Faz muita coisa. Cozinha, é ativista e mil e uma outras andanças. Mas nunca lhe tinha acontecido ‘fazer’ de ator; não lhe passava pela cabeça participar no festival de cinema de Cannes; ainda menos integrar o elenco de um filme premiado. E tudo isto aconteceu porque estava a protestar, em voz alta, atrás de um balcão em relação à diferença entre as convicções coletivas e as práticas em atividades ligadas à autogestão e culinária solidária. Complicado? Comecemos então a história do início, Rui Ruivo tem 44 anos, uma idade respeitável para jovem ator com a sua primeira experiência no cinema, só inferior à de jovem agricultor. É de uma forma bem-disposta e sorridente que fala sobre a sua aventura no reino da arte. A conversa decorre no Damas, na Graça, onde trabalha. Fez de operário de uma empresa ocupada, no filme A Fábrica do Nada. Uma história em que o trabalho se extingue e as pessoas tentam recuperar a vida, discutindo o que fazer sem ele. O jornal francês Liberation chamou-lhe uma obra «comunista e punk». O realizador da obra, Pedro Pinto, gostou bastante mais da ideia de lhe chamarem punk. «Acho que essa coisa do operariado está em desaparecimento há muito tempo. É uma coisa do século XIX, um bocadinho mística, que depois não deu em nada. Deu em idas ao Centro Comercial ao fim de semana. Sei que precisamos, em certa medida, de grandes narrativas para empolar e dar sentido à ação e à organização de uma resistência. Admito que sim, o problema é quando somos ultrapassados, contrariados e esmagados por essas narrativas. Tornou-se evidente que muitas dessas narrativas, no final do século xx, tornaram-se contraproducentes. E nada vale hoje», defendeu o realizador, numa entrevista ao jornal luxemburguês Contacto.
A vida de ator é representar uma multiplicidade de outros e ir mudando de identidade. Foi durante muito tempo uma vida mais precária do que o trabalho nas fábricas, lojas, empresas e serviços. Hoje, todo o trabalho parece totalmente precário e o do ator ainda mais o é. Falamos com três atores diferentes, para perceber o que isso significa: Rui Ruivo, o ator acidental; Inês Lago, a pessoa que luta diariamente para fazer teatro; e Diva O’ Branco, a jovem que não tem plano B para a vida, sem ser querer e crer, com muita força, que vai ser atriz.
Regressemos ao Rui Ruivo. «Eu não sou ator», diz-nos convicto, enquanto conta a sua aventura. «Estava a cozinhar na cantina do RDA [Regueirão Dos Anjos 69, coletividade, associação, local, ou qualquer coisa assim, em que se junta gente, com uma forte frequência libertária], o Pedro Pinho estava lá e já o conhecia, conversamos muitas vezes, o Tiago Espanha estava a conversar com ele, e eu estou a discutir, atrás do balcão, em voz alta, sobre autogestão, um bocadinho furioso, sobre situações que se geram na cantina com quem, como nós, faz as coisas em coletivo. No final do almoço eles passam por mim e dizem: ‘queres entrar num filme?’. Eu não consegui responder logo. Eles explicaram-me que era sobre uma fábrica e o que era, e eu disse: ‘pode ser’». Foi com este ‘pode ser’, que Rui Ruivo embarcou numa aventura para um mundo desconhecido. «Nunca tinha feito nada disso». Mas o Pinho pediu-lhe um desafio familiar: «pediu-me para fazer de mim próprio». Estar à frente da câmara para quem costuma estar atrás de um pano não era coisa fácil, mas foi-se habituando. O grupo todo, constituído por muitos atores acidentais, foi habituando-se e aprendendo a respirar sob as suas novas epidermes. «As filmagens tornaram as coisas mais naturais. As brincadeiras que tínhamos antes das filmagens e o processo tornaram o filme também nosso, mesmo a Fábrica parecia também já ser nossa», diz Rui Ruivo. Neste filme, os atores eram todos muito diferentes e alguns até tinham vivido na pele a situação que A Fábrica do Nada relata, outros vinham de outros ambientes, como Rui Ruivo, e só uns poucos eram atores profissionais. «Foi um pouco essa a ideia do Pinho, e de toda a equipa da Terratreme, conseguir ter pessoas a trazer as suas experiências pessoais para o filme», relembra. «O filme transmite alguma paixão sobre aquilo que está a ser feito. A facilidade com que as pessoas transportaram a vida para dentro do ecrã deu este tom apaixonado. Por exemplo, o Hermínio, um dos personagens principais do filme, na véspera do primeiro dia de filmagem tinha recebido uma carta a dizer que a empresa em que trabalhava tinha entrado em insolvência», revela o ator.
Foram três meses de trabalho para este grupo pouco usual de atores. Tudo sem guião. Queriam que as pessoas reagissem naturalmente perante determinadas situações com que eram confrontadas. Os diálogos são todos improvisados. O realizador Pedro Pinho afirma, na entrevista citada, que havia um guião que foi crescendo. «Chegou a estar fechado até ao dia das filmagens. Esse argumento estava acabado e até tinha diálogos, mas nós não os passamos aos atores, foram criados no momento. Trabalhamos dois meses com os atores a ensaiar cenas semelhantes, e depois dávamos perfis dramatúrgicos às personagens. O método é mais a criação de situações do que a mise en scene clássica».
A grande viagem
Inês Lago afadiga-se. Faltam poucas horas para estrear A Grande Viagem, Tragédia Ligeira em Três Atos, de que é coautora com Tiago Lemos Peixoto. Para além de coautora, é também encenadora, atriz, dramaturga e tudo mais. «Parece que anda por aqui um elefante, grande como os problemas e os sonhos do mundo. Mas ninguém na sala faz caso disso», reza o programa. A Grande Viagem usa como ponto de partida o livro A Viagem do Elefante de José Saramago em que se narra a história do paquidérmico presente de casamento oferecido por D. João II ao Arquiduque Maximiliano e da viagem da dita prenda de Lisboa até Viena de Áustria. Mas é apenas um ponto de partida, para conseguir discutir a condição de ator, as condições da representação e a vida do país nos tempos da troika. Em que somos obrigados a enviar novas prendas aos países do centro da Europa. «A gente começa na história e a nossa base é essa história, para falar o que nos interessa falar. O ponto de partida foi a questão da dívida e da dádiva, e como a manutenção da dívida nos torna a nós prendas negociadas, no Eurogrupo e outros locais, e a partir dai como nós é que somos o elefante e a prenda, somos exibidos e negociados de mão em mão. Partindo dessa ideia que nós é que somos o elefante, qual a razão que não conseguimos dar uma patada e dar cabo da comitiva que nos leva pela trela», problematiza Inês Lago.
Neste momento, o ensaio parece caótico, tudo parece cheio de arestas, como se fosse impossível alguma vez acertar durante a peça. Os atores e o resto das pessoas que trabalham na Grande Viagem, fazem isso depois das suas jornadas de trabalho em outros sítios e representações. Tudo se faz com paixão e em esforço. Muito esforço.
Estreada a Grande Viagem tudo aconteceu por magia. A peça funcionou apesar de todas as dificuldades de início. É talvez por isso que se fazem o ensaios, para testar tudo o que pode correr mal.
Já a grande viagem teatral de Lago começou há 17 anos. No início, confessa, mais do que ser atriz, pensou «em fazer teatro: estar nos sítios todos». Essa decisão de vida tomou-a muito nova e continua nessa saga, hoje na simbólica idade de 33 anos. Não se sente completamente crucificada, embora a vida não seja nada fácil. «Era pequenina, muito pespineta. Quando tomei a decisão, que a minha vida vai ser isto e aquilo para chegar ali e aqui, tinha 16 anos». Aquilo que a leva a prosseguir o caminho é continuar insatisfeita. «Espero nunca chegar onde quero, para continuar a procurar esse lugar. Quem está satisfeito está lixado», diz convicta. «Agora gostava de ter as condições necessárias para ir pagando as minhas contas, mas não é fácil». Para Inês Lago a criação é um processo que pressupõe uma certa insegurança, um certo desafio, não é algo que se faça das 9 horas às 5 horas da tarde. Pelo menos, em relação ao teatro que lhe interessa fazer. «Mas o problema é que há uma enorme regressão nas condições de trabalho». A atriz nunca se contentou com o caminho normal para fazer teatro. Isso começou logo na formação: «tirei a licenciatura de Antropologia, porque achei que isso era importante para perceber as pessoas e o mundo, mas nunca deixei de fazer teatro, fui parar ao teatro universitário e estreei-me, como profissional, em Guimarães». Frequentava o seu primeiro ano de faculdade. Nunca parou de representar e de fazer teatro, quando acabou o curso de Antropologia foi para o Conservatório. «Já tinha dez anos disto, comecei muito cedo, e depois tinha tido uma vivência muito forte no Teatro Universitário, por isso quando cheguei ao Conservatório mandaram-me ir trabalhar, e foi isso que eu fui fazer». Com um pormenor: resolveu tirar um curso de Filosofia sobre Estética, somando assim ao de Antropologia e ao Conservatório um diploma de Filosofia. «Isto tudo porque me interessa a investigação académica. O que é que eu ando a fazer? Ando a estudar e, a muito custo, não deixar de fazer teatro», ironiza Lago. «O meu percurso é sui generis, não é que eu ande a trabalhar assim tanto para ser atriz, nem trabalhar para fazer criação própria e trabalhar na criação dos meus colegas. Não o consigo fazer. Infelizmente, sinto uma regressão enorme: temos muito menos hipóteses de testar as premissas artísticas de maneira segura e de pagar as contas». Por causa disso, chegou a estar parada um ano, depois de dois trabalhos em que houve entidades que acabaram por não lhe pagar o que estava acordado.
Sem plano B
Diva O’ Branco não é nome artístico, é mesmo o nome da pessoa, de 22 anos, que está à nossa frente. Decidiu que queria ser atriz muito cedo. Para ela não há ‘plano B’. Quer e vai ser atriz. A sua paixão pelos palcos começou na dança. «Sou muito tímida. Desde os cinco anos que dançava. Sou muito envergonhada, na minha vida real, mas com a dança descobri os palcos e sobretudo descobri que aí não sou envergonhada. Quando estou em cena transformo-me noutra pessoa», confessa Diva. Estuda e inventa caminhos para isso. Frequentou durante dois anos, um curso intensivo de Teatro Musical, na escola EDSAE; aprendeu em workshops de ‘Acting para Cinema’, ‘Theatre and Acting’ na ACT-Escola de Atores e também frequentou o curso profissional nessa mesma escola. Atualmente está a acabar o curso na Academia Mundo das Artes – AMA.
Foi durante desta azáfama que lhe surgiu a ideia de fazer um projeto a que deu o nome de Põe-te no meu lugar, uma página no Facebook em que se expõem 50 fotografias, sobre 14 temas fortes, em que atores recriam essas situações. Uma reflexão sobre questões como a violência no namoro, a prostituição ou as drogas. Nesse trabalho contou com a ajuda do fotógrafo João Portela. «Conheci a Diva num trabalho. É uma pessoa muito determinada e com muita iniciativa. Quando me contou a ideia dela, eu disse logo que sim», relembra como foi o fotógrafo, no seu estúdio num bairro popular da zona ocidental de Lisboa. A ideia surgiu à jovem atriz quando frequentava a St.Dominics International School, onde havia um projeto semelhante nas aulas de artes. «É uma escola com uma grande preocupação artística. Nessa atividade a ideia era representarmos qualquer coisa. Eu mudei a ideia no meu projeto, e quis que fossem situações polémicas em que fossem testados os limites, que os atores encarnassem personagens em situações de vida bastante complicadas e que a sua exposição numa rede social nos convidasse a uma reflexão coletiva». Este conjunto de 50 fotografias é essa reflexão: «queria mostrar o meu acting em várias situações, decidi que as fotos seriam todas a preto e branco, que os temas seriam polémicos, e sempre que houvesse contracena, chamaria jovens atores na mesma situação do que eu». Um projeto que é uma espécie de montra para muita gente. Todo o trabalho resultava de um processo criativo entre o fotógrafo e a Diva. Escolhiam os temas e tentavam que as imagens tocassem a realidade do que pretendiam mostrar. João foi informático de profissão, mas fazia fotografia há dezenas de anos. A dada altura começou a fazer fotografia de estúdio e tudo mudou: «apaixonei-me por fazer retratos» e isso passou a ser a sua profissão. O Põe-te o meu lugar já acabou. Mas, segundo Diva, já deu os seus frutos: «quando mostro este portefólio , com as imagens que fizemos, a pessoas do meio, toda a gente gosta e dizem que nunca viram nada assim e já consegui castings desta forma».
Para já, Diva está a começar a sua carreira de atriz, não vê outro caminho, acredita que é possível. Como muita gente da sua geração que viu nascer, depois da geração do teatro, a geração dos Morangos com Açúcar, a jovem de 22 anos dá muita importância à sua forma física, passando bastantes horas no ginásio. A sua experiência profissional tem como pontos altos, a participação na peça A Cidade, de Luís Moreira, que ganhou Prémio de Melhor Peça Profissional ‘José Boavida’, 2016. Entrou em videoclips, em anúncios, curtas metragens, em papeis de figuração em novelas. A sua experiência de trabalho mais duradoura foi a participação num teatro musical infantil Rita no Reino das Páginas, em digressão pelo país inteiro.
Diz-se apaixonada pelo cinema, mas gosta um pouco de tudo. «Por mim era feliz a fazer cinema, teatro e televisão, como tenho experimentado, só que toda a hora e em grande (risos)», afirma esperançada. É otimista, acha que é mesmo possível, se batalhar muito, ter uma carreira de atriz. «Claro que há milhares de pessoas a tentar, mas é possível se se trabalhar muito, se se investir em formação». Para isso tem, desde sempre, o apoio da família. Não vê outra possibilidade de vida. É isto que gosta. É isto que quer fazer.
Sobre o que gosta de representar, diz: «não gosto de fazer de mim própria. Só demasiado calma e previsível. Gosto de experimentar a vida de outras pessoas e entusiasma-me observar gente na rua e imaginar como seria fazer no palco essas mesmas pessoas».