“Este caso não é um problema de polícias ignorantes, não é um problema de gente mal informada que não sabe o valor da vida de um negro, são as relações de poder que perpetuam a impunidade daqueles que agridem populações sub-humanizadas quotidianamente.”
Marta Araújo, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, autora do estudo “‘Raça’ e África em Portugal: um estudo sobre manuais escolares de História”, é da opinião que o racismo mostrado pelos polícias da esquadra da PSP de Alfragide não é individual nem excecional, mas reflexo dessas “relações de poder” que se vão mantendo e contribuindo para a subalternização dos negros na nossa sociedade.
E o que acabamos por ter é “quase um círculo vicioso” em que “a subalternização do outro produz e é fruto do racismo”.
Para a investigadora, as soluções ditas liberais que vêm sendo observadas nos últimos quase 70 anos na Europa “não conseguiram questionar” as diferenças que existem no acesso ao poder e os “processos estruturais e institucionais na distribuição desses privilégios”.
Com a agravante de que sempre nos venderam a ideia de que o racismo é resultado da falta de educação e que mais educação seria a “solução milagrosa para problemas que são sociais e políticos”. Isto é, “não tem havido uma mudança forte nas sociedades europeias em termos de racismo, porque se continua a pensar que o racismo acabará quando conseguirmos educar os ignorantes, sem perceber como é que a produção do conhecimento académico perpetua essas representações”.
Em Portugal, se é certo que, durante o PREC, “a narrativa muda bastante em relação ao colonialismo, sobretudo em relação às lutas de libertação”, de 2000 a 2010 “tem havido uma acentuação da despolitização do colonialismo”.
“Num manual do mesmo autor e da mesma editora, de 2003, ainda se menciona que a escravatura envolvia uma certa violência e que implicava deslocar à força populações do continente africano para o continente americano. O mesmo manual, cinco anos mais tarde – a edição seguinte -, remove essa expressão do ‘eram levados à força’, tratando estas questões como mera migração de populações.”
Marta Araújo analisou os manuais escolares de História do 7.º, 8.º e 9.º anos até 2010 (e embora não tenha analisado os mais recentes, em conversas com professores percebeu que estão “ainda piores”) e o que percebeu foi que aquilo que aprendemos na escola foi “acompanhando as narrativas políticas dominantes, algumas delas consagradas no Estado Novo mas que não começaram no Estado Novo”.
“Nós vimos a mudança no conhecimento como sendo na direção de um progresso maior, que cada vez mais conhecimento levasse à formação de narrativas mais corretas ou mais verosímeis, e vemos que não é assim”, sublinha a investigadora.
O que vemos é que “querendo enaltecer o papel central de Portugal na construção da lusofonia”, foi-se “despolitizando a violência do que foi o processo colonial”. No fundo, “temos um retrocesso político” em que o ensino dos movimentos de libertação deixa de mencionar ideias como a de negritude, de pan-africanismo, de mencionar intelectuais ligados a estas ideias e as suas diferenças, “e os movimentos de libertação são mais ou menos tratados como um bando de guerrilheiros, esvaziando-se o conteúdo político das suas lutas”.
Comunidade lusófona
Com a ideia da construção de uma comunidade lusófona, com laços com as ex-colónias, desenvolvida pelo poder político, veio o necessário acompanhamento na produção intelectual. “A academia não tem sido neutra”, sublinha Marta Araújo.
“Hoje em dia queremos construir essa ideia de uma comunidade com laços com as nossas ex-colónias e isso não é só nos manuais, desde as posições de mais alto nível ao trabalho que é visto no âmbito do que se pode chamar a indústria da interculturalidade em Portugal. Essa ideia tem sido crucial e revela uma série de alianças do poder político com a produção de conhecimento.”
A ideia de criar uma identidade nacional positiva para as crianças alterou a forma como se dá os Descobrimentos nas escolas, libertando-os das marcas negativas. “Claro que estão sempre a pensar nos alunos brancos, para quem isso não é problemático”, assinala.
É verdade que na História ensinada agora já não se chama primitivos aos africanos, nem selvagens, nem bárbaros, como antigamente se usava de forma habitual. No entanto, o que o estudo de Marta Araújo verificou foi que, se o vocabulário não é usado, “a abordagem não mudou”.
“Há sempre esta ideia de que África ficou no passado, não beneficiou do processo de modernização que a Europa lançou ao mundo. Temos a ideia de África como o berço da civilização, mas que nunca se desenvolveu”, explica.
Nos manuais do terceiro ciclo “fala-se das lutas anticoloniais e o tema que vem a seguir é logo o Terceiro Mundo”. O que naturaliza essa ideia de que os africanos eram “violentos, iniciavam guerras” e, em consequência disso, “temos a pobreza e o subdesenvolvimento”.
Na questão racial, a investigadora não vê grandes diferenças nos manuais destes mais de 40 anos de democracia: “Não houve avanços e recuos, e a subalternização do africano negro tem estado lá, de uma maneira cada vez mais forte mas, se calhar, mais subtil.”
“Mesmo durante o PREC não havia uma discussão do racial. Podia haver a concessão de maior dignidade aos intelectuais negros mas, por exemplo, dizia-se que os impérios britânico e holandês eram racistas e nunca se falava no racismo no império colonial português.”
“Hoje continua a fazer-se o mesmo. Um dos manuais que analisámos menciona a lei do indigenato e não aprofunda como a categorização racial levava a diferentes direitos. A questão racial é fulcral porque ela ainda hoje é sempre abordada para falar, ou do chamado novo imperialismo ou para grandes debates contemporâneos que têm sempre lugar noutros lados, como o Holocausto, o apartheid da África do Sul ou a segregação racial do tipo Jim Crow nos Estados Unidos”, conclui.