Embora o objetivo da autora passasse por inculcar na juventude valores louváveis como «a honestidade», «a lealdade» ou «a bondade», pelos padrões atuais Os Cinco podem suscitar algumas reservas aos defensores mais zelosos do politicamente correto. Comecemos pelo cartaz da mostra da Biblioteca Nacional (Lisboa) que comemora os 75 anos do nascimento dos clássicos de Enid Blyton: a imagem escolhida foi a capa de um livro intitulado Os Cinco e a Ciganita.
«Uma das críticas que fizeram a Enid Blyton dizia respeito à forma muito simplista como ela descrevia os ciganos e todos os estrangeiros», comenta Rogério Miguel Puga, o comissário da mostra. Blyton foi considerada «elitista, xenófoba, racista», continua o comissário. «A partir dos anos 50 ela é um bocado posta de lado, até pela crítica feminista. Representa uma sociedade muito direitinha, muito desinfetada, uma família de classe média inglesa».
Nada que incomodasse especialmente os jovens leitores de então. Um professor universitário de Humanidades na casa dos cinquenta que passa pela área de referência da BN não esconde o entusiasmo por encontrar aqueles velhos conhecidos. «Li isto tudo!», recorda com alguma nostalgia, levantando os óculos para ver melhor as capas dos livros. «Os Cinco eram o Harry Potter da minha geração. Ainda tentei ler os Sete, mas já não era a mesma coisa».
O universo de Enid Blyton nunca deixou de fascinar os jovens leitores. Hoje, a autora britânica continua a vender dois milhões de exemplares por ano, sobretudo em Inglaterra. E, revela-nos Rogério Puga, é, a par de Roald Dahl, «a autora mais requisitada nas bibliotecas públicas inglesas. Sobreviveu a todas estas críticas e continua a ser lida. Passou o teste do tempo», realça.
«Foi acusada de ter uma linguagem muito simplificada, porque escrevia muito – em 1955, por exemplo, escreveu cerca de 65 livros, é mais de um por semana –, mas isso hoje é visto como uma vantagem, porque os jovens não gostam de ler coisas muito elaboradas», explica o comissário.
Professor universitário de Literatura Inglesa na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Rogério Puga começou a ler as aventuras de Enid Blyton quando tinha «nove ou dez anos». «Lia nas férias. Iam-me oferecendo e eu ia lendo. Depois veio a série televisiva que toda esta geração nascida nos anos 70 viu – passou em 1979-1980 na RTP. E isso também levava a que se fosse ler os livros».
Um dos aspetos que lhe agradavam era a autonomia e o desembaraço revelados pelos Cinco, capazes de resolver mistérios sem a ajuda de adultos. Outro era todo o imaginário que brotava daqueles livros. «O meu primeiro contacto com muitos elementos culturais de Inglaterra, até da culinária – as sandes de pepino, a ginger beer, por exemplo – foi com os Cinco. Houve aquele fascínio de uma cultura diferente. E a natureza. O genérico da série televisiva, com eles a correrem no bosque, marcou-me muito».
O encanto de Blyton pela vida ao ar livre foi-lhe transmitido pelo pai, que detinha um negócio de venda a retalho de têxteis. «O meu pai adorava o campo, adorava as flores, os pássaros e os animais selvagens, e sabia mais sobre eles do que qualquer pessoa que alguma vez conheci», escreveu a autora na sua autobiografia. O pai também lhe incutia certos valores de trabalho e de mérito: se Enid desejava muito alguma coisa, ele atribuía-lhe tarefas pelas quais lhe pagaria uma pequena soma. Como limpar a sua bicicleta – «bem limpa», avisava.
Enid dava-se mal com a mãe, que permitia aos filhos rapazes andarem livremente, mas obrigava a menina a realizar as tarefas domésticas. Por isso, a separação do casal foi dramática para ela. Em compensação, a infelicidade daí decorrente levou-a a fechar-se no quarto e a descobrir a sua vocação: a escrita, que a mãe considerava «uma perda de tempo e de dinheiro». A progenitora não podia estar mais enganada. Mais tarde, com cerca de 400 milhões de livros vendidos, os direitos de autor haveriam de fazer de Enid Blyton a detentora de uma imensa fortuna. Mas não nos antecipemos.
Na adolescência, Enid viu a publicação de inúmeros textos seus ser rejeitada. O que não lhe tirou a determinação. Decidida a tornar-se escritora, durante a I Guerra trocou a escola de música onde estudava por um curso para se tornar professora. Deu aulas numa escola para rapazes e mais tarde tornou-se precetora de quatro irmãos, numa casa do Surrey, onde se juntavam outras crianças das redondezas. «Foi um dos períodos mais felizes da minha vida».
Na década de 1920 começa a ser publicada e atinge um sucesso considerável com textos na imprensa sobre educação, destinados a pais e professores. Já casada, em 1925, publicou a sua primeira obra de ficção.
Quem leu os Cinco sabe que as crianças – os irmãos Júlio, Ana e David, e a prima deles, Zé – se encontram sempre durante as férias, na altura do ano em que se libertavam do colégio interno. Quando foi mãe, Enid colocou os seus filhos numa dessas escolas. Talvez por isso, ficou para a posteridade a ideia de ter sido uma péssima mãe. Verdade ou estereótipo? A propósito de um livro de memórias que a retratava a autora como uma mulher má, que enganava repetidamente o primeiro marido com amantes, a sua filha mais velha disse em 2002 que a autora era uma mãe «afetuosa e generosa».
Rogério Puga contextualiza: «Colocar os filhos num colégio interno era uma marca de classe. Ainda hoje a esmagadora maioria dos governantes de Inglaterra passam por Eton College. É uma marca social mandar os filhos para uma boarding school. E até de estatuto, porque essas escolas são caríssimas».
Uma coisa, no entanto, parece indesmentível: após a separação do primeiro marido, Blyton deu instruções no colégio para que este não pudesse ver as filhas. E, quando escreveu a sua autobiografia, a autora nem sequer fez referência ao seu nome. A propósito, chamava-se Alexander Pollock, combateu nas duas guerras mundiais e entrou em bancarrota e em depressão a seguir ao divórcio. Até a biógrafa oficial de Enid Blyton reconheceu que Pollock foi muito mal tratado…
Polémicas à parte, o primeiro livro da sua série mais famosa aparece em 1942: Os Cinco na Ilha do Tesouro (a tradução portuguesa, exibida na BN, é de 1955). Seguir-se-ia mais uma vintena de títulos dos Cinco. Blyton acabaria por tornar-se um ícone popular. «Nos anos 90 a assinatura dela foi colocada em Picadilly Circus em letras néon», revela Rogério Puga. E imensamente rica – com grande parte dos fundos resultantes da venda de livros a reverterem a favor de obras de beneficência.
Como escrevia Enid Blyton os seus livros? Blyton dizia que as ideias nasciam à medida que datilografava no jardim, com a máquina de escrever em cima dos joelhos. As imagens, conta na sua autobiografia, surgiam-lhe pela frente sem esforço, como num filme em 3-D, da mesma forma que surgem hoje perante os olhos dos leitores. «A história aparece completa e inteira do princípio ao fim. Não tenho de parar ou de pensar nem por um instante. Se eu quisesse pensar ou inventar o livro, como fazem alguns escritores, não conseguiria. Sou uma mera espectadora, uma repórter». Algo de que os críticos desconfiam. Afinal, estamos a falar de uma contadora de histórias compulsiva, que escreveu nada menos do que quatro mil contos e um total de 700 livros. Quem a pode censurar por ter exagerado um pouco?