamente com os restantes arguidos elaborado um plano para conseguir que fossem arquivadas investigações que visavam Manuel Vicente. Como o SOL noticiou em fevereiro, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal considera que o antigo magistrado daquele departamento Orlando Figueira terá decidido a 4 de outubro de 2011 aceitar entrar no esquema. Depois disso, segundo o Ministério Público, terá recebido um total de 760 mil euros como contrapartida por satisfazer os interesses angolanos em diversos inquéritos, nomeadamente num que investigava a compra uma casa de luxo no Estoril, Portugal.
Os inquéritos, defende a acusação, seriam um problema para Manuel Vicente uma vez que na altura era presidente da Sonangol e estava prestes a ser nomeado vice-Presidente da República.
Depois dos arquivamentos, Orlando Figueira saiu do DCIAP a 1 de setembro de 2012 e foi trabalhar para entidades ligadas a entidades com ligações aos arguidos.
Emails comprometedores
No despacho de pronúncia, a que o SOL teve acesso, são citados alguns emails trocados entre o advogado Paulo Blanco, que defendia Manuel Vicente, e o Procurador Geral da República de Angola, correspondência que para o MP português comprovam que o advogado do vice-presidente de Angola conseguia obter informação privilegiada do magistrado Orlando Figueira e a repassava ao homem que lidera o MP angolano, João Maria de Sousa:
«Tenho o prazer de informar V. Exa. que, após estudo da questão em apreço e posterior reunião, no DCIAP, foi obtido e garantido consenso de que os documentos comprovativos de rendimentos profissionais e/ou prémios de gestão constituem reserva de intimidade da vida privada dos cidadão, pelo que não ficarão acessíveis a qualquer consulta pública, nomeadamente de jornalistas desde que tal seja requerido no próprio requerimento […] Alerto ainda para a eminência de determinação da quebra do sigilo bancário e fiscal em Portugal, o que poderá ser evitado», escreveu Paulo Blanco para o PGR de Angola a 4 de outubro de 2011.
É através deste e de outros emails que o despacho conclui que a ordem de contratação de Paulo Blanco partiu de Manuel Vicente e que tal escolha estava relacionada com o facto de este ter uma boa relação com Orlando Figueira.
Carlos Alexandre confirma tese do MP
Segundo a defesa de Armindo Pires no pedido de abertura de instrução, não ficou provado nos autos que a Primagest, sociedade que alegadamente terá pago contrapartidas a Orlando Figueira, tenha qualquer ligação à Sonangol ou a Manuel Vicente.
Mas além de várias ligações descritas e que permitiram ao MP estabelecer tal ligação, o juiz Carlos Alexandre, ouvido na qualidade de testemunha, explicou que quando Orlando Figueira – de quem é amigo – saiu do DCIAP lhe disse que ia trabalhar para uma firma relacionada com a Sonangol.
Arquivamentos duvidosos
Num dos inquéritos arquivados por Orlando Figueira constava o facto de alguns apartamentos no Estoril Sol terem sido comprados com transferências de dinheiro de entidades que não tinham ligação aparente com os compradores. No despacho de pronúncia deixa-se claro que não se entende como é que a mera junção de documentos justificativos da capacidade financeira de Manuel Vicente (conforme se pedia no email citado em cima) poderia afastar as suspeitas.
«Também se suscitam dúvidas sobre a bondade da separação de processos quando algumas das transferências destinadas ao pagamento do imóvel de Manuel Vicente se destinaram também ao pagamento de frações autónomas adquiridas no mesmo edifício pelos generais angolanos Leopoldino Fragoso dos Nascimento e Helder Dias Vieira. A investigação dos factos referentes a estes dois últimos passava pela realização das mesmas diligências de investigação referentes a Manuel Vicente», lê-se no despacho.
Num outro inquérito que envolvia a sociedade Portmil, Orlando Figueira chegou mesmo a dar sem efeito diligências que tinha sido pedidas pela sua colega Teresa Sanchez e que segundo o MP poderiam comprometer os interesses angolanos.