Pulseiras eletrónicas, prisão preventiva, condenação, Ministério Público, despacho de acusação, despacho de pronúncia, prisão efetiva, Supremo Tribunal de Justiça, Julgados de Paz. Estes exemplos de léxico da Justiça contemporânea – que lhe serão, certamente, familiares – não faziam parte, pelo menos deste modo, dos códigos jurídicos medievais. Neste período, o código de leis em Portugal dava pelo nome de Ordenações Afonsinas [de 1446, às quais se seguiram as Ordenações Manuelinas], divididas em cinco livros que traçavam as leis para as principais áreas da sociedade, desde a administração à Igreja, passando pelo direito civil. O quinto livro das ditas Ordenações Afonsinas refere-se ao direito penal, ou seja, aos crimes e às respetivas penas aplicadas. Uma realidade bem diferente – e, indubitavelmente, mais severa, pelo menos do ponto de vista físico – à que conhecemos nos nossos dias. E não só as penas eram mais duras como, de certo modo, permanecem uma incógnita, dado o defeito de fontes históricas. Ou permaneciam.
É aqui que três esqueletos podem ajudar a contar a história. Passemos aos factos. Em 2001, uma escavação à necrópole do Rossio do Marquês de Pombal, em Estremoz – terra prolífera em ‘resíduos’ históricos dada a sua importância geoestratégica decorrente da proximidade à fronteira espanhola – foram encontrados os tais esqueletos cujas mãos e pés tinham sido amputados e colocados em cima ou junto aos corpos, uma descoberta sem precedentes. O caso foi estudado por uma equipa de antropólogas – Teresa Fernandes, da Universidade de Évora, Carina Marques e Eugénia Cunha da Universidade de Coimbra – e pelo historiador Marco Liberato, da Universidade Nova de Lisboa. O respetivo artigo científico, encabeçado por Teresa Fernandes, foi publicado no início deste mês no International Journal of Paleopathology. «É o primeiro caso, para Portugal, e o primeiro a nível mundial com mais do que um caso numa única necrópole – até agora apenas havia locais a fornecerem um esqueleto com lesões deste tipo», resumem os investigadores Teresa Fernandes, Marco Liberato e Eugénia Cunha ao b,i..
Na escavação, foram identificadas 126 sepulturas e recuperados 97 esqueletos, entre os quais estes três que revelaram amputações severas das mãos e pés como punição judicial. Tratavam-se de três homens, com idades compreendidas entre os 18 e os 35 anos e que foram enterrados lado a lado, o que induz que as mortes tenham acontecido próximo umas das outras. «Não é possível garantir, mas é muito provável que as mortes tenham ocorrido no mesmo momento ou, pelo menos, muito próximo», acreditam os especialistas. «Esta hipótese resulta de que as três sepulturas estavam lado a lado, numa região da necrópole de ocupação menos densa, ou seja, onde as sepulturas já não eram muito abundantes, em relação às restantes áreas intervencionadas durante a escavação. Também no mesmo sentido apontam as características das sepulturas. Estas eram menos elaboradas, resultando apenas de fossas abertas, contrariamente às restantes que tinham as pedras delimitadas por pedra», explicam.
Embora as amputações sejam consideradas lesões graves, podem ou não ter causado a morte a estas pessoas. «As amputações dos pés e mãos não são necessariamente a causa da morte pois não atingem órgãos vitais. Através dos ossos não se pode dar uma resposta taxativa. É, no entanto, possível que sem assistência médica possam ter morrido devido a essas lesões. Se o objetivo era castigar, o sofrimento seria também intencional», refere Eugénia Cunha.
As fraturas não deixam dúvidas de que este foi um ato intencional. «Este e outros sinais permitem concluir que o procedimento bárbaro foi perpetrado com um instrumento afiado, como uma espada ou um machado», diz a mesma especialista.
Falsificação da moeda, roubos, crimes sexuais ou homicídio?
Os restos dos três homens de Estremoz não deixam dúvidas de que receberam uma punição severa, muito embora o que possa ter estado na origem de tais atos não passe, por agora, de uma aproximação à verdade. «De momento, não é possível relacionar estes casos com uma conjuntura histórica específica. No entanto, castigo idêntico terá sido aplicado a indivíduos que fizeram perigar a autoridade militar do monarca no século XIV, como se refere no artigo. Qualquer ato de traição – incluindo a falsificação de moeda – contra o monarca era punível com pena capital, segundo a compilação jurídica do século XV, as Ordenações Afonsinas. Mas também o homicídio, o roubo ou uma série de crimes sexuais como a bigamia, a sodomia ou a violação».
As punições físicas judiciais em Portugal foram amainando com o tempo e, hoje, a restrição da liberdade – a prisão efetiva, portanto – é a pena mais pesada.
Mas na Idade Média o próprio conceito de prisão – que existia, quer «o ato quer o equipamento» – seria diferente. «Funcionava mais como medida preventiva, para evitar a insistência no crime ou para permitir a atribuição de uma pena, ou de coação – [o indivíduo] estaria retido até pagar uma multa, por exemplo. Não existe a lógica de prisão como pena», explicou o historiador e especialista em Idade Média Marco Liberato ao b,i..
Por isso, as pessoas eram mais frequentemente obrigadas a morar noutros locais do que colocadas sob cárcere. «Em termos práticos, a função do aprisionamento é afastar provisoriamente o delinquente da sociedade que de alguma forma desestruturou. Essa lógica na Idade Média era conseguida a partir da pena de degredo, obrigando o criminoso a ausentar-se durante um período de tempo», relata o professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
E esta medida tinha uma dupla função, uma vez que os locais de degredo tinham, muitas vezes, pouca gente. «Existiam mesmo os chamados coutos de homiziados, povoações em geral fronteiriças que tinham dificuldades em fixar população. Assim o rei dizia a alguém: ‘Ficas cinco anos no Alandroal’. Servia um duplo propósito – afastava o criminoso do tecido social que tinha sido perturbado e protegia a fronteira», conclui.
O castigo mais frequente, à data, eram os açoites. «A aplicação de castigos corporais, como açoites públicos, era uma prática relativamente frequente no Portugal Medieval», dizem os investigadores.
A pena capital
As amputações estudadas eram também, além de uma forma de punir, uma «forma de denegrir o corpo, com um significado social de dissuadir a população a incorrer em atos desviantes que possuíssem tal castigo», dizem os autores do artigo.
Ainda assim, a pena capital da época medieval era, efetivamente, a condenação à morte. E, tal como os desmembramentos, essa não seria uma realidade assim tão comum no país.
«A pena de morte não surge muito referida nas fontes históricas. A julgar pelo registo arqueológico, este tipo específico de punição mais exuberante seria raro, uma vez que não são conhecidos mais casos», explicaram ao b,i.
A última pessoa condenada à morte em Portugal balançou na forca a 19 de fevereiro de 1841, já no período Moderno. Tratava-se de um criminoso que, mais pelos atos que cometeu em vida do que pela forma como partiu, ficaria carimbado na memória coletiva: tratava-se de Diogo Alves, o assassino do Aqueduto das Águas Livres. No entanto, foi preciso esperar até 1867 para a pena de morte para civis ser definitivamente abolida – o código de Justiça militar manteve esta pena capital até 1976.
Até à sua abolição, a forca era, efetivamente, o meio mais utilizado para impor a pena capital. «A esmagadora maioria dos casos de aplicação de pena capital conhecidos recorreram de facto à forca», dizem os especialistas. «No entanto, há comprovação documental de degolados e de mortos pelo fogo. A ocorrência deste último tipo de execução em Estremoz reforça a perspetiva da vila ter sido palco da aplicação vigorosa da justiça pelo monarca». Por comparação, a pulseira eletrónica é uma brincadeira de crianças.
Nestas matérias, fomos ainda pioneiros noutro ponto: em 1884, Portugal foi também o primeiro país do mundo a abolir a prisão perpétua. Hoje, os 25 anos de prisão efetiva são a pena máxima atribuída pela Justiça portuguesa.