Um calor terrível e apertado rodeou Paris como se fosse um presságio. Um bom presságio, veia a saber-se depois.
Uma chuva de insetos tombou sobre o Estádio de França para felicidade das andorinhas e imitando uma praga do Egito.
Dia estranho, esse.
10 de Julho de 2016.
Cumpre-se agora um ano. Saint-Denis e o título meio inacreditável de Portugal.
Há um ano, eu estava lá, escrevendo nestas páginas a aventura portuguesa em França. O título foi: “Na aldeia branca da nossa memória”.
Éder, como um Jordão regressado do Tempo, tinha dado a espadeirada fatal que rasgou a França pelo meio da sua arrogante vaidade!
Nunca mais se esquece. Fica para sempre guardado na aldeia branca da nossa memória.
Claro que havia um esperança na vitória. Uma ténue esperança, vinda lá do fundo da alma, ligeiramente acima do coração.
Uma mar de gente a cantar “A Marselhesa” com um timbre de orgulho na voz e uma crença absoluta difícil de contrariar.
“Levez les mains en air! Allez! Allez! Allez!”
Coube a Portugal o lugar mais pequeno dessa final desigual. Coube a Portugal lutar contra essa desigualdade tão intensa.
Por entre as exclamações e o voo desordenado das traças, um jogo de roucos, de desgraçar gargantas.
Nunca mais se esquecerá. Por muito que o tempo teime em ir apagando os pormenores, como é função do tempo.
Havia nervos e tensão. Um possante meio-campo da França, jogadores poderosos, plenos de vigor. Um Portugal aqui e ali temeroso, encolhido. Mas de uma arrumação impecável, sem reparos.
Ronaldo não tardou a sofrer as consequências de uma entrada descuidada, com o seu quê de irresponsável e até de maldoso. Sofria Ronaldo e sofria Portugal.
O capitão da selecção coxeava.
Temia-se o pior.
Saiu em lágrimas de uma final que deveria ter sido a sua mas não deixaram.
A França em vagas; a bola rondando lugubremente a baliza de Rui Patrício.
Nas bancadas, o povo acreditava em gritos. Não será por ele que a equipa cairá.
A questão colocava-se: aguentar ou correr riscos? Esperar por uma derrota anunciada e cantada pelos franceses aos ventos do Hexágono ou recusar a facada do destino?
Portugal escolheu o caminho da coragem. Quis jogar no campo todo e jogou. Lambeu a ferida purulenta de um golpe bruto e imerecido e foi à procura de ser feliz de uma forma como ainda não se vira durante a competição. E a França confundiu-se. Não era assim que as coisas tinham sido programadas.
O Portugalzinho valente, de pelo na venta como o Raposão do Eça, não aceitava o sacrifício. Tinha 11 capitães ao leme e eram mais do que eles. Eram um povo inteiro a querer dobrar aquele Bojador que fica para além da dor.
O tempo ia passando. Mais depressa
para os franceses.
Griezmann falhou um golo escancarado.
Os adeptos portugueses desafiavam o silêncio num barulho crescente de acreditar sempre. Mais um prolongamento na via sacra da passagem de Portugal pelo Europeu de França.
O ponto mais extremo da resistência lusitana.
De repente, Fernando Santos acreditou em Éder
De repente, assim tão de repente como no poema de Vinícius, um momento. E outro. E outro ainda.
Um jogo que acende outro jogo; novo jogo dentro de um que já caíra como o casulo da crisálida.
“Às armas! Às armas! Sobre a terra e sobre o mar!!!” O Estádio de França, calado, ouve.
E golpes finos de espadas aguçadas trocaram-se sobre a relva de Saint-Denis.
Foi lindo! Lindo de ver!
Eles podiam ter os Campos Elísios e a Torre Eiffel e a pobre da Joana d’Arc, mas Portugal tinha o segredo para lutar contra toda uma nação: ser mais do que 11, ser mais do que um país – ser um só!
Portugal campeão da Europa!
Um grito arrancado do peito e das entranhas do sonho.
Um sol português iluminou a noite de Paris, no ponto mais alto do sacrifício. Gente que ia de braço dado às montanhas da sua própria alegria, pelas avenidas, pelas praças, pelos boulevardes da cidade das luzes.
De joelhos, incrédulos, os franceses.
A França de todas as vaidades, de todas as arrogâncias, derrotada dentro das suas trincheiras.
“Aux armes!?” Calaram-se os coros afinados. A noite pintava-se a vermelho e verde. Era Portugal derramado pelas ruas de Paris, como no poema de Manuel Alegre.
Um Portugal em estrofes. Que ninguém nunca mais esquece.