Venezuela e Nicolás Maduro acordaram ontem à deriva. A União Europeia recusou-se a aceitar o voto para a Constituinte com que o presidente parece querer agarrar-se ao poder e pelo caminho sanear os opositores na Assembleia Nacional e no gabinete da outrora fiel procuradora-geral. Também não o reconheceram os Estados Unidos, o México, a Colômbia, o Peru e outros países que repudiaram a ida às urnas de domingo, assim como os dez mortos que saíram do mais sangrento dia de protestos antigovernamentais na história recente do país. O governo americano foi mais longe que qualquer outro e, no papel de inimigo declarado e maior mercado energético venezuelano, anunciou sanções contra o próprio Maduro, congelando-lhe os bens nos EUA e proibindo os seus cidadãos de fazerem negócios com ele – ninguém exclui novas sanções em breve. Ao início da noite, a Casa Branca leu a sentença: Maduro, anunciou num comunicado, “é agora um ditador”.
Com todas as ameaças que lhe atiram, Nicolás Maduro celebrou no domingo como o presidente simultaneamente condenado e triunfante que agora é. “Um porta-voz do imperador Donald Trump disse que eles não iriam reconhecer os resultados da eleição para a Assembleia Constituinte da Venezuela”, lançou Maduro na noite do triunfo, adiantando que cerca de oito milhões de venezuelanos foram domingo às urnas, o que coloca a abstenção à volta dos 60%. “E por que motivo nos preocuparíamos nós com o que Trump tem a dizer?”, prosseguiu o presidente. “É o maior voto que alguma vez a revolução conseguiu nos seus 18 anos de história”, disse, ignorando o facto de a abstenção registada oficialmente no domingo ser muito superior à contabilizada nas eleições legislativas de há dois anos; as mesmas que deram uma grande maioria à oposição no mesmo órgão que Maduro quer agora dissolver – 70% de participação em 2015 contra 40% no domingo.
Não há fim à vista para a crise no oficialismo venezuelano. Os preços do petróleo estão ainda no patamar dos 50 dólares e por aí devem permanecer num futuro próximo. A inflação está no território dos quatro dígitos e rondará os 2000%, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), que antecipa que a riqueza do país com maiores reservas de petróleo no mundo caia este ano mais 12%. Muitos hospitais não têm medicamentos, há pessoas que morrem de simples cortes, intoxicações alimentares e ataques de asma por falta de meios para as tratar. Os mercados, pelo menos os que não são pilhados, não têm comida. E no entanto, o mesmo oficialismo que está em crise apodera-se agora de um órgão que maneja um poder absoluto. É uma entidade que parece simultaneamente viva e morta, como o gato com que Erwin Schrödinger quis demonstrar a teoria da sobreposição quântica, fechando-o numa caixa com um veneno que podia nunca se acionar.
E agora? “Trata-se de um poder que supera qualquer outro”, explicou Maduro no domingo, falando da Constituinte e dos seus novos 545 delegados, na sua esmagadora maioria militantes ou simpatizantes do Partido Socialista Unido. O que vai acontecer quando forem empossados na quarta-feira, como indicou o presidente, ninguém sabe ao certo. O mais provável é que o número dois do partido seja eleito o seu líder – é Diosdado Cabello – e o órgão vá lentamente levantando a imunidade e ocupando o lugar dos deputados oposicionistas e da procuradora-geral. O presidente, afinal de contas, prometia-lhes no domingo “uma cela, sob a justiça necessária”. “Estamos na presença de ambições ditatoriais”, ainda denunciou na noite de domingo Luisa Ortega, a procuradora-geral a quem o oficialismo voltou as costas e acusa de traição.
A maioria da aliança opositora Mesa da Unidade Democrática (MUD), promete resistir à usurpação dos poderes, mas o que não conseguiu fazer para evitar a eleição de uma Constituinte dificilmente conseguirá contra o órgão eleito. Já ninguém pensava ontem nas eleições de outubro de 2018 para as quais se profetizava o final do impopularíssimo Maduro. A data deve saltar para meses e anos posteriores, períodos em que o oficialismo pode esperar melhores ventos económicos. Os números da MUD, que alegava apenas dois milhões de eleitores no domingo, caíram quase em saco roto. Enquanto o oficialismo tiver do seu lado as Forças Armadas, a oposição poucas ferramentas tem do seu lado. A maioria tentou ontem um desafio final que mais soou a profecia. Diosdado Cabello disse que quer fazer reunir a Constituinte nos mesmos assentos dos deputados da maioria e Juan Requesens, que detém um desses assentos, prometeu guerra. “Se querem tomar o Congresso com os seus carros armados, com os seus grupos paramilitares, então o que os espera aqui é uma luta”, disse, ocultando a sensação de que, caso ela aconteça, dificilmente a ganhará.