Um carro verde sobe a rua que vai dar ao Moinho da Juventude mas, quando tenta virar à esquerda, há de fora quem lhe acene em sinal negativo. Uma carrinha da polícia fecha o trânsito e são perto de dez os agentes armados a fazer a ronda. De dentro do carro, um encolher de ombros e uma marcha-atrás são a prova de que estas situações fazem parte do dia-a-dia da Cova da Moura.
“Aparecem cá a qualquer hora”, garante Eliana, enquanto come um gelado com as amigas. Tanto ela como Vera e Verónica, todas com 15 anos, lembram-se de ver a polícia chegar em força desde crianças. “Graças a Deus” ficaram sempre no papel de espetadoras, sorte que Lurdes não teve naquela noite em que se viu encostada à parede pelos agentes da autoridade. Estava a tomar um café com umas amigas quando viram entrar porta dentro uma série de homens armados. “Não vai bater em mulher, pois não?”, perguntou, achando que a pergunta era retórica. “Aqui não há mulher nem há homem, tudo no chão, gritaram eles”, conta. “É uma vergonha, chamam-nos pretos e mandam-nos voltar para a nossa terra.”
Relatos como os deste grupo multiplicam-se pelas ruas íngremes de um dos bairros mais problemáticos de Lisboa. E é por isso que são muitos os que se mostram surpreendidos por ser a primeira vez que agentes da PSP estejam a ser acusados de racismo e tortura.
Isabel Monteiro, coordenadora do Moinho da Juventude, justifica esta tomada de posição do Ministério Público com a onda de indignação que se gerou à volta deste caso, “que poderia ser um de tantos outros que acabam arquivados”, admite. Desta vez, fizeram-se manifestações e ninguém recuou na hora de apresentar queixa. Resultado: os depoimentos dos jovens acusados de invadir a esquadra de Alfragide para saberem do amigo que tinha sido preso pesaram mais que o dos agentes, que alegavam ter sido um apedrejamento contra a viatura da polícia a motivar a primeira detenção.
Racismo?
Fora uma ou duas bocas que aprendeu a ignorar, Isabel garante que a única vez que sentiu racismo a sério foi na escola, quando as mães das outras crianças não as deixavam brincar com ela. “Diziam que, se me tocassem, ficavam da minha cor”, conta.
Só voltou a pensar na palavra maldita quando começou a trabalhar na Cova da Moura. “No Cacém, onde vivo, se a polícia é chamada por alguma razão, primeiro identifica-se e depois pergunta o que se passa. Aqui não há tempo sequer para falar, é logo à porrada”, garante.
Do outro lado da barricada, ou seja, umas ruas abaixo, nas imediações da esquadra de Alfragide, os moradores têm outro discurso, até porque há quem já tenha assistido a um “aproveitamento” do conceito de racismo.
“Há uns tempos fui mandada parar numa operação stop e, à minha frente, um senhor de cor também foi. Saiu logo do carro a gritar que aquilo era racismo”, conta Ana que, na noite do crime, em 2015, viu de facto “um grupo da Cova da Moura” à porta da esquadra. “Não sei o que fizeram, mas que estavam lá, ai isso estavam.”
“Isto do racismo é uma faca de dois gumes”, interrompe Rosa Gaspar, que há 24 anos gere o restaurante que, pela proximidade da esquadra, serve quase de cantina aos agentes. “Se eu chamar nomes a alguém, tudo bem. Se chamar preto, é racismo”, exclama.
Como em todo o lado, acredita também que a polícia tem gente boa e má. “E eu”, faz uma pausa para bater na madeira, “tenho a sorte de ter conhecido sempre boa gente, fora um ou outro, vá.”
Mas se pelas mesas d’“A Pérola de Alfragide” já passaram centenas de agentes, ainda hoje Rosa não consegue falar de Ireneu sem lágrimas nos olhos. “Ele não merecia o que lhe aconteceu”, admite, lembrando o tiroteio que, em fevereiro de 2005, na Cova da Moura, levou à morte do agente Ireneu Diniz.
É, aliás, uma placa que homenageia o agente que serve de cartaz de boas-vindas à esquadra do momento. “E basta recuar aos últimos 15 anos para ver que foram pelo menos quatro os agentes mortos em serviço”, diz ao i fonte policial, a mesma que lembra que, nove meses antes do caso em que 18 polícias foram constituídos arguidos, a esquadra tinha sido invadida por um grupo de nove jovens. “Não vi isso ser notícia”, refere.
Sem que ninguém se identifique, no seio da PSP há quem fale no “ridículo da situação” que põe a polícia como “os maus da fita”. Mas ninguém tem dúvidas da gravidade da acusação. “Acho que preferia ser acusado de homicídio do que de racismo”, há quem arrisque dizer.