Ao chegar a Ferraria de São João, não há como não ver o que está à vista de todos. Há o povoado, uma circular verde de sobreiros e depois a encosta de eucaliptos queimados, o chão negro. O fogo chegou na madrugada de 18 de junho, vindo do concelho de Figueiró dos Vinhos pela serra a oeste da aldeia. As chamas desceram a montanha numa frente em toda a largura e depois pararam. Não houve helicópteros. Havia dois carros de bombeiros, um em cada ponta, mas a certa altura deixaram de poder ir buscar água ao tanque. Foram os sobreiros, imagem de marca da aldeia, a guardar o lugar de 38 habitantes, orgulhosos deste património legado pelos antigos. Nunca, na história recente, tinham percebido o quanto podiam fazer a diferença.
A aldeia fica na fronteira entre o concelho de Penela e Figueiró dos Vinhos, linha que cruza precisamente o sobreiral que quase parece deslocado numa região onde predomina eucalipto e pinheiro. Pedro Pedrosa, da associação de moradores de Ferraria de São João, diz que são 400 árvores, que fazem parte da história da terra. «Algumas têm dois séculos. Os mais antigos dizem que na altura foram plantados para proteger a aldeia dos incêndios. É curioso ver como há duas ou três gerações já havia essa perceção», explica o proprietário de uma empresa de turismo de natureza e de um turismo rural, que há oito anos trocou a vida em Lisboa pela aldeia. Ali, os sobreiros já eram bem estimados antes de o fogo tornar evidente o seu papel. «Metade estão em terrenos privados e a outra metade num baldio, mas historicamente sempre existiram donos para cada uma das árvores. Até estão registadas nas Finanças e foram sendo transmitidas». Há oito anos, a associação de moradores nasceu doutra aventura da aldeia, a criação do primeiro centro de BTT do país. Mas a política florestal também passou a fazer parte das missões. «Na altura, 84 árvores pertenciam a uma mesma pessoa, o senhor José Vaz, que quis vender. Como o terreno não era de ninguém e queríamos que mantivesse o usufruto pública, a associação comprou-as».
Lançaram então um projeto singular de adoção de sobreiros, que permitiria manter as árvores e os terrenos limpos. Por 40, 60 ou 80 euros, os adotantes ganhavam direito a nove anos do sobreiro-afilhado, com direito a metade da cortiça mas também à sombra da árvore. Neste momento, há cerca de 60 sobreiros adotados, a maioria por portugueses mas alguns pelos turistas estrangeiros que ao passar por Ferraria foram vendo interesse no projeto, que em junho acabaria por se revelar muito mais do que uma carolice.
O fogo que se autoextinguiu
Passava pouco da 1 da manhã de domingo, já depois do caos em Pedrógão Grande, quando as chamas atacaram a aldeia. Começaram a descer a encosta e a devorar os eucaliptos até que chegaram ao sobreiral. No local, é notória a linha em que a batalha foi ganha. Há sobreiros que de um lado ainda ficaram chamuscados e do outro continuam verdes vivos. Pedro Pedrosa explica que não havia qualquer cordão de água: o fogo autoextinguiu-se ali. «Quando chegou ao sobreiral bateu nas primeiras árvores, algumas arderam mas outras só ficaram chamuscadas. Como debaixo do sobreiral a vegetação é muito rasteira e a cortiça arde mal, acabou por se autoextinguir. Debaixo do sobreiral nem o chão ardeu».
A aldeia acabou por ser cercada pelas chamas, mas saiu incólume. «O fogo acabou por só conseguir entrar numa zona do sobreiral até às casas e foi porque havia alguns eucaliptos no meio dos sobreiros e já crescidos. De resto, contornou e passou».
Na manhã seguinte, o que precisava de ser feito saltava à vista e foi convocada uma reunião da associação. «Já tínhamos tido um incêndio lateral naquela encosta, mas tínhamos conseguido pará-lo antes de chegar ao sobreiral. Foi a primeira vez que realmente vimos aquele cenário». A decisão de reforçar o perímetro de sobreiros e cortar todos os eucaliptos num raio de 100 metros em torno da aldeia foi unânime entre os moradores. Mas o trabalho estava só a começar. «Estamos a falar de uns cinco hectares com eucalipto e tivemos de definir as diferentes fases do processo. A primeira coisa a fazer era o cadastro, porque não podíamos mexer em terrenos que não são nossos», explica Pedro Pedrosa.
Passa um mês e esse levantamento – que, depois da aprovação esta semana no Parlamento, o Governo pretende iniciar precisamente na zona afetada pelos incêndios de junho – ali já está feito. E mostra bem a manta de retalhos que compõe a floresta nacional. «Para ter uma ideia, temos cerca de 300 parcelas de terrenos identificados e cerca de 60 proprietários. Algumas parcelas têm 30 metros quadrados, o tamanho de uma sala de jantar», diz Pedro Pedrosa, isto só tendo em conta a faixa de proteção de 100 metros – ir mais longe, diz este morador, seria por agora difícil. Foi tudo cartografado com GPS para que se possa iniciar o trabalho de remoção de eucaliptos e raízes sem que se ponha em causa a delimitação dos terrenos, caso seja preciso remover temporariamente marcos.
Um mês depois do fogo, o cadastro de proprietários na aldeia está feito. Só ali, são 300 parcelas de 60 donos
Feito o levantamento, foi negociado o corte das madeiras. Alguns proprietários avançaram sozinhos e a associação já tem entretanto a autorização de 45 outros proprietários para mexer nas terras, trabalho que vai começar já esta segunda-feira. Já a reflorestação com árvores autóctones, entre elas mais sobreiros, está prevista para a chegada do outono, o tempo disso.
Dito assim num par de linhas até parece simples, mas Pedro Pedrosa acredita que, a nível nacional, não será possível replicar o modelo de aldeia para aldeia e exige todo um trabalho de intermediação social que não vê ninguém discutir. «Há uma função muito difícil de facilitação do processo. Nem é convencer as pessoas, mas explicar-lhes o que está a ser feito. Isto é um problema social e é preciso encontrar técnicas que permitam comunicar e levar as pessoas a aceitar um modelo de arborização e propriedade que contraria o que têm há 100 anos. Hoje em dia temos terrenos muito abandonados que as pessoas não querem vender, não querem deixar limpar e não vemos ninguém discutir isto».
O que torna difícil a mudança é a pergunta para a qual Pedro não tem ainda uma resposta clara. «Se soubesse tinha a resposta para o problema aqui. É o valor sentimental das propriedades, é o receio de que alguém esteja a aproveitar-se. Isto sim devia ser um caso de estudo. Sem este problema resolvido, ninguém vai conseguir fazer nada em termos de política florestal e proteção das aldeias.»
Ali, ainda assim, não foram precisos peritos ou estudos para dar os primeiros passos e há que dizer que não estão contra os eucaliptos. «A culpa não é dos eucaliptos, é de estarem mal plantados e não serem limpos os matos. Perto da aldeia há um bosque de eucaliptos gerido pelas celuloses que não ardeu: estava limpo e as árvores tinham o espaçamento correto. Não temos nada contra, o eucalipto não pode é estar à beira das casas porque é uma árvore em que o fogo progride rapidamente e, plantado como estava, as pessoas nem tiram rendimento económico ali».
Com reuniões todos os domingos para discutir o que fazer, a aldeia até tem estado a ganhar nova vida. «Não existe um café, não tínhamos uma vida social muito ativa. Não era o objetivo inicial, mas acredito que vamos proteger mais a aldeia e aproximar as pessoas». E passar a mensagem, que neste caso as imagens acabam por falar por si.