Os britânicos desocuparam Hong Kong com uma promessa escrita, de que a relativa independência do território seria respeitada e as suas instituições democráticas se manteriam de pé, e uma improvável esperança, tácita, global e subentendida, de que o regime continental evoluiria de acordo com o modelo da península e se tornaria, como ela, próspero, moderno, globalista e governado pelo Estado de direito. Hoje celebram-se duas décadas desde que os britânicos abandonaram Hong Kong. A promessa escrita de que o país funcionaria com dois sistemas é frequentemente violada. E a esperança revelou-se uma fé mal depositada que funciona ao contrário: Hong Kong é hoje mais chinesa do que o contrário, paralisada, ainda para mais, entre as aspirações democráticas da sua população, os ditames de Pequim e os desejos económicos de laços mais próximos com o continente.
Vários milhares de pessoas vão manifestar-se hoje, dia em que o Presidente chinês celebra os vinte anos da entrega de Hong Kong ao Governo da China. Os protestos, apesar de tudo, não são suprimidos, como acontece no continente. Mas outras práticas ditatoriais, como a detenção de críticos ao regime, em especial a de editores, acontecem praticamente em aberto. Como Lam Wing-kee, que denunciou a sua detenção depois de ter sido libertado, numa conferência de imprensa e em aberto desafio às autoridades chinesas. Lam foi capturado na fronteira continental num período em que outros quatro editores de livros críticos foram também detidos entre Hong Kong e a Tailândia. Passou cinco meses em reclusão solitária, escovou os dentes sob vigilância e dormiu numa cela acolchoada para evitar o seu suicídio. «Eles querem prender-nos até darmos em loucos», disse, no ano passado.
Casos como o de Lam são indispensáveis para entender a encruzilhada em que vive Hong Kong passados vinte anos de reunificação chinesa. À medida que a economia da península perde importância quanto ao poderoso motor continental, o princípio de «um país, dois sistemas» mostra-se cada vez mais frágil. Este acordo, criado na década de 1980 de forma a facilitar a entrada das economias de mercado de Macau, Hong Kong e Taiwan no sistema continental comunista, ainda é a razão pela qual a cidade-Estado tem hoje de uma imprensa vibrante, para além de liberdades religiosa e de livre discurso e associação política. O exército chinês também se resigna aos seus casebres. Mas o que as detenções de Lam e outros editores demonstram, porém, é que Pequim se sente mais à vontade em estabelecer linhas vermelhas à relativa autonomia da península. Ou, nas palavras de um dos mais destacados ativistas políticos de Hong Kong, Joshua Wong, coincidentemente detido num protesto que se deu horas antes da chegada de Xi Jinping, na quarta-feira, o «um país, dois sistemas» foi trocado pelo receio paralisante de que se torne em breve «um país, um sistema e meio». «Começámos a aperceber-nos de que o tratado assinado entre Reino Unido e China e que devia proteger Hong Kong não é mais do que uma farsa ridícula», diz Yau Wai-ching, eleita deputada pró-independência mas travada de tomar posse por decisão de Pequim, ao recusar-se a prestar lealdade num discurso. «Desde a entrega que o povo de Hong Kong paga por esse engano».
Pulso e estagnação
Yau e Wong são o fruto do abraço do regime a Hong Kong e o que Pequim mais receia no território autónomo. Em 2014, o Governo chinês propôs um modelo eleitoral que permitia aos residentes de Hong Kong elegerem o chefe do governo da cidade, mas apenas a partir de uma lista de candidatos criada por um comité que controlasse. As forças pró-democracia rejeitaram a proposta e da sua contestação saiu o Movimento dos Guarda-Chuvas, que ocupou a baixa durante 11 semanas e mostrou que as gerações anteriores de políticos mais pragmáticos e dispostos a negociar com o continente pode estar a ser substituída por um grupo de jovens ativistas mais dispostos a contestar as ameaças políticas e culturais do regime, a imigração continental desenfreada e até as práticas de corrupção que começam entrar na península. O modelo chinês prevaleceu, a presidente do governo da cidade que será empossada pelo Presidente chinês está em linha com o regime, o continente continua a deter metade dos assentos da Assembleia Legislativa, mas, em segundo plano, o pulso do movimento pró-democracia – e mesmo pró-independência – não dá sinais de desmaio: o Movimento dos Guarda-Chuvas conseguiu eleger seis deputados para a Assembleia Legislativa e os que não foram eleitos encabeçam agora protestos e movimentos ativistas.
Não há certezas sobre a sua durabilidade e protestos como os de hoje são um teste vital ao sentimento democrata em Hong Kong. Os ativistas que saíram dos protestos de 2014 são, aliás, uma pequena minoria do campo pró-democracia, que tem outras batalhas, como, por exemplo, a grande inflação imobiliária – em junho, uma garagem de um espaço apenas foi vendida por mais de 600 mil dólares -, a estagnação parlamentar, a reforma de um sistema educativo severo associado a altas taxas de suicídio de jovens e os impactos da imigração de mais de um milhão de chineses continentais desde a reunificação – Hong Kong tem pouco mais de sete milhões de habitantes. A vindoura presidente da cidade-Estado e a grande maioria parlamentar já deixaram claro que a solução para estes problemas não é mais democracia, mas o contrário. «Se amanhã tivéssemos sufrágio universal, estes problemas iriam todos embora?», perguntou Carrie Lam ao New York Times. «Não acredito».