Talvez poucos se lembrem, mas aconteceu. Falo de uma polémica entre Catarina Martins, coordenadora do BE, e Marcelo Rebelo de Sousa, à época ainda não investido nas funções de Presidente da República.
Teve lugar em abril de 2016, a propósito do trabalho voluntário. Entre outros dislates, Catarina Martins afirmou: «Trabalho voluntário é uma treta. Se é trabalho, tem de ter contrato. Voluntariado é o que as pessoas podem fazer depois de termos um contrato de 35 horas semanais, quando se querem dedicar a outra atividade».
Estas declarações provocaram muita indignação num país onde mais de um milhão de portugueses(as), de todas as idades e condições económicas e sociais, praticam regularmente o voluntariado. De norte a sul e do litoral ao interior, em milhares de instituições públicas e privadas.
Esta polémica fez com que Marcelo Rebelo de Sousa respondesse, umas semanas depois: «De quando em vez, ouve-se uma ou outra voz na sociedade portuguesa, um pouco estranha, quase aberrante, a dizer: ‘Não é bom haver trabalho voluntário, deve haver prioridade ao trabalho pago’. [Ora] o trabalho voluntário de que falamos vai para além da atividade profissional de muitos; e noutros casos representa uma forma própria, autónoma, de realização pessoal, que não tem a ver com atividades profissionais desenvolvidas no passado».
Recordo esta polémica numa altura em que os portugueses dão uma grande lição de voluntariado e de solidariedade, a propósito da tragédia de Pedrógão grande.
Confirmando o que a maioria de nós já sabia: que somos um país de voluntários e de solidários. Que independentemente dos nossos problemas, das nossas desconfianças, das nossas tristezas, das nossas expectativas não concretizadas, o trabalho voluntário faz parte de nós.
Como muitas vezes se diz, ‘há males que vêm por bem’. E a tragédia de Pedrógão Grande, ampliada no espaço mediático, permitiu confirmar que somos um povo solidário e voluntário. E que tal trabalho não é uma treta. Antes pelo contrário.
Aliás, vários estudos têm permitido constatar que quatro em cada cem horas de trabalho no nosso país são trabalho voluntário. E que temos quase 400 milhões de euros por ano derivados do voluntariado. O Instituto Nacional de Estatística calcula em mais de um milhão o número de voluntários no nosso país. Quase 12% da população portuguesa! Equivalendo anualmente a mais de 1% do PIB. E existindo por vezes, nos últimos anos, taxas de voluntariado semelhantes na população desempregada e empregada. Sendo menor entre os idosos reformados e maior entre as mulheres.
Estes e outros indicadores atestam que os portugueses e as portuguesas praticam o voluntariado há muito tempo.
No dia-a-dia, em todo o lado, e independentemente de não terem também problemas, amarguras de vida, mágoas e tristezas.
O inferno do Pinhal Interior e das Terras de Sicó só veio ampliar essa realidade. Não sendo nada uma treta, antes pelo contrário. E, como me dizia esta semana, meio a medo, uma cidadã apanhada no tormento do incêndio, «por favor diga que estamos fartos de ver gente que vem cá de carro e motorista a despropósito, e que não traz nada. Ainda por cima, eles fecharam os olhos ao nosso abandono. Preferimos os voluntários que de forma discreta tratam de nós».
Mais palavras para quê? No Pinhal Interior, que sofre e desespera, temos hoje um território onde Portugal se realiza através de múltiplas ações de solidariedade e de voluntariado. Isso não tem preço. Só os aproveitadores da catástrofe, que dela têm procurado tirar proveito mediático, é que não perceberam que estão a mais. Até porque não são dali e nenhuma falta fazem à sua população e seu território.
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