Ser português – ius soli ou ius sanguini?

Desde a fundação, Portugal soube interpretar e acomodar no seu ordenamento jurídico as alterações e aperfeiçoamentos que se impunham.

«Onde morre a vergonha, nascem os expedientes desonrosos».

Camilo Castelo Branco

 

Na construção e solidificação das comunidades politicamente organizadas e dos seus elementos-base (a saber: território, organização política e povo), os cidadãos são um elemento fundamental, para que tais comunidades se realizem e se estruturem, quer na veste jurídica, quer na veste pós-jurídica. 

E o tratamento jurídico da ligação do povo, dos cidadãos, a essa comunidade politicamente organizada, deve fazer-se segundo critérios de identificação e de pertença à comunidade inserta no respetivo território. Daí que essa pertença, esse animus de identidade, seja dos elementos mais relevantes ao nível dos direitos, liberdades e garantias. E, nesse domínio, Portugal – um dos países mais antigos da Europa e do mundo – tem tido, ao nível do regime jurídico de concessão (e retirada) de cidadania, ao longo da sua história, uma evolução de que não se deve envergonhar. 

Desde a fundação, Portugal soube interpretar e acomodar no seu ordenamento jurídico as alterações e aperfeiçoamentos que se impunham.

Em 2006, o Governo e a Assembleia da República fizeram um trabalho conjunto positivo e introduziram alterações legislativas, e consequentemente administrativas, que vieram permitir um melhor acesso à nacionalidade portuguesa. Permitindo que o ‘ser-se português’ fosse reforçado por via do ius solis, temperando o peso excessivo do ius sanguini, mais limitativo. Passados mais de dez anos, dessas alterações resultaram cerca de 500 mil novos portugueses. Um terço dos quais do Brasil, seguidos de naturais de Cabo Verde, Ucrânia, Angola, Turquia.

Os que à época se empenharam, como eu, nestas alterações a um dos diplomas e regimes jurídicos mais importantes do nosso país, não podem deixar de estar satisfeitos com o impacto de tais alterações. 

Porque elas constituem um dos pilares da concretização de uma verdadeira política de imigração no nosso país. Onde o acesso à nacionalidade e à cidadania plena, com os consequentes direitos políticos fundamentais, eram essenciais para Portugal e para os novos portugueses.

Daí que ‘ser-se português’ não deva estar prisioneiro, apenas e só, do ius sanguini. Antes pelo contrário. Tem de ser alcançado, também, por via do ius soli. Tem de ser conseguido com legislação adequada a um país, a uma Europa e a um mundo que pouco têm a ver com o mundo fechado das fronteiras (não só físicas mas também psicológicas), que já não existe.

Repugna (e não é pouco) que os radicais da sociedade aberta (quase sem terra) e identidade, e profusamente defensores da livre circulação de capitais e de empresas, diabolizem a concessão de direitos de cidadania individuais. Os tais liberais radicais, que só o são para o que lhes mais convém. Incoerentes defensores do Portugal fechado, pequenininho, a preto-e-branco, em que a nacionalidade portuguesa ‘é só para os portugueses’, inspirados nos idos ‘Portugal para os portugueses’. 

Tal não é o melhor para o nosso país. Antes pelo contrário. Vivemos no século do movimento dos povos. Num mundo em que a circulação de pessoas vai aumentar exponencialmente. Em que os países já concorrem entre si (e vão aumentar ainda mais essa concorrência) por ter pessoas, para fazer face não só à sua sobrevivência enquanto comunidades politicamente organizadas (em alguns casos), como para reforçar a sua viabilidade económica e social. 

Hoje, na Europa e no mundo, não faltam exemplos de países ‘emissores de pessoas’ e ‘recetores de pessoas’. Bem como não faltam exemplos de países que, na prática, são territórios de passagem, de milhões de pessoas, na voragem da mobilidade. Quer no norte, quer no sul. 

Já existem países que têm regimes jurídicos de concessão de cidadania/nacionalidade concorrenciais. A nacionalidade, a dupla nacionalidade e outras formulações jurídicas atinentes à sua atribuição e perda têm merecido muita controvérsia, muita discussão, e até a propositura de novas formulações jurídicas. Uma das discussões em cima da mesa é, por exemplo, saber se a nacionalidade deve ou não permanecer associada exclusivamente à civitas, ao Estado e ao território de entrada.

Em junho passado, voltámos a discutir a alteração à chamada Lei da Nacionalidade Portuguesa. De todas as propostas, o que sobressaiu, na minha opinião, foi que um dos partidos políticos que melhor trabalharam para as alterações positivas de 2006 ficou ‘nas encolhas’. Sinal dos tempos. Agora de uma coisa julgo não estar errado: precisamos de ter mais portugueses e portuguesas. Fieis à nossa história de povo que, como poucos, se relacionou e relaciona com outros povos e outras culturas. Não somos a França e a Inglaterra. Não misturem o fenómeno do terrorismo nesta discussão em Portugal. Porque pouco tem a ver com o interesse de Portugal e dos portugueses.

 

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