“Ninguém tem o direito de decretar um ultimato a um país soberano. Estamos disponíveis para dialogar, mas apenas sob as condições apropriadas”. Foi com estas palavras que, no passado sábado, o xeque Mohammed bin Abdulrahman Al-Thani, ministro dos Negócios Estrangeiros do Qatar, confirmou, em Roma, que o pequeno e abastado país do Golfo Pérsico não irá ceder às 13 exigências apresentadas por Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egipto e Bahrein, na sequência do corte de relações diplomáticas decretado por aquele grupo de países a Doha, no início do mês de junho.
Com esta rejeição – esperada, é certo- fica também afastada, para já, a possibilidade da Al-Jazira poder vir fechar as portas. O encerramento da internacionalmente respeitada cadeia televisiva, que pertence ao governo qatari, fazia parte da lista apresentada no passado dia 23 de junho, e foi uma das imposições mais polémicas da coligação árabe.
A inclusão desta exigência não se deve apenas ao facto de a Al-Jazira ser, nos dias que correm, uma das principais bandeiras do Qatar. O destaque oferecido pelo canal ao jornalismo de investigação mais arrojado, aos programas de debate sobre variados temas tabu na região – como o questionamento da religião, o terrorismo de financiamento estatal, ou a violação de direitos humanos – ou em entrevistas a representantes de alguns dos movimentos mais controversos do mundo islâmico – uma realidade totalmente oposta à programação rígida e censurada da maioria dos canais televisivos controlados pelos governos dos Estados daquela zona do globo -, tem sido um causador de significativo incómodo junto dos líderes do mundo árabe, durante as últimas duas décadas, pelo que no centro de uma das mais graves tempestades diplomáticas dos últimos anos na região do Golfo, o seu encerramento encaixa que nem uma luva na lista de exigências do clube liderado pela Arábia Saudita.
A enorme cobertura e destaque que a Al-Jazira deu aos protestos, movimentos e revoluções que eclodiram em diversos países muçulmanos do norte de África e do Médio Oriente, a partir de 2011 – hoje denominados de Primaveras Árabes – o alegado apoio ao grupo islamista Irmandade Muçulmana ou o contributo para a deposição de importantes figuras, como o líbio Muammar al-Gaddafi ou o egípcio Hosni Mubarak, foram alguns dos episódios que contribuíram para amplificar a fúria árabe contra o canal
A eles soma-se, igualmente, o sucesso do conteúdo televisivo da Al-Jazira e canais associados, junto de um grupo bastante numeroso de árabes sunitas liberais, interessados em temas como a justiça social ou o respeito pelos direitos humanos, pouco badalados pelas televisões dos vizinhos do Qatar, mas ali discutidas de forma crítica e provocante.
Um silêncio suspeito
Fundada em 1996, a Al-Jazira adquiriu rapidamente um estatuto ímpar no Médio Oriente, de representante de uma comunicação social árabe, livre e desamarrada de interesses estatais, pese raramente criticar a austera monarquia absoluta do Qatar. Esse sucesso regional foi acompanhado por um reconhecimento extraordinário junto dos países ocidentais – como nenhum outro meio de comunicação da região alguma vez gozou – que veem na cadeia televisiva qatari uma fonte de notícias independente e credível.
Estranhou, por isso, verificar, alguma apatia generalizada do Ocidente à exigência do encerramento daquela, liderado por Riade. “O presidente Trump, que tem feito vários acordos com os sauditas, não tweetou nada. Theresa May, no seu esforço desesperado de encontrar novos mercados para o Reino Unido, não se pode dar ao luxo de os aborrecer. Todos os outros parecem estar a olhar para o lado. Não é um pouco chocante os governos ocidentais estarem tão calados sobre o assunto?”, questionava John Simpson, editor de política internacional da BBC, no “Evening Standard”.
A própria Al-Jazira sugere que o silêncio das democracias ocidentais está relacionado com a visita recente do presidente norte-americano à Arábia Saudita e a outros países do Médio Oriente. Segundo a cadeia televisiva, para além da assinatura de um acordo de armamento milionário, entre Washington e Riade – um compromisso entre americanos e qataris sobre as mesmas matérias também foi anunciado recentemente -, foi igualmente acordado, entre Donald Trump e o rei Salman Al Saud, que os Estados Unidos não se iriam opor ao corte de relações do grupo de quatro países com o Qatar. O secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson garante, no entanto, que os EUA ficaram “surpreendidos” com a querela diplomática e pede uma “negociação razoável” entre todas as partes.
O prazo de 10 dias definido pelo grupo de países árabes para Doha aceitar as suas exigências, em troca do levantamento do embargo árabe ao Qatar, chega amanã ao fim, pelo que a sua rejeição em nada resolve, para já, o diferendo ou o futuro da Al-Jazira. Entre as 13 imposições que os quatro países árabes queriam ver cumpridas destacam-se ainda o encerramento de uma base militar turca em solo qatari, o refreamento das relações com o Irão, o corte absoluto de laços com organizações terroristas ou o pagamento de indemnizações pelas políticas do Qatar dos últimos anos.