Como 8 milhões de ‘luvas’ foram parar às mãos de Sócrates

A investigação seguiu a par e passo o complexo rasto de alguns milhões, desde a origem até chegarem a Sócrates. E suspeita que algumas operações foram inventadas em datas posteriores aos factos, para ‘legalizarem’ as transferências de dinheiro.

Das dezenas de milhões de euros de ‘luvas’ por negócios com a PT que o Ministério Público julga terem ido parar às mãos de José Sócrates, os investigadores da Operação Marquês apuraram ao detalhe a forma como circularam oito milhões – desde o momento em que saíram do ‘saco azul’ do BES Angola até aportarem nas contas de Carlos Santos Silva, o amigo do ex-primeiro-ministro.

O esquema assentou na pretensa venda de um terreno para construção no centro de Luanda, na Rua Major Kanhangulo (antiga Rua Direita), que as autoridades portuguesas garantem não ter passado de um negócio fictício, com a finalidade de fazer entrar o dinheiro na esfera de Santos Silva e, por seu intermédio, na de Sócrates.

Em 30 de dezembro de 2010 foi produzido um contrato-promessa de compra e venda, através do qual a propriedade do Kanhangulo passaria da Angola-Investimento Imobiliário SA (sociedade do grupo Lena, da qual Santos Silva fora administrador e para onde ainda colaborava) para a Eninvest-Investimentos Imobiliários SA. Esta sociedade nunca chegou a ser constituída mas destinava-se a integrar o grupo angolano Margest, controlado pelo empresário luso-angolano Hélder Bataglia, com fortes ligações ao BES.

Nos termos do contrato, a Eninvest compraria o imóvel por 35 milhões de euros, pagando de imediato oito milhões (como parte de um sinal de 15) e estabelecendo-se prazos para a liquidação do remanescente. Esse pagamento, no valor exato de 7.999.807,08 (descontadas as despesas bancárias), foi feito na véspera da assinatura do contrato-promessa, ou seja, a 29 de dezembro, para a conta nº 0393.132702.930 da Caixa Geral de Depósitos, em nome da sociedade Lena Engenharia e Construção SGPS SA. E depois seria transferida para uma conta de outra empresa do grupo, a Lena Engenharia e Construções SA.

Promitente-comprador deixou passar o prazo

Sucede que o promitente-comprador nunca mais liquidou a parte complementar do sinal, no valor de sete milhões de euros, deixando caducar os prazos estabelecidos no contrato e perdendo o direito ao valor já pago, que entraria como receita extraordinária nas contas do grupo Lena.
Uma carta do administrador deste grupo Joaquim Barroca Vieira Rodrigues, em nome da Angola Investimento Imobiliário, com data de 2 de março de 2011, fez a ameaça formal de cativar em definitivo a verba paga, como viria a acontecer: 

«Reservamo-nos o direito de recorrer a todos os meios legais que nos assistem, face à situação descrita, sobretudo caso se verifique que Vexas. não diligenciam no sentido da solicitação que vos é formulada, ou seja, o pagamento integral dos montantes em dívida referentes ao reforço do sinal, de acordo com os termos do referido Contrato Promessa de Compra e Venda».

A sociedade de Bataglia ainda respondeu a 13 desse mês: «Estamos a diligenciar no sentido de cumprir com os pagamentos devidos […]. Assim, contamos até ao dia 5 de Abril de 2011 proceder ao pagamento integral do sinal e reforço de sinal. Gostaríamos de referir que o atraso na realização dos mencionados pagamentos, deveu-se a motivos imponderáveis alheios à vontade da sociedade, pelo que, assim que possível, e sempre dentro do prazo […], procederemos à sua liquidação».

Mas a verdade é que nenhum outro passo foi dado para o acerto de contas, permitindo que, a 10 de maio, após troca de mais alguma correspondência, a empresa do grupo Lena comunicasse à outra a cativação da verba: «Dado que Vexas nada fizeram no sentido de sanar o vosso incumprimento definitivo, nomeadamente não procederam ao pagamento do valor de € 7,000,000 (sete milhões de euros), em falta, correspondente a reforços de sinal, vimos por este meio proceder à resolução imediata e unilateral do contrato. Desta forma, e nos termos da lei aplicável, bem como de acordo com o disposto no número um da Cláusula Quinta do Contrato, e como consequência da resolução unilateral, iremos reter as importâncias entregues a título de sinal e princípio de pagamento, no montante de € 8.000.000,00 (oito milhões de euros)».

Suspeitas de que tudo foi forjado à posteriori

Além de Joaquim Barroca, também assinava esta carta outro administrador do grupo Lena, Francisco de Mendonça Tavares, tendo sido a partir de buscas à sua documentação que os investigadores descobriram que todas as minutas da correspondência trocada entre as duas sociedades com vista à resolução do contrato foram elaboradas informaticamente por ele em julho de 2011 – ou seja, meses após a suposta ocorrência dos factos, levando a suspeitar estar-se em presença de uma operação inventada. 

Ouvido nos autos, Mendonça Tavares – que à época trabalhava no escritório de Ana Bruno (presidente da Newshold entre 2009 e 2012 e acionista da Akoya, uma empresa suíça de gestão de capitais envolvida no caso Monte Branco) – confirmou ter sido o autor das cartas a pedido de Hélder Bataglia, tendo-lhas entregado numa pen drive.

Os investigadores garantem assim que o contrato-promessa era fictício, destinando-se apenas a dar cobertura legal à transferência dos oito milhões para o grupo Lena.

Essa verba faria parte de uma quantia de 12 milhões que Hélder Bataglia, segundo afirmou ao MP no início deste ano, terá feito chegar às contas de Santos Silva a pedido de Ricardo Salgado.

Uma vez entrados os oito milhões nas contas do grupo Lena, foram daí retiradas sucessivas quantias que se destinaram a fazer pagamentos a Santos Silva e a empresas suas. 

Verbas transferidas do grupo Lena para Santos Silva

Logo a 30 de dezembro de 2010, foi celebrado um suposto contrato de prestação de serviços entre a Angola-Investimento Imobiliário, representada por Joaquim Barroca, e a empresa XLM-Sociedade de Estudos e Projetos Lda., controlada por Santos Silva e representada pelo próprio. Os serviços consistiam na prospeção e intermediação na venda do imóvel da Kanhangulo, em nome dos quais a XLM recebeu a 21 de janeiro seguinte a verba de três milhões de euros (de um total de 12 milhões que valeria o contrato). Curiosamente, embora a fatura fosse dirigida pela XLM à Angola-Investimento Imobiliário, quem a saldou foi a Lena Engenharia e Construções.

Entre fevereiro e setembro de 2011 verificaram-se outras saídas em numerário do grupo Lena para pagamentos a Santos Silva, no valor global de cerca de 410 mil euros. 

Através de um outro contrato de prestação de serviços já antes existente entre a XLM e a Lena Engenharia e Construções, foi também pago em 2012 um montante de 1,875 milhões de euros – que, tal como a anterior verba de três milhões, Santos Silva colocaria à disposição de Sócrates.

Dado que o total de dinheiro que passou do grupo Lena para a esfera do amigo de Sócrates não chegou a 5,5 milhões de euros, os investigadores admitem que, à data da detenção do antigo líder socialista e de Santos Silva no âmbito da Operação Marquês, em novembro de 2014, o empresário ainda aguardava a entrega de 2,5 milhões de euros pelo grupo Lena, por forma a perfazer o total da transferência de oito milhões que terá sido encomendada por Ricardo Salgado.

Além de Sócrates e Santos Silva, também Salgado, Bataglia e Joaquim Barroca figuram entre as quase três dezenas de arguidos da Operação Marquês, sob suspeitas que vão desde corrupção ativa e passiva ao branqueamento de capitais e à evasão fiscal.