Na foto da minha memória, há um homem de pé.
Ou melhor: um rapaz. De barba à passa-piolho, era moda, sem bigode. Enverga a capa incontornavelmente coimbrã. Pode não ser um homem providencial, o mundo não tem muitos lugares para homens providenciais. Mas é, certamente, um homem circunstancial.
Fala à revelia.
17 de Abril de 1969.
Tudo levava a crer que fosse um dia banal. Claro, havia a inauguração do novo edifício da Cidade Universitária destinado à Faculdade de Ciências e à secção de Matemática.
O Estado estava lá. O Estado e todo o poder que Estado significa.
Américo Thomaz, Presidente da República.
José Hermano Saraiva: Ministro da Educação Nacional.
Mário Júlio de Almeida e Costa: Ministro da Justiça.
Rui da Silva Sanches: Ministro das Obras Públicas.
António Jorge Andrade de Gouveia: o Reitor. Ou melhor, o Magnífico Reitor.
E, no entanto, o rapaz falou.
Chamava-se Alberto Martins. E conta:
É evidente que ter erguido a voz perante o Américo Thomaz acabou por ser um acto de coragem, m acto marcante. Um dia perguntaram-me: ‘Você sabe o que é coragem? É a arte de vencer o medo’. E eu estava cheio de medo! Mas era o rosto daquela Academia. Tinha de ser. Não os podia deixar ficar mal. Sentia-me com uma força enorme.E quando peço para usar da palavra há uma salva de palmas brutal. Existe uma recusa inicial, mas eu insisto. Era a vez de falar o ministro das Obras Públicas. Lançam-se os primeiros slogans – Queremos uma universidade livre!. As posições extremam-se. Na véspera tínhamos subido a Porta de Minerva, ludibriando o guarda, e pintado as paredes com hipo-sulfito, que era muito abrasivo. Pouco depois disso, fui à Brasileira, onde estavam o Paulo Quintela e o Joaquim Namorado, e, calado, ouvi-os dizer: ‘Aqueles gajos têm-nos no sítio!’. E escondia a mão que tinha ficado queimada com o sulfito com medo que a PIDE me apanhasse.
Estava com quantos anos nessa altura?
Com os meus vinte e dois.
E com a plena consciência de que poderia pôr o curso em risco.
Bem, aquele pedido da palavra foi uma surpresa até para mim…
Essa é boa.
Tratava-se de uma reunião pedagógica, com todos os elementos da Associação Académica e decide-se quem vai pedir a palavra. Eu era, e ainda sou, um tipo tímido…
Não era um tribuno?
Não era, certamente, o que estava mais à vontade, mas tendo a coisa caído num impasse, tomei a decisão de ser eu a pedir a palavra. Foi uma noite horrível! Fui a casa de um amigo pedir-lhe uma batina que a minha estava em muito mau estado e no dia seguinte pedi a palavra quando fosse adequando e o conselho entendesse. Nessa mesma manhã houve uma Assembleia Magna na qual ficou decidida a minha intervenção. Mal lá cheguei fiquei com a ideia de que aquilo iria ter muito pouco efeito. Vi logo as figuras gradas do regime.
A direita preparara-se…
Estava ali toda, do presidente aos altos quadros da PIDE. Mas, entretanto, muitos estudantes que se tinham reunido no interior tinham conseguido entrar na sala e eu senti-me mais à vontade. Recebi uma salva de palmas que ainda hoje, ao pensar nisso, me arrepio. A minha intervenção não foi um acto político. Foi um acto de honra! De honra para quem me apoiava. Um colega meu disse com graça que eu falei uma oitava acima.
E com consequências.
Sim. Há noite fui preso. E só mais tarde fiquei a saber que o Thomaz e os seus acólitos tinham mandado desligar a instalação sonora. Ou tentaram fazê-lo porque a chave nunca foi encontrada. Só depois do 25 de Abril.
A saída foi conturbada.
Sim. Cá fora, gritavam ‘Palhaços! Palhaços! Palhaços!’, e ‘Vão se embora!’, ‘Queremos falar!’. Então subi a uma cadeira para falar e eles foram obrigados a ouvir os nossos discursos. O Barros Moura e o Celso também discursaram. Aquele rapaz magrinho que era eu passou essa noite nos calabouços da PIDE e no dia seguinte passei para as mãos da Judiciária. E, em Setembro, eu e mais cerca de outros companheiros fomos incorporados em Mafra. Gente de forte estatura política como o Rui Pato ou o Barros Moura. Estávamos no início da Guerra Colonial e defrontámo-nos com gente que partiu para África. Depois muitos de nós fomos amnistiados enquanto outros partiram para Mafra e para o Ultramar.
Vivia o estigma de que todas estas intervenções poderiam destruir-lhe o curso?
Não foi coisa em que tivesse pensado. Era preciso falar, eu era o presidente da Associação Académica, senti-me na obrigação de avançar. Mas claro que vivíamos no foyer da Guerra Colonial. Fiz a recruta em Mafra, depois fui colocado no Lumiar e depois, finalmente, fui amnistiado. Em 1972 já estava no Porto, a dar algumas aulas para compensar a verba mensal. Foi quando me cruzei com um antigo aluno que era capitão e me fez a continência. E eu, estupefacto: ‘Ó meu capitão, eu é que tenho de lhe fazer a continência a si!’.
Mas as coisas não ficam por aqui…
Sim, sim. Tornei-me um recordista. Levantaram-me vários processos disciplinares, colocaram-me num processo crime com mais de duzentos estudantes por sedição, que é uma espécie de tumulto público, e ainda um processo militar por ter recusado seguir a ordem de um superior.
Como foi a sua politização até aí?
Eu sou natural de Guimarães e os meus pais eram pessoas conservadoras. Funcionários públicos, o meu avô participou na guerra. Eu próprio, aos 17 anos, sofri de tuberculose. O primeiro acto que me dá vontade de rir… lembra-se do Adolfo Simões Müller?
Como não? Fazia-nos uns convenientes resumos de Os Lusíadas e da Morgadinha dos Canaviais.
Eu, o João Vaz e o Coutinho, resolvemos fundar um clube cultural. Primeiro acto do clube: fazer tocar no largo do Toural uma peça de Béla Bartok. O Café do Toural era frequentado pela oposição. E como éramos frequentadores daquele estabelecimento, fomos apresentados à polícia. Para ver como a desconfiança grassava na cidade. Depois fui para Coimbra e era outro ambiente de solidariedade, com uma capacidade organizativa, com as repúblicas, centro de discussões culturais. Inscrevi-me no Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, o TEUC, na altura dirigido pelo Paulo Quintela que era, à época, uma personalidade extraordinária, o homem que introduziu em Portugal os grandes poetas alemães, o Rilke, o Brecht, até o Nietzsche, e eu com os meus vinte anos tive a felicidade de ir ao Festival de Teatro de Nancy, atravessar os Pirinéus para longe deste país tenebroso, de ir à Delfíada em Verona, onde não encontrei a Julieta…
Mas descobriu um Romeu que havia em si…
…Enfim, conheci algumas Julietas, em todo o caso… Mas realmente aquilo era um espaço cultural extraordinário… E ainda participámos num espectáculo dedicado a Gil Vicente, eu com todas as minhas limitações de actor, nas que os meus filhos, por brincadeira, ainda dizem que interpretei em São Carlos já que uma das réplicas foi lá precisamente. Todo esse envolvimento dos teatros, das repúblicas, dessa Coimbra dos anos 60, fazia dela uma cidade fervilhante. Estamos a falar, seguramente, da única cidade universitária do país. Éramos entre oito a nove mil estudantes universitários. Lisboa teria o dobro disso. Mas havia um ecletismo coimbrão: o teatro, o cinema, as artes gráficas… O cinema do Orlando de Carvalho, essa personalidade ímpar da cultura portuguesa. A Vértice, tão importante que foi antes do 25 de Abril. A Coimbra do meu tempo era a Coimbra do Adriano Correia e Oliveira, dos grandes cantores e guitarristas, do Machado Soares, do António Portugal, a Coimbra do Canto e as Armas do Alegre, a Coimbra da resistência marcada pelo Adriano e pelo Zeca Afonso. Esse vento de liberdade que soprou em 1969…
Vocês sentiram, realmente, que poderiam mudar o país?
Hmmm. Aquilo foi, basicamente, uma revolta estudantil. Um boicote aos exames que atingiu os 85%. É um movimento de massas no qual cada um assumiu a sua decisão individual. Houve fortíssimas repercussões nas famílias, nos professores, mas também tivemos essa sorte fantástica do futebol…
A famosa final da Taça no Jamor contra o Benfica.
[Tira um papel amarrotado e lê]. ‘Também então o futebol esteve do nosso lado. A equipa da Associação Académica de Coimbra, constituída por jogadores de alta qualidade, venceu o Sporting, em Coimbra, e chegava à final da Taça de Portugal. No jogo de Coimbra utilizei, pela primeira vez, o camarote central do estádio, juntamente com alguns membros da direcção. Ao lado, encabulado, o Reitor Andrade fervia. Mas o melhor esteve para vir, a final do Jamor, em Lisboa. E a Académica sempre a trajar de luto, em Coimbra de branco, em Lisboa, a passear, com as capas negras estendidas, luto no emblema. Thomaz ausente pra evitar a afronta.
Fui para o jogo no dia anterior, no grande e velho Chevrolet, a ‘Banheira do Fernandinho Cunha’, com o Carlos Santarém, o Carlos Baptista e o Joaquim Brandão. Dormimos em casa, ou melhor, no Palácio do Fernando Mascarenhas, o novo colega Marquês da Fronteira. À falta de lugares, já tudo repleto, o nosso amigo lá arranjou uma sala esplêndida, alcatifada e quente para dormirmos. O Carlos Baptista dormiu em cima de um piano, do qual caiu durante a noite com um estrondo pouco habitual. Eu fiquei por um sofá. Não sei se me foi atribuído por razões de saúde ou por especial preferência…’.
Em Coimbra, não estava tudo na mesma, isto é, apesar da vida correr.
A Assembleia Magna precisava de dar um voto claro às greves aos exames. Deu: mais de seis mil alunos apoiaram a medida.
A batalha estava ganha. Poucos foram os que votaram contra, como foi o caso do José Manuel Júdice. Havia agora o problema dos piquetes. Recorde-se que na Coimbra daquele tempo tínhamos qualquer coisa como mil e quinhentos estudantes brasileiros. Montámos as barricadas e ficámos à espera da carga de cavalaria. Tínhamos a vantagem de eu ter sido o primeiro presidente da Associação Académica a ser preso e isso também caiu mal na opinião pública. Depois tínhamos a Rádio da Associação Académica que transmitia comunicados todos os dias e que, escondida num quarto de banho, eles nunca encontraram, além de que conseguíamos descodificar as comunicações políciais.
E vocês, apesar de toda essa vantagem estratégica, tinham a consciência de que o vosso futuro podia estar irreversivelmente comprometido.
Nós tínhamos uma esperança muito intrínseca de que aquilo iria ajudar a derrubar a situação. Tínhamos uma organização clandestina, da qual o Rui Namorado faz menção num livro dele, No dia em que fui preso pela PIDE, um grupo de mais de 300 mil estudantes juntaram-se à porta da PIDE para exigir a minha libertação. Houve cenas de violência, a polícia dispersou a manifestação mas começou a correr o boato de que viriam milícias de estudantes franceses e espanhóis para acompanharem a nossa revolta..
No dia seguinte fui libertado e, apesar da fraqueza física em que encontrava, levaram-me à força para discursar perante uma Assembleia Geral. Não foi preciso esperar muitas horas para que a PIDE me prendesse outra vez e que a minha matrícula universitária fosse de imediato cancelada até haver uma resolução do assunto.
Havia alguma aproximação entre o vosso movimento e o que se tinha passado em França no ano anterior?
Havia diferenças claras. Aquilo em França fora uma revolução nascida num país democrático ao contrário da ditadura e da repressão que vivíamos por cá. Além de sofrermos igualmente a violência de uma guerra colonial. Mas não deixou de ultrapassar fronteiras essa ideia meio-romântica de ver os estudantes como protagonistas da História. Aliás fomos todos muito influenciados pelo André Gorz que foi uma das nossas referências. Sabíamos o que se tinha passado em França, na Checoslováquia e até na Hungria. E sabíamos da força das suas elites cultas. Líamos o Mallet, o Gorz, o Gramsci, chegámos até a fundar a Centelha, e os clássicos como o Rosa Luxemburgo ou o Trotsky, e eu até cheguei a traduzir a Guerra Civil de França sob pseudónimo. O Maio de 1968 é extremamente importante para todas as revoltas que lhe sucederam. A ideia da Imaginação ao Poder foi extraordinária. Quando decidimos em Assembleia Geral não realizar a Queima das Fitas eu tive de ir, pessoalmente, casa a casa, na Baixa de Coimbra, explicar a medida. Porque para muitos comerciantes era uma fase fundamental em termos financeiros. E a cidade esteve connosco. O Cunha Leal chegou a dizer-me: ‘Vocês têm mais força do que a Câmara e do que o Governo Civil’.
É curioso. É mesmo fundamentalmente curioso. Aleksander Blok, poeta russo, inventou a expressão: ‘A grande orquestra mundial das artes. A música, o teatro o boxe, a pintura. Todos fazem parte de uma forma de estar na vida, no mundo. Tudo são manifestações culturais da criatividade humana. O futebol? Claro! O futebol também’. O futebol ficou marcado em toda a vida de Alberto Martins. Pouco importam as suas simpatias vimarenenses, sua terra de nascença, coimbrãs, seus gostos posteriores, estudantis, ou benfiquistas, algo que vem da profundidade infantil do sangue.
A final da Taça de Portugal entre Benfica e Académica foi o encontro mais político da memória do futebol em Portugal.
Uma vitória da Académica, poria Alberto Martins ao colo e aos ombros da multidão, dando a volta de honra a um estádio de traçado fascista contrariado pela força sem opositores de Eusébio.
A Académica perdeu essa final da Taça de Portugal.
Mas os jogadores do Benfica subiram à tribuna com as camisolas negras da revolta.
Voltemos à final da Taça. Havia, certamente, um plano comemorativo e reivindicativo em caso de vitória.
Sim. Mas parto já para uma história. Distribuímos cerca de 50 mil papéis. A Académica tinha um equipa excepcional: Mário Campos, Vítor Campos, Gervásio, Rocha… E, por entre o público, a malta com os papéis debaixo dos casacos – “Liberdade para os Estudantes!”, “Direito à Greve”. O Presidente da República não compareceu, o jogo não deu na televisão. O Vítor Campos confessou que um dos jogadores do Benfica lhe disse que o ambiente estava estranho. A verdade é que o jogo começou e a malta desatou a espalhar os papéis com as palavras de ordem escritas. E os adeptos do Benfica também a ajudar. Foi impressionante! E a polícia não caçou ninguém com as mensagens subversivas. Aquele seu colega de A Bola escreveu que tinha sido o maior comício a que se assistiu antes do 25 de Abril…
O Carlos Pinhão?
O Pinhão!
E como é que todo esse movimento tão vibrante se dissolveu de um momento para o outro?
Não se dissolveu. Cinco anos mais tarde tínhamos o 25 de Abril. Foi uma onda de juventude que acabou por capitalizar muita gente, como os oficiais milicianos da Guerra do Ultramar. Eu no 25 de Abril tinha 29 anos… É uma geração inquieta e que continua a minar o regime como pode. Todos os rios que correram em 1969 foram dar ao mar do 25 de Abril. Desaguaram nele as reclamações estudantis, as resistências culturais, os exílios, o Tarrafal, Wiriamu. Os militares do 25 de Abril foram o rosto de um povo. O 25 de Abril é uma dia fundamental na vida de todos os portugueses…
O dia inicial, primeiro e limpo, como diria Sophia… Como viveu o seu 25 de Abril?
Eu faço anos a 25 de Abril.
Bem sei, bem sei.
Estava com um grupo de grandes amigos e fui sabendo do movimento dos capitães. O meu grande amigo, já desaparecido, Pinto Machado, informou-me do 25 de Abril no dia anterior. Eu estava sujeito ao RDM (Regimento de Disciplina Militar), bem me pus a escutar a rádio, mas não consegui perceber para que lado estava a cair a revolução. E, desanimado, disse à minha mulher antes de me deitar: mais uma vez isto falhou. Lá tentei adormecer perguntando a mim próprio o que iríamos fazer com a malta que fora presa. Depois fui acordado com um telefonema: ‘Olha que há uma revolução… E é das boas!”
O dr. tem um currículo impressionante, daria para enchermos umas páginas do jornal. Foi também ministro, embora eu goste de dizer que para certas pessoas ministro é pouco. Foi ministro da Justiça na legislatura de José Sócrates. Era uma ambição?
A minha entrada na luta partidária começa com a adesão ao MES e, sem seguida, com o apoio à candidatura presidencial da Maria de Lurdes Pintasilgo. Dediquei-me muito a trabalhar com ela e cheguei a ter o prazer de viajar com ela para Kuala Lumpur, na Malásia, no âmbito de uma reunião de ministros internacionais, ocupando o pomposo cargo de adviser quando não passava de um amigo com o qual ela discutia opiniões. Tive portanto a felicidade de conhecer o Suarez, o Schmidt e outras grandes figuras da política mundial. Maria de Lurdes Pintasilgo era uma pessoa brilhante em muitos aspectos, com uma grande inteligência e sagaz como muito poucos. Ela organizou uma comissão interpartidária e eu era, por assim dizer, um socialista de esquerda que nunca tinha pensado em entrar para o Partido, a despeito de alguns convites. Depois de uma proposta feita pela Maria de Lurdes Pintasilgo para que eu concorresse como independente ao Parlamento Europeu, a aproximação deu-se com naturalidade e acabei por me envolver na política partidária bem mais tarde do que costuma ser natural. Torno-me vice-presidente do grupo parlamentar, faço parte do Comissariado Nacional do PS, desligo-me muito da minha carreira de advogado e passo a exercer uma política muito interventiva…
Muita dela debruçada no campo da cidadania, aliás com livros publicados…
Sim. Passei cerca de três anos como membro do Governo, primeiro com Guterres, quando ele me convidou para ministro da Reforma do Estado e da Administração Pública. Era uma função que tinha muito que ver com o meu trabalho legislativo, tive um papel importante no acesso aos documentos da administração, no conselho de protecção de dados pessoais, nas próprias leis da compatibilidade, e igualmente uma participação muito forte na criação e implementação das leis eleitorais. Foi para mim uma evolução lógica. Depois surgiu o Ministério da Justiça, pois também estive muito ligado às questões do Direito, e também acabou por se tornar uma evolução natural…
Ministro da Justiça de um Governo de José Sócrates.
Sim. Na última fase.
Por falar nisso, este caso que envolve José Sócrates surpreendeu-o de alguma maneira?
Eu quero que a Justiça faça o seu papel e quero que a Justiça cumpra o seu papel! Sei que não está a agir com a celeridade que deveria.
São adiamentos de prazos em catadupa.
Com a responsabilidade acrescida de ter sido ministro da Justiça, insisto: espero que a Justiça cumpra o seu papel! Com a maior celeridade! Algo que já devia ter acontecido.
Por que é que nunca se candidatou a Presidente da República?
Já me colocaram essa pergunta em relação a outros cargos. E respondo sempre: sou um general sem tropas!
Nunca lhe disseram que teria um perfil indicado para o cargo? Não concorda?
… Nunca coloquei a mim mesmo essa questão. E sempre tive a percepção de que em qualquer lugar seria sempre um general sem tropas.
Então depreendo que nunca esteve, sequer, nas suas cogitações.
Houve pessoas que me falaram nisso, mas não estava nas minhas perspectivas.
O dr. é um caso raro de discrição na sua vida pessoal neste universo de política/espectáculo, não é?
Essa pergunta é muito difícil. Gosto de me resguardar. Sou um tipo muito emotivo, mas também muito racional. Recordo-me de ir uma vez ao médico acompanhado pela minha mãe e ouvi-lo dizer: ‘Minha senhora, tem que ter cuidado com o seu filho’. Ao que ela respondeu: ‘Pois, ele é muito calmo, não é?’ E o médico: ‘Não, é muito nervoso!’. Sou muito controlado. Sou sempre capaz de esperar que a reacção que está para acontecer passe…
Custou-lhe sair do Parlamento?
Não. Pensei muito nisso. A Assembleia da República é muito mais do que nós e as suas circunstâncias. É o lugar matricial da República. Senti que aquilo era já outro lugar para mim.
Sentia-se um dinossauro?
Não. Não me sentia um dinossauro mas sentia-me um estrangeiro.
Quantos anos foi deputado?
Entrei em 1987 e saí agora, mas durante quatro anos e dois meses fui membro do Governo.
A Assembleia da República degradou-se muito ao longo dos anos?
A Assembleia que nasceu logo após o 25 de Abril era a Assembleia dos Pais Fundadores da Pátria. Era a Assembleia daqueles que venceram a ditadura. A de hoje é uma Assembleia que se modernizou. Esses Pais Fundadores tinham carreiras políticas, profissionais e sociais muito fortes. Hoje estamos numa situação de normalidade. Mas neste momento prefiro não falar sobre isso. Preciso de dedicar tempo a pensar naquilo que lá vivi. Não agora, que acabo de sair.
Agora vai fazer o quê? Agora que tem o futuro à sua frente?
Tenho o futuro à minha frente? Tem graça. Então tenho tanta coisa para fazer.
Escrever livros?
Certamente. Já lhe falei na admiração que tenho pela Maria de Lurdes Pintasilgo. Ela dizia: não há limites para o aprofundamento da Democracia. Continuarei na luta pelo aprofundamento da Democracia. Espero que continuemos. Políticos, jornalistas, intelectuais, pessoas válidas deste país. Ainda por cima com todo esse futuro que acabou de abrir à minha frente…
É curioso.
É mesmo fundamentalmente curioso. Aleksander Blok, poeta russo, inventou a expressão: «A grande orquestra mundial das artes. A música, o teatro o boxe, a pintura. Todos fazem parte de uma forma de estar na vida, no mundo. Tudo são manifestações culturais da criatividade humana. O futebol? Claro! O futebol também. O futebol ficou marcado em toda a vida de Alberto Martins. Pouco importam as suas simpatias vimarenenses, sua terra de nascença, coimbrãs, seus gostos posteriores, estudantis, ou benfiquistas, algo que vem da profundidade infantil do sangue.
A final da Taça de Portugal entre Benfica e Académica foi o encontro mais político da memória do futebol em Portugal.
Uma vitória da Académica, poria Alberto Martins ao colo e aos ombros da multidão, dando a volta de honra a um estádio de traçado fascista contrariado pela força sem opositores de Eusébio.
A Académica perdeu essa final da Taça de Portugal.
Mas os jogadores do Benfica subiram à tribuna com as camisolas negras da revolta.
Alberto Martins viria a escrever uns anos depois: «A candidatura que triunfou nas eleições estudantis de 1968, seguindo-se à comissão administrativa de confiança governamental, foi encabeçada pelos organismos autónomos e pelos Conselhos das Repúblicas. Já nesse ano ‘A Tomada da Bastilha’, festa da Academia que comemora o assalto ao Clube dos Lentes, foi um imenso desfile de protesto. As greves às aulas e aos exames pacificaram-se com a declaração do luta académico decretado pelo Conselho de Veteranos. As capas e as batinas passaram a andar em luto e as fitas e os grelos recolhidos. A Académica, também no futebol, trajava a cor do luto, não o seu negro habitual, mas o branco. E no final da Taça de Portugal, ausente, pela primeira vez na sua história (ao que dizem), o Chefe de Estado – goradas várias tentativas para que a final decorresse normalmente, o que só se verificaria no compromisso assumido, e pela nossa parte, se a pacificação regressassse ˋAcademia – lá entrou a Briosa em passo de luto, capa desenrolada sobre os ombros, envolvida por uma manifestação imensa de jovens e até polícia a cavalo, estes do lado de fora do Jamor.
A subversão das ideias e a mudança nas pessoas, sobretudo nos seus hábitos, também então se verificou. E, aí, creio que um novo entendimento, lento, se foi instalando com a projecção da política e social que a mulher ganhou na Coimbra desse tempo. O espaço de amizade e do amor franqueou barreiras e, no fervor da luta, já só havia iguais, quando tempos antes, ainda, a mulher era, em geral, parceiro secundário numa secular tradição coimbrã marcada pelo marialvismo. Não é que, de um momento para o outro, tudo se mudasse. Mas de verdade, todos sentimos que tudo começou, fortemente, a mudar. Na direcção da luta, na resistência à polícia, no comportamento exemplar na prisão, nos comités e piquetes de guerra, a aguentar as agressões daas forças militares, face às pressões familiares nas grandes manifestações, aí estava como um todo, mulheres e homens, a Academia de Coimbra. E, por isso, 69 foi também uma festa de reencontro e amor, dos primeiros passos da aventura, das flores que desabrocharam. ‘Antes que amores feneçam/que mil flores desabrochem/e outros nenhuns não’».
Alberto Martins tem isto de diferente. Não vale apenas ouvir o que diz. Vale ler a sua prosa sem tempo. Agora que esse tempo caminha irrevogável para um mundo novo.
Um mundo no qual aprendemos a reencontrar princípios que pareciam deixar de fazer sentido.
Por culpa de quem? De nós próprios que passámos a ignorar-nos há demasiado tempo. E a desprezar o quadrado verde que nos mantém em pé.
Eu tenho a ideia deste homem erguido no meio da multidão.
Fiquei a saber que tinha medo. Faz dele mais homem.
E faz do medo aquele mostrengo que sai do fundo do mar e todos combateremos um dia no pico do Bojador.