“Houve um tempo em que também sonhei. Sonhei que este passado nunca mais voltaria. Mas estava enganada. Esse passado está sempre aqui. Até hoje tenho horror a estações de comboio, linhas férreas, vagões. É como se todos os comboios me levassem para Auschwitz, Dachau, Treblinka”, ouvimos Nina Guerra dizer em russo, a partir do pensamento desta mulher a carregar no rosto “todas as tragédias da humanidade”, Isabel Ruth. Foi por isso mesmo que logo que partiu para “Treblinka”, filme de pouco mais de uma hora com que venceu a competição nacional da última edição do IndieLisboa, Sérgio Tréfaut percebeu que era ela a atriz que tinha de levar para filmar num comboio na Sibéria. E não era preciso que falasse “para que tudo estivesse lá”, todos os trágicos passados possíveis.
De um lado, Isabel Ruth então, do outro, noutra carruagem, noutro comboio, não é isso que importa quando todos os comboios vão dar a Auschwitz, Dachau, Treblinka, o ucraniano Kirill Kashlikov, que foi descobrir a um casting em Kiev para um filme rodado pelos caminhos-de-ferro de uma Ucrânia a ferro e fogo, Maidan cercada de checkpoints.
Treblinka e tudo volta a acontecer neste comboio que, sem passado nem presente, percorre os caminhos que vão dar à estação mais próxima deste campo de extermínio operado entre julho de 1942 e outubro de 1943 como parte da Operação Reinhardt, a fase mais mortífera do plano da Alemanha nazi para o extermínio dos judeus, na chamada “solução final”. Nos números que nunca serão exatos, só nas câmaras de gás desse campo construído na Polónia ocupada morreram assassinadas, nesses poucos meses, entre 750 mil e 1,2 milhões de pessoas. À fábrica da morte houve também alguns, poucos, muito poucos, 57, que sobreviveram. Caso de Chil Rajchman, que logo nos anos seguintes, escondido em Varsóvia ainda durante a guerra, escreveu as pouco mais de cem páginas publicadas postumamente pelos filhos, “Je suis le dernier juif”, que Tréfaut foi descobrir na pesquisa para o filme que tinha decidido fazer sobre o Holocausto.
“Inicialmente, o que queria fazer era um documentário sobre os sobreviventes, mas a partir da Marceline Loridan-Ivens”, escritora e realizadora viúva do documentarista Joris Ivens. “Queria fazer um filme sobre a sua vontade de viver apesar de todos os mortos, sobre a vontade de ser feliz no meio de todas as tragédias possíveis, que foi algo que sempre amei nela”, recorda o realizador que, na impossibilidade de fazer esse filme, decidiu partir para um outro que fosse uma homenagem a ela e a todos os sobreviventes, que veio a ser este “Treblinka”, ficção com um documentário dentro que são os textos de Rajchman, de Marceline Loridan-Ivens e de outros sobreviventes que vamos ouvindo nesta viagem a percorrer o tempo até Treblinka, nos comboios do presente, pela voz ora de Nina Guerra (no corpo de Isabel Ruth), ora de Kirill Kashlikov, entre fantasmas do passado, do presente. Ou serão eles os fantasmas?
Fantasmas, mortos, vivos, passado, presente para nunca havermos de descobrir onde estamos. “É uma espécie de comboio-fantasma. O testemunho dele é de um vivo, de um morto? Não importa. Para mim, o que importa é que é um testemunho”, diz Tréfaut. “Fiz questão de que o texto do Rajchman, na maior parte dos casos, continuasse no presente para que o ouvíssemos como se fosse agora.” Como se este passado fosse ontem. E foi. As linhas de comboio continuam a ir dar a Treblinka, a paisagem que vemos pelas janelas é a mesma pelas quais passaram os milhões que eram transportados para a fábrica da morte , como os judeus búlgaros que nessa viagem levaram tudo a achar que Treblinka era nome do complexo industrial onde tinham aceitado trabalhar. “Há coisas filmadas nesses comboios que são reais, do presente. Interessava-me esse diálogo entre passado e presente para que as pessoas percebam que não é impossível que o que aconteceu aconteça novamente ou que continue a acontecer de uma forma diferente.”
Treblinka, e nesta viagem vê-se o Holocausto como as imagens que vimos nunca mostraram. Não fazem falta as imagens, como não fazem falta os números. Para trazer o horror de volta bastam estes corpos nus, num comboio a caminho de Treblinka ou de outra estação qualquer. “Quando li o livro do Chil Rajchman já tinha lido muita coisa, não era propriamente ignorante. Já tinha lido as memórias da Marceline, que foi o ponto de partida, mas a imagem do que era um campo de extermínio, da fábrica da morte, da máquina de matar pessoas nunca a tive tão óbvia. No livro é muito claro que para sobreviver é preciso fazer-se parte da máquina”, diz o realizador sobre o livro de memórias de Rajchman, que escapou à morte por ter sido escolhido para trabalhar no campo: primeiro a cortar os cabelos dos que seriam enviados para as câmaras de gás, depois a separar roupas, depois a arrancar dentes de ouro aos mortos ou a cavar as valas comuns onde, numa fase inicial, eram enterrados os corpos. “Fiquei sem conseguir respirar quando o li, incomodou-me muito, e creio que isso tem muito a ver com a secura descritiva e não interpretativa, não analítica da realidade. Porque ele fala de assassinos [quando se refere aos guardas e aos trabalhadores do campo], mas o texto é uma descrição. E uma descrição muito factual e muito detalhada.”
Imagens do Holocausto não há nenhuma, não são precisas para sentirmos o terror que nos traz a voz de Kasjlikov. “As imagens de arquivo são tão recorrentes que se banalizaram, há uma anestesia em relação a elas, sobretudo as mais históricas.” E, sem imagens, “Treblinka” é terror e é culpa, culpa pela necessidade de milhares continuarem a morrer todos os dias para os 57 que sobreviveram pudessem continuar a viver. “Não sei porque é que ele nunca publicou o livro em vida, mas é possível que tenha a ver com isso também”, diz Tréfaut. “Ele nunca foi um guarda, mas a sobrevivência deles era isso.”
Treblinka Trailer ENG from Faux on Vimeo.